segunda-feira, 6 de maio de 2024

Harvey debate Socialismo e Liberdade

 “Quando a direita captura um conceito essencial, um projeto emancipador precisa ressignificá-lo. Não a partir do individualismo, mas da justiça social e do resgate do tempo que o capital sequestra. Pois só uma vida digna pode ser livre.”

OUTRASPALAVRAS

por David Harvey

Publicado 03/05/2024 às 19:36 - Atualizado 03/05/2024 às 19:46

Este é um capítulo de Crônicas anticapitalistas, livro de David Harvey publicado pela Editora Boitempo.

A direita sequestrou o conceito de liberdade; apropriou-se dele, como se este fosse seu, e passou a utilizá-lo como arma na luta de classes contra os socialistas, que supostamente representariam a “ausência de liberdade”. Esse fenômeno é bastante visível nos Estados Unidos, mas está longe de ser exclusivo do país. Estive há pouco tempo no Peru participando de uma série de conferências e foi levantado o tema da liberdade. Os estudantes estavam muito interessados na questão: “O socialismo exige abrir mão da liberdade individual?”. Eles traziam o discurso de que era preciso evitar a todo custo a submissão, imposta pelo socialismo/comunismo, do indivíduo ao controle estatal. Respondi que a liberdade individual não só faz parte como deve ter centralidade em qualquer projeto socialista emancipatório. Insisti que concretizar as liberdades individuais é um objetivo central dos projetos emancipatórios socialistas. Mas argumentei que para alcançar isso é preciso construir coletivamente uma sociedade na qual cada um de nós tenha oportunidades e possibilidades de vida adequadas para realizar plenamente as nossas potencialidades

Marx tinha algumas coisas interessantes a dizer sobre essa questão. Uma delas é que “o reino da liberdade só começa onde cessa o trabalho determinado pela necessidade e pela adequação a finalidades externas” [1]. Liberdade não significa nada se você não tem o que comer. Liberdade é uma palavra oca se lhe é negado o acesso a saúde, moradia, transporte e educação decentes. A função do socialismo é fornecer essas necessidades básicas, satisfazer essas necessidades humanas básicas para que as pessoas fiquem livres para fazerem exatamente o que quiserem. O ponto de chegada de uma transição socialista, e o ponto de chegada da construção de uma sociedade comunista, é um mundo em que as capacidades e poderes individuais estão inteiramente libertos de vontades, necessidades e outras amarras políticas e sociais. Em vez de entregar à direita o monopólio da noção de liberdade individual, precisamos reivindicar a ideia de liberdade para o socialismo.

Mas Marx também observa que a liberdade é uma faca de dois gumes. Ele tem uma forma curiosa de olhar para isso do ponto de vista dos trabalhadores. Os trabalhadores em uma sociedade capitalista, diz Marx, são livres num duplo sentido. Eles têm a liberdade de oferecer sua força de trabalho para quem bem entenderem no mercado de trabalho. Podem oferecê-la em quaisquer condições contratuais que conseguirem negociar livremente. Ao mesmo tempo, eles estão “livres” de todo e qualquer controle ou acesso aos meios de produção. Precisam, portanto, entregar sua força de trabalho ao capitalista para conseguir seu sustento [2].

Eis a sua liberdade de dois gumes. Para Marx, essa é a contradição central da liberdade sob o capitalismo. No capítulo d’O capital sobre a jornada de trabalho [3], ele oferece a seguinte formulação: o capitalista é livre para dizer ao trabalhador: “quero empregá-lo com o menor salário possível pelo maior número de horas possível fazendo exatamente o trabalho que eu especificar. É isso que exijo para contratá-lo”. E o capitalista tem liberdade de fazer isso numa sociedade de mercado porque, como sabemos, a sociedade de mercado tem a ver com oferta, demanda e negociação. Por outro lado, o trabalhador também tem a liberdade de dizer: “Você não tem direito de me fazer trabalhar catorze horas por dia. Você não tem o direito de fazer o que quiser com a minha força de trabalho, particularmente se isso encurtar a minha vida e colocar em risco a minha saúde e bem-estar. Só estou disposto a fazer uma jornada de trabalho justa por um salário justo”.

Dada a natureza da sociedade de mercado, tanto o capitalista quanto o trabalhador estão corretos em termos do que cada um está exigindo. “Ambos”, diz Marx, estão “igualmente apoiados na lei da troca de mercadorias. Entre direitos iguais, quem decide é a força”[4]. Ou seja, é a luta de classes entre capital e trabalho que define a questão. O resultado repousa na relação de poder entre capital e trabalho, que pode sempre se tornar coercitiva e violenta. É a luta entre capital e trabalho que efetivamente determina a extensão da jornada de trabalho, o salário e as condições de trabalho. O capitalista é livre para maximizar a taxa de exploração dos trabalhadores sob a lei da troca de mercadorias; e o trabalhador é livre para resistir. A colisão entre as duas liberdades está embutida no dia a dia do capitalismo.

Essa ideia de liberdade como uma faca de dois gumes é muito importante de ser analisada em detalhes. Uma das melhores elaborações sobre o tema é de um historiador econômico chamado Karl Polanyi. Veja, Polanyi não era marxista. Não subscrevia à visão marxista das coisas, mas com certeza leu Marx e evidentemente refletiu bastante sobre essa questão de direitos e a questão da liberdade sob o capitalismo. Em A grande transformação, Polanyi diz que existem boas formas de liberdade e más formas de liberdade. Entre as más formas de liberdade que elenca estavam as liberdades de explorar sem limites os seus semelhantes; a liberdade de obter ganhos excessivos sem prestar um serviço proporcional à comunidade; a liberdade de impedir que invenções tecnológicas sejam usadas para benefício público; a liberdade de lucrar com calamidades públicas ou calamidades naturalmente induzidas, algumas das quais são secretamente projetadas para tanto (uma ideia que Naomi Klein discute em A doutrina do choque [5]). No entanto, continua Polanyi, a economia de mercado sob a qual essas liberdades se alastraram também produziu liberdades que prezamos muito: liberdade de consciência, liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de associação, liberdade de escolher o próprio emprego. Por mais que valorizemos essas liberdades por si mesmas – e penso que muitos de nós ainda o fazemos, mesmo os marxistas (eu incluso) –, elas são, em grande medida, subprodutos da mesma economia que também é responsável pelas liberdades malignas.

A resposta de Polanyi a essa dualidade pode soar muito estranha dada a atual hegemonia do pensamento neoliberal e a forma pela qual a liberdade nos é apresentada pelo poder político existente. Ele escreve: “O fim da economia de mercado” – isto é, a superação da economia de mercado – “pode se tornar o início de uma era de liberdade sem precedentes” [6]. Ora, essa é uma afirmação um tanto chocante – dizer que a liberdade real começa a partir do momento que deixarmos a economia de mercado para trás. Ele continua:

A liberdade jurídica e real pode se tornar mais ampla e mais geral do que em qualquer tempo; a regulação e o controle podem atingir a liberdade, mas para todos e não apenas para alguns. Liberdade não como complemento do privilégio, contaminada em sua fonte, mas como um direito consagrado, que se estende muito além dos estreitos limites da esfera política e atinge a organização íntima da própria sociedade. Assim, as antigas liberdades e direitos civis serão acrescentados ao fundo da nova liberdade gerada pelo lazer e pela segurança que a sociedade oferece a todos. Uma tal sociedade pode-se permitir ser ao mesmo tempo justa e livre. [7]

Agora, essa ideia de uma sociedade baseada em justiça e liberdade me parece ter sido pauta política do movimento estudantil dos anos 1960, e da assim chamada Geração 68. Havia uma demanda generalizada por justiça e liberdade: liberdade da coerção estatal, liberdade da coerção imposta pelo capital corporativo, liberdade das coerções do mercado, mas também temperadas pela demanda por justiça social. Foi nesse contexto que escrevi o meu primeiro livro radical, Justiça social e a cidade [8]. A resposta política que o capitalismo deu a isso na década de 1970 foi interessante. Tratou-se, como vimos no capítulo 2, de “ceder” e incorporar certas pautas de liberdade individual como forma de escamotear as demandas de justiça social. Ceder no quesito liberdades foi um movimento circunscrito. Significou, basicamente, a liberdade de escolha no mercado. Ou seja, o livre-mercado e a liberdade em relação à regulação estatal foram as respostas dadas à questão da liberdade. Quanto à justiça social, o próprio mercado cuidaria disso com seus mecanismos de concorrência, supostamente tão organizados que garantiriam a cada um o que lhe seria justo e devido. O efeito, no entanto, foi fomentar muitas das liberdades malignas (por exemplo, a exploração dos outros) em nome das liberdades virtuosas.

Polanyi identificou com clareza essa guinada. A passagem ao futuro vislumbrado está bloqueada por um obstáculo moral que ele denomina “utopismo liberal”. Penso que ainda enfrentamos os problemas postos por essa utopia do livre-mercado. É uma ideologia muito presente na mídia e nos discursos políticos. O utopismo liberal do Partido Democrata, por exemplo, é uma das coisas que impede a realização de uma verdadeira liberdade. “O planejamento e o controle”, escreveu Polanyi, “vêm sendo atacados como negação da liberdade. A empresa livre e a propriedade privada são consideradas elementos essenciais à liberdade.” [9] Essa era a visão que os principais ideólogos do neoliberalismo promoviam. É isso que Milton Friedman e Friedrich Hayek vivam martelando: que a liberdade do indivíduo perante a dominação estatal só pode ser assegurada numa sociedade baseada nos direitos à propriedade privada e à liberdade individual em mercados livres e abertos.

O planejamento e o controle são, portanto, atacados como sendo negações da liberdade; e postula-se a propriedade privada como essencial à liberdade. Nas palavras de Polanyi: “Não é digna de ser chamada ‘livre’ qualquer sociedade construída sobre outros fundamentos. A liberdade que a regulação cria é denunciada como não liberdade; a justiça, a liberdade e o bem-estar que ela oferece são descritos como camuflagem da escravidão”. [10] Para mim, essa é uma das questões-chave do nosso tempo. Seremos capazes de ir além das liberdades limitadas do mercado, das suas determinações e da regulação das nossas vidas pelas leis da oferta e da demanda (aquilo que Marx denominou as leis do movimento do capital), ou simplesmente aceitaremos, como disse Margaret Thatcher, que não há alternativa? Tornamo-nos livres do controle estatal, mas escravos do mercado. A isso não há alternativa. Para além disso, não há liberdade. É o que prega a direita, e é o que muitas pessoas passaram a acreditar.

Eis o paradoxo da nossa atual situação: que em nome da liberdade acabamos no fundo adotando uma ideologia liberal utópica que efetivamente funciona como uma barreira à realização de uma liberdade real. Penso que não faz sentido falar em um mundo livre quando alguém que quer uma educação precisa desembolsar uma enorme quantia de dinheiro para obtê-la, a ponto de contrair dívidas estudantis que acabam por colonizar boa parte do seu futuro. Isso é servidão por dívida, é peonagem. E é algo que precisa ser evitado e circunscrito. A educação precisa ser gratuita; ninguém deveria pagar para se educar. O mesmo vale para saúde e moradia, bem como os elementos básicos para garantir uma nutrição saudável.

Observando de uma perspectiva histórica, passamos de um mundo, nos anos 1960, em que se oferecia moradia social, para um mundo em que isso não existe mais. Na Inglaterra, por exemplo, uma grande parcela da provisão habitacional na década de 1960 se encontrava no setor público; era moradia social. Na minha infância, essas moradias populares constituíam um fornecimento básico de uma necessidade, a um custo relativamente baixo. Depois veio Margaret Thatcher e privatizou tudo, com um discurso de que as pessoas seriam muito mais livres se pudessem ser donos dos seus imóveis de modo a participar de uma “democracia de proprietários”. E assim, em vez de 60% da moradia se concentrar no setor público, de repente passamos a uma situação em que apenas cerca de 20% (ou até menos que isso) da habitação é pública. A moradia vira uma mercadoria que, por sua vez, torna-se parte de uma atividade especulativa. À medida que se converte em veículo de especulação, o preço do imóvel sobe e o resultado é uma elevação no custo da moradia sem que haja um aumento efetivo na provisão habitacional direta.

Fui criado naquilo que se poderia denominar uma comunidade respeitável de classe trabalhadora em que as pessoas tinham casa própria. A maior parte das pessoas da classe trabalhadora não tinha casa própria, mas havia um segmento que tinha, e a comunidade em que cresci pertencia a esse segmento. A casa era vista como valor de uso; isto é, era um lugar em que morávamos e fazíamos coisas – nunca falávamos sobre seu valor de troca. Recentemente vi alguns dados que mostravam que, até a década de 1960, o valor das moradias de classe trabalhadora não apresentou nenhuma mudança ao longo de cem anos ou mais.

A partir dessa década, no entanto, a moradia começou a ser vista como valor de troca, em vez de valor de uso. As pessoas começaram a indagar sobre o valor monetário desses imóveis e a indagar se (e como) seria possível alavancar ele. Ou seja, de repente, começaram a aparecer considerações sobre valor de troca – o que foi totalmente ao encontro da política thatcheriana de privatizar a moradia social por completo com a promessa de que assim todos poderiam participar do mercado imobiliário e passar a se beneficiar da escalada dos valores de troca.

Uma das consequências disso é que quem estava nos estratos mais baixos da população, do ponto de vista de renda, passou a enfrentar uma dificuldade crescente de encontrar um lugar para morar. Em vez de viver em localizações muito centrais, onde havia fácil acesso a oportunidades de emprego, eles foram sendo expulsos dos centros das cidades e das melhores regiões e passaram a ter que se deslocar cada vez mais entre casa e trabalho. Mas quando chegamos à década de 1990, a casa já se converteu novamente em instrumento de ganhos especulativos. Sob pressões especulativas, os valores dos imóveis cresceram de maneiras muitas vezes vertiginosas (embora também erráticas). O resultado geral é que muitas das pessoas nos estratos mais baixos de renda não conseguem encontrar onde morar. O resultado é uma crise habitacional, e a produção de uma escassez de moradia a preços acessíveis.

Cresci na Inglaterra. Lembro que, na minha juventude, havia pessoas em situação de rua, mas muito poucas. Hoje, entretanto, em grandes cidades como Londres, você encontra cada vez mais moradores de rua. Em Nova York, temos cerca de 60 mil pessoas em situação de rua. Uma enorme quantidade de crianças não tem lar – não no sentido de que você as vê nas ruas, mas de que elas ficam pingando de casa em casa, dormindo no sofá de parentes ou amigos; o chamado “couch surfing”. Não se criam comunidades solidárias assim.

Hoje vemos muita atividade de construção civil acontecendo em cidades ao redor do mundo. Porém, é tudo especulativo. A verdade é que estamos construindo cidades para que as pessoas especulem, e não cidades para que as pessoas vivam. Quando criamos cidades visando investimento em vez de moradia, o resultado é o tipo de situação que vemos em Nova York, onde há uma enorme crise de falta de moradia a preços acessíveis em meio a uma explosão de construção de imóveis para o mercado de alta renda. Você precisa de ao menos 1 milhão de dólares para entrar nesse mercado. A esmagadora maioria da população está mal servida em termos de valores de uso de moradia; tem pouquíssimo acesso a valores de uso adequados. Ao mesmo tempo, estamos construindo enormes apartamentos de luxo para os ultrarricos. Michael Bloomberg, o ex-prefeito de Nova York, tinha a ambição de que todo bilionário do mundo viesse investir na cidade e tivesse seu apartamento de luxo em um lugar como Park Avenue. Foi de fato o que aconteceu: há xeiques árabes e bilionários indianos, russos ou chineses que não moram em Nova York; eles só vêm para cá uma ou duas vezes ao ano e pronto. Isso não é base para sustentar condições dignas de vida e moradia para a massa da população.

Estamos construindo cidades, construindo imóveis, de uma forma que proporciona uma enorme liberdade para as classes altas, ao mesmo tempo que produz uma falta de liberdade para o resto da população. Penso que era algo dessa ordem que Marx tinha em mente quando fez o referido comentário segundo o qual o reino da necessidade tem de ser superado para que o reino da liberdade seja alcançado. O que temos hoje em Nova York é liberdade de investimento, liberdade para as classes mais altas escolherem onde querem morar, enquanto a esmagadora maioria da população fica quase sem escolha alguma. É assim que as liberdades de mercado limitam as possibilidades e, desse ponto de vista, penso que a perspectiva socialista seria seguir a sugestão de Polanyi, isto é: coletivizar a questão do acesso à liberdade, do acesso à moradia. Fazer com que ela deixe de ser algo balizado pelo mercado ao recolocá-la na esfera pública. Nossa bandeira seria: moradia como um bem público.

Esta é uma das ideias básicas do socialismo no sistema contemporâneo: colocar as coisas no domínio público. Encoraja-me um pouco o fato de que, na Inglaterra, o Partido Trabalhista britânico – um dos poucos partidos tradicionais que ainda parece se pautar por alguma urgência democrática vigorosa [Este comentário foi feito em janeiro de 2019, quando Jeremy Corbyn ainda era líder do Partido Trabalhista britânico, e posteriormente revisto no início de 2020, ainda nos primeiros meses do mandato de seu sucessor, Keir Starmer. (N. E.)] – propôs que muitas áreas da vida pública fossem reavidas do mercado, recuperadas para o domínio público – por exemplo, os transportes. Se você chegar para qualquer um na Inglaterra e disser que a gestão privada dos trens e ferrovias está produzindo um sistema de transportes mais eficiente, certamente vão rir da sua cara. As pessoas conhecem muito bem as consequências da privatização. Ela tem sido um desastre, uma zona, uma descoordenação. O mesmo vale para o transporte público nas cidades. Também temos a privatização do abastecimento hídrico, que supostamente seria algo maravilhoso, mas no fundo o que vemos, claro, é que a água passa a ser cobrada. É uma necessidade básica; não deveria ser prestada pelo mercado. Você precisa pagar pelo seu consumo de água e o serviço sequer é bom.

Portanto o Partido Trabalhista insistiu que há uma série de áreas que representam necessidades básicas para a população e não devem ser providenciadas pelo mercado. Prometeu acabar com o endividamento estudantil, acabar com essa coisa de acesso à educação via privatização, e se comprometeu a trabalhar no sentido de atender necessidades básicas por meio do domínio público. Há um anseio, penso eu, por retirar necessidades básicas do domínio do mercado, bolar formas alternativas de providenciá-las. Dá para fazer isso com educação, saúde, moradia e inclusive insumos alimentares básicos. De fato, há experiências de alguns países latino-americanos que buscaram subsidiar uma alimentação básica a populações de baixa renda. Não vejo motivo algum para não termos uma configuração básica de fornecimento alimentar para a maior parte das pessoas do mundo hoje.

Isso é o que significa dizer que o reino da liberdade só é possível quando realmente atendemos a todas as necessidades básicas que precisaremos para que todos possam levar uma vida decente e adequada. É em função dessa ideia de liberdade que uma sociedade socialista se pautaria. Mas precisamos de uma forma e um esforço coletivos para fazer isso. Infelizmente, o Partido Trabalhista britânico perdeu as eleições de lavada [As eleições gerais britânicas de dezembro de 2019 deram uma vitória acachapante para o Partido Conservador, liderado por Boris Johnson. Foi o quarto revés consecutivo do Partido Trabalhista nas eleições gerais – e sua pior derrota desde 1935. (N. E.)]. Mas estou convicto de que a derrota não se deve ao seu programa progressista (que angariou muito apoio público), e sim ao fracasso do partido em assumir uma postura decisiva em relação ao Brexit e à sua incapacidade de lidar com os ataques coordenados dos meios de comunicação de massa.

Por fim, um último ponto. Costuma-se dizer que para alcançar o socialismo temos de renunciar à nossa individualidade e abrir mão de algo. Bem, até certo ponto talvez algo disso seja verdade; no entanto há, como insistiu Polanyi, uma liberdade mais ampla a ser alcançada quando ultrapassarmos as realidades cruéis das liberdades individualizadas do mercado. Na minha leitura, Marx está nos dizendo que a tarefa é maximizar o reino da liberdade individual, mas que isso só pode acontecer quando resolvermos o reino da necessidade. A tarefa de uma sociedade socialista não é regular tudo o que acontece em uma sociedade; de modo algum. A tarefa de uma sociedade socialista é garantir que todas as necessidades básicas sejam atendidas – fornecidas livremente – para que então as pessoas possam fazer exatamente o que quiserem, quando quiserem.

Não é só que os indivíduos precisam poder acessar os recursos para tanto; eles também precisam ter tempo para isso. A liberdade – o tempo livre, o verdadeiro tempo livre – é algo absolutamente crucial para a ideia de uma sociedade socialista. Tempo genuinamente livre para que todos possam fazer o que quiserem: eis a medida daquilo a que o socialismo aspira. Se você perguntar a qualquer um agora: “Quanto tempo livre você tem?”, a resposta típica é: “Praticamente nenhum. Meu tempo está todo tomado por isso, aquilo e tudo o mais”. Se a verdadeira liberdade é um mundo em que temos tempo livre para fazer o que quisermos, então o projeto emancipatório socialista propõe que esse seja um eixo central da sua missão política. Isso é algo para o qual todos nós podemos e devemos nos empenhar.


Notas:

[1] Karl Marx, O capital: crítica da economia política, Livro III: O processo global da produção capitalista (trad. Rubens Enderle, Boitempo, 2017), p. 882.

[2] “Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem, portanto, de encontrar no mercado de mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois sentidos: de ser uma pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de, por outro lado, ser alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho.” Idem, O capital: crítica da economia política, Livro I: O processo de produção do capital (trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo, 2013), p. 244.

[3] Ibidem, p. 305-73.

[4] Ibidem, p. 309.

[5] Naomi Klein, A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre (trad. Vânia Cury, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2008).

[6] Karl Polanyi, A grande transformação: origens da nossa época (trad. Fanny Wrobel, Rio de Janeiro, Campus, 2000), p. 297.

[7] Ibidem.

[8] David Harvey, Justiça social e a cidade (trad. Armando Corrêa da Silva, São Paulo, Hucitec, 1980).

[9] Karl Polanyi, A grande transformação, cit., p. 297.

[10] Ibidem.

 

quarta-feira, 17 de abril de 2024

Dowbor expõe os novos aspectos do rentismo

 Pressão permanente por ampliar ganho dos acionistas leva corporações a devastar e precarizar. Lógica degradou a internet, onde agora pouco se cria ou colabora – pois às Big Techs interessam a disputa, o conflito e… a impotência social

 Duas diretrizes principais estruturam o sistema de gestão empresarial: maximização e competição. A maximização está centrada nos resultados financeiros e, para obter resultados, você deve superar os demais. Pode-se alegar adesão aos ESG, mas o verdadeiro jogo é sobre maximização e guerra econômica, quaisquer que sejam os custos. O que precisamos é de outro paradigma, baseado no crescimento equilibrado e na colaboração. A gestão precisa ser fundamentada em valores.

(Ladislau Dowbor)

 Manolito, não é verdade que existem outros valores, além do dinheiro? Manolito: Claro que existem, também temos cheques.

(Quino, Mafalda)

 Nesta nova era em rede, o paradigma tradicional da concorrência precisa de dar lugar à complementaridade, à conectividade e à cooperação.

(Keyu Jin, pág. 282) 1

 Dowbor expõe os novos aspectos do rentismo

Outras Palavras, por Ladislau Dowbor - 16.04.24

 Os modelos de gestão no mundo corporativo são estruturados para maximizar resultados, e estes são definidos como meta principal, lucros financeiros e dividendos. Alguns chamam isso de otimização e parece bom. Os resultados também devem ser alcançados no menor tempo possível, prendendo o mundo corporativo numa corrida permanente. Os resultados sistêmicos e de longo prazo são mantidos fora do horizonte do processo de decisão e os impactos em maior escala são qualificados como “externalidades”, lavando as mãos das empresas. Um exemplo clássico é a reação da indústria de armas de fogo às críticas: produzimos armas, mas não puxamos o gatilho. Outro exemplo interessante é o da indústria de alimentos ultraprocessados: seria responsabilidade do consumidor ler os rótulos e proteger sua saúde. Na verdade, isto levou a outra indústria em expansão, a resposta farmacêutica à explosão da obesidade. Assim, temos duas indústrias em expansão, uma que produz alimentos ruins, a outra que produz remédios, e pagamos por ambas. Produzir alimentos saudáveis ​​poderia ser uma escolha melhor, mas não no interesse da maximização dos lucros, quer nos setores alimentar, quer no setor farmacêutico.

 A concorrência na época de Adam Smith poderia parecer boa e até continuar positiva nas pequenas e médias empresas. Uma padaria tem que produzir bom pão a preços razoáveis, ou outra padaria aparecerá. Mas se uma empresa produtora de chocolate na Bélgica conseguir comprar cacau mais barato no Gana, fechando os olhos ao trabalho infantil, o concorrente responsável que respeita alguns direitos humanos básicos será ultrapassado. Se uma empresa da indústria de carne bovina na Europa conseguir um acordo melhor com a JBS no Brasil, quaisquer que sejam os custos externos para o Cerrado ou a Amazônia, isso forçará os concorrentes a recorrer a práticas semelhantes, para não serem superados. Quando um algoritmo da Pfizer fixa o preço do Paxlovid, comprimido para tratamento da covid-19, em 1.390 dólares, enquanto o custo de produção, segundo uma pesquisa da Universidade de Harvard, é de 13 dólares, está apenas calculando que os muito ricos pagarão qualquer coisa pela sua saúde, e este é o preço ideal em termos de maximização de lucro. Não se trata de maximizar o impacto na saúde, vender o produto com lucro razoável e torná-lo acessível a muitos.

 O estudo de Max Fisher sobre o impacto social, econômico e político dos meios de comunicação social deixa as questões evidentes. Facebook, YouTube e algumas plataformas semelhantes são basicamente empresas de marketing, vendendo nosso tempo de atenção para corporações. O marketing, por exemplo, representa 98% do faturamento da Meta. As taxas de marketing dependem de quantas pessoas são alcançadas, por quanto tempo e de outros critérios de “engajamento”. Como os algoritmos são estruturados para maximizar o engajamento, o que chega ao topo é o que atinge mais profundamente nossas entranhas, não o interesse intelectual ou cultural, a empatia ou a colaboração, mas motivações poderosas como o ódio, a confirmação do preconceito, o sentimento de pertencimento (“nós” contra “eles”) e outras emoções que maximizam a atenção. A profundidade disso pode ser vista em tantos conflitos e polarizações políticas absurdas ampliadas radicalmente pelas mídias sociais. O livro de Fisher é corretamente intitulado The Chaos Machine (em tradução livre, A Máquina do Caos).

 A legítima otimização do lucro pelo padeiro da época de Adam Smith, quando inserido em algoritmos na era da revolução digital, com conectividade global e vieses de confirmação de epidemias, tem impactos negativos dramáticos. Não se trata de sermos “bons” ou “maus”, trata-se de ampliar instintos poderosos que existem em todos nós. Tendemos a esquecer que ainda somos fundamentalmente primatas, com grande inteligência, sem dúvida, mas com motivações profundamente problemáticas em relação à finalidade para a qual utilizamos essa inteligência. Somos parcialmente racionais, mas a capacidade cerebral acrescida não eliminou as motivações mais profundas que herdamos. O estudo de Frans de Waal sobre Nosso Macaco Interior mostra isso muito claramente. É assim que somos feitos, em nosso DNA. As plataformas de comunicação podem aproveitar essas emoções, e usar a tecnologia moderna para maximizar o comportamento dos primatas é simplesmente errado.

 As mensagens do Facebook chegam a quase 4 bilhões, com horas de atenção, e têm custos radicalmente reduzidos em comparação com os anúncios de jornal que já tivemos. Somos apenas alimentados, e superalimentados, com mensagens tóxicas ajustadas individualmente. Anúncios e mensagens simplesmente colam nos seus olhos e filtram no fundo, gostemos ou não. 2

 Lembremo-nos de que estas são as principais corporações mundiais, vender o nosso tempo de atenção é o grande negócio do presente. Também aqui a maximização funciona de mãos dadas com a concorrência: se uma empresa utiliza este tipo de manipulação de envolvimento emocional, outras vão segui-la, porque funciona, e estão lutando pela mesma mercadoria, o nosso tempo de atenção pessoal. Que é, na verdade, o momento das nossas vidas, o nosso capital pessoal mais precioso. Robert Reich resume: “Aqueles que procuram a nossa atenção – anunciantes, profissionais de marketing e políticos – enfrentam uma concorrência crescente para agarrá-la. Quando conseguem, nossa atenção se desvia de todo o resto. É por isso que a atenção está se tornando um recurso tão escasso.” 3

 O sistema bancário brasileiro é outro exemplo rico. Neste caso, não se trata de competição, mas de conluio. Cinco bancos controlam 85% do crédito e cobram aproximadamente as mesmas taxas de juros extorsivas para famílias, empresas ou eventos sobre a dívida pública. Os juros da dívida de particulares durante 2023 oscilaram em torno de 55%, para uma inflação de cerca de 4%. Isto levou a uma fuga financeira para as famílias, equivalente a 10% do PIB, reduzindo drasticamente o poder de compra e, consequentemente, o estímulo da procura à economia. A taxa de juro média das empresas ronda os 23%, o que levou a uma redução do investimento produtivo. Para quem tem capital, tendo em conta que a procura está estagnada e as taxas de juro muito elevadas, se precisar de apoio financeiro, simplesmente optará por investir na dívida pública, pagando 8% líquido de inflação. Lucro sólido, sem risco, sem esforços de produção. Quando a renda financeira paga mais do que o investimento produtivo, é para lá que vai o dinheiro. Isto é simplesmente matar o ganso, com maximização a curto prazo. A economia está estagnada. 4

 Não se trata de altos e baixos do mercado. É um sistema estruturado de extração de renda. Uma dimensão é a desinformação. Antes de 1994, o Brasil enfrentava hiperinflação, atingindo mais de 50% ao mês. Isso levou os bancos a apresentarem taxas de juros mensais. A hiperinflação foi reduzida, mas os bancos continuam a apresentar taxas de juro todos os meses, o que as torna semelhantes às taxas de juro anuais do resto do mundo. A taxa de juros de 100% será apresentada, nos bancos ou no comércio, como 6%, ou preferencialmente 5,9%. As pessoas pensariam que as coisas não poderiam ser tão simples: seria uma usura escandalosa. No entanto, isto é precisamente o que acontece, ao estilo do Mercador de Veneza, num país onde muito poucas pessoas sabem calcular o equivalente anual a uma taxa de juro mensal. Todos os bancos do Brasil, inclusive os internacionais, como o Santander, utilizam esse esquema. Temos 72 milhões de adultos na lista de incumprimento de crédito, cerca de metade da população adulta.

 O Banco Central não deveria regular esse sistema de usura? Na Constituição de 1988, o artigo 192 estipulava que juros reais acima de 12% ao ano seriam considerados crime. Em 2003, com a entrada do recém-eleito Lula no governo, os bancos conseguiram eliminar o artigo 192. A usura, atualmente, não é crime, nem sequer é mencionada como questão legal. E o Banco Central, mais recentemente, foi declarado autônomo, colocado de facto nas mãos dos bancos e do sistema financeiro. O que levou a que a dívida pública pagasse as taxas de juro mais elevadas do mundo, basicamente ao mesmo sistema financeiro. Em 2023, a correspondente drenagem do orçamento atingiu o equivalente a 7% do PIB. O dreno financeiro improdutivo global que apresentei numa audiência do Congresso em Brasília é equivalente a 30% do PIB. Como grande parte dos congressistas tem forte investimento financeiro e, portanto, quer manter as taxas de juros tão altas quanto possível, isso se tornou uma deformação estrutural. É um drama para a economia e para a sociedade, mas é politicamente sólido. Até que ponto a democracia pode resistir quando a desigualdade atinge níveis absurdos?

 A drenagem dos recursos naturais é outro exemplo. A água é um bem público e está rapidamente se tornando um recurso escasso. O The Guardian nos traz comentários a respeito do Relatório sobre a Água Doce, mostrando o impacto da privatização: “Mais de 30 anos depois da privatização da água, com a urbanização generalizada e a intensificação agrícola, é necessária uma nova abordagem – incluindo uma potencial reforma dos reguladores da água –”, diz o relatório. “Com os níveis de confiança nas empresas de água afetados por repetidos relatórios de poluição e especulação, tanto o público como os profissionais da água querem mais transparência e garantia de que as empresas estão agindo no interesse da sociedade e do ambiente.” 5

  Apenas 14% dos rios no Reino Unido estão “em bom estado ecológico”. A lógica é simples: quando a gestão da água é privatizada, vender água é um bom negócio e o tratamento de esgotos é um custo. Enfrentamos problemas semelhantes em São Paulo, onde a Sabesp, empresa de gestão de água parcialmente privatizada, maximiza as vendas de água, mas mantém baixo o tratamento de esgotos. Paris mostrou o caminho, com a restauração da gestão pública de água e esgoto. Interesses equilibrados.

 Estes são apenas alguns exemplos. Mas o impacto geral é dramático. A Oxfam apresenta o impacto na sustentabilidade: “Desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo duplicaram as suas fortunas. Durante o mesmo período, quase cinco bilhões de pessoas em todo o mundo ficaram mais pobres. As dificuldades e a fome são uma realidade diária para muitas pessoas em todo o mundo. Ao ritmo atual, serão necessários 230 anos para acabar com a pobreza, mas poderemos ter o nosso primeiro trilionário em 10 anos. Uma enorme concentração do poder empresarial e monopolista global está exacerbando a desigualdade em toda a economia. Sete em cada dez das maiores empresas do mundo têm um CEO bilionário ou um bilionário como principal acionista. Por meio da pressão sobre os trabalhadores, da evasão fiscal, da privatização do Estado e do estímulo ao colapso climático, as empresas estão promovendo a desigualdade e agindo a serviço da entrega de uma riqueza cada vez maior aos seus proprietários ricos.” 6

 No Brasil, para uma população de 203 milhões de pessoas, temos 33 milhões passando fome e 125 milhões em insegurança alimentar. O que produzimos equivale a mais de quatro quilos de grãos por pessoa por dia. Não poderíamos pelo menos alimentar as crianças?

 Todos esses magnatas corporativos reivindicam a sua adesão aos princípios ESG, os principais políticos assinam as sucessivas resoluções da COP, a OCDE é severa na sua luta pelo BEPS, John Ruggie lutou durante uma década pelo respeito corporativo pelos direitos humanos, mas como ele próprio escreveu, “para corporações internacionais, são apenas negócios”. A verdade é que, a menos que as empresas se organizem eficazmente para o bem comum sistêmico e aprendam a colaborar, dado o seu poder global, as coisas não funcionarão. Estamos presos em um processo autodestrutivo. Até que ponto devemos entrar nesta crise econômica, social e ambiental crítica, até termos uma reação global? Fizemos isso depois da Segunda Guerra Mundial, criando um mínimo de governança global. Isso foi em outra época.

 É claro que podemos imaginar que fomos feitos à imagem de Deus. Stephen Jay Gould, em seu Wonderful Life, é mais pé no chão, lembrando-nos que somos “meros macacos nus que adotaram uma postura ereta”. Macacos nus de alta tecnologia. Eles não veem o que está acontecendo? Devemos aprender racionalmente como lidar com a irracionalidade. Entretanto, os políticos aprenderam a navegar com base nos nossos piores instintos. Funciona.

 Notas

1 Keyu Jin, The New China Playbook: Beyond Socialism and Capitalism , Viking, Nova York, 2023.
2 Pallavi Rao, Visualizing How Big Tech Companies Make Their Billions , Visual Capitalist, dezembro de 2023.
3 Robert Reich – Boletim informativo, Republicanos fazem afirmações selvagens sobre os perigos da imigração. Aqui está a verdade , The Guardian, 12 de janeiro de 2024.
4 L. Dowbor, The Age of Unproductive Capital: New Architectures of Power , Cambridge Scholars, 2019.
5 Sandra Laville, As ‘falhas’ conservadoras levaram a mais poluição de esgoto, dizem a água especialistas , The Guardian, 13 de janeiro de 2024.
Inequality Inc , Oxfam, 14 de janeiro de 2024.

 

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Dados: o Norte global quer um novo Potosí

 Avança, na OMC, acordo que sujeita Estados e sociedades aos algoritmos das Big Techs e ao “livre” comércio de dados. Nova ameaça colonialista reduz países do Sul a produtores de matérias primas, num setor central para a economia do século XXI

Por Sofia Scasserra, na Revista Anfíbia | Tradução: Rôney Rodrigues

Desde 1998 estamos envolvidos no (mal)chamado programa de comércio eletrônico ou, como recentemente começou a ser chamado, de economia digital. O projeto materializou-se em 2017 na negociação de um Acordo sobre Comércio Eletrônico entre 88 vários países que decidiram fazer o que no jargão se chama de “iniciativa de declaração conjunta”. O texto avança na OMC (Organização Mundial do Comércio) e, se assinado, será vinculativo e executável para todos os membros.

Poucos sabem disso em detalhes. Permanece opaco por muitos atores políticos, especialistas em tecnologia, movimentos sociais e formuladores de políticas públicas. E representa, em suma, um verdadeiro problema para regular a indústria digital, para gerar uma inserção inteligente da Argentina nas cadeias globais de valor de produtos baseados em inteligência artificial e para garantir que a tecnologia esteja a serviço da sociedade com padrões verificáveis.

A matéria-prima

Para que algo seja matéria-deve existir uma indústria que lhe dê valor e o torne vendável de forma massiva no mercado. Os dados, então, são os principais produtos da indústria digital. Mas do que falamos quando falamos da indústria digital? Num processo industrial, uma matéria-prima heterogênea e dissimilar entra em uma fábrica, é processada até a obtenção de um produto homogêneo e idêntico, e são realizados controles de qualidade para que possa ser colocada de forma massiva no mercado. Este processo geral é aplicável a um pano, a um litro de óleo e até a um carro.

Os dados, nesse caso, entram na fábrica algorítmica: um maquinário treinado para transformá-los em informações facilmente vendáveis e muito valiosas para o mercado. Os controles de qualidade nada mais são do que o treinamento que lhes damos através da internet. Todos os dados que geramos tornam-se informações valiosas para as empresas: elas os utilizam para construir nossos perfis como consumidores. Quando aceitamos ou rejeitamos ofertas, quando dizemos que uma tradução está mal feita ou quando simplesmente ignoramos uma sugestão de publicação, estamos ajudando a verificar se as previsões feitas a nosso respeito são verdadeiras ou não. Depois que essas grandes empresas das indústrias digitais verificam as informações, elas as vendem no mercado para empresas menores que pagam para poder anunciar aos consumidores que desejam comprar seus produtos.

Esta indústria digital pode ser replicada nas mais diversas áreas: desde campanhas políticas, passando pela produção e logística de produtos, até à otimização na gestão dos trabalhadores. Estamos, cada vez mais, imersos nesta enorme fábrica de informações sobre quem somos e sobre as nossas relações humanas.

As controvérsias em nível global, porém, não esperaram. Embora possa ser muito útil para a economia e muito confortável em alguns aspectos, os abusos e o enorme poder concedido a muitas empresas tecnológicas deram origem a debates sobre a sua regulamentação. Deveríamos deixar escândalos como o Cambridge Analytica acontecerem sem quaisquer consequências? É lícito que a engenharia do nosso comportamento acabe matando uma menina de 14 anos?

Nesse sentido, diversas instâncias reguladoras são discutidas na ONU através, por exemplo, do Pacto Digital Global, iniciativa que busca lançar as bases para o que se espera do futuro digital das nações, emitindo princípios que os Estados devem seguir ao regular e desenhar de políticas públicas. Mas há uma agenda regulatória que vem avançando de forma crescente há alguns anos e que já teve avanços em acordos plurilaterais entre duas ou mais nações: a agenda de livre comércio na economia digital.

O acordo

O acordo de economia digital tem muitas partes e mudanças dependendo se está dentro da OMC ou num acordo bilateral entre países. Existem vários limites, definições e artigos, mas os artigos básicos e seus efeitos permanecem de negociação em negociação. O seu objetivo é liberalizar a cadeia produtiva, parte por parte, tentando fazer com que os grandes players da indústria digital percam concorrentes e se estabeleçam como donos dos monopólios que geram maior valor acrescentado na economia.

O documento estabelece a livre mobilidade dos dados: as empresas têm a possibilidade de levar toda a informação recolhida para onde quiserem, impedindo o acesso dos Estados e proibindo requisitos de localização ou processamento. Os dados são o que a economia chama de bens “não rivais”, aqueles que mais de uma pessoa pode consumir ao mesmo tempo sem que isso implique o seu esgotamento. Se bebo um copo de água ele acaba instantaneamente, mas o mesmo não acontece quando subo num trem, vejo um quadro num museu ou faço uma aula: são bens e serviços que posso consumir com outras pessoas e o quanto mais os consumimos, mais nos beneficiamos como sociedade.

A mesma base de dados pode, então, ser utilizada para ganhos empresariais, para conceber políticas públicas, para pesquisa acadêmica, para compreender processos demográficos ou para conceber novas ferramentas para comunidades específicas. Concentrar estes dados em poucas mãos e limitar o seu acesso equivaleria a construir um trem para uso de apenas uma pessoa, algo que claramente não faz sentido. Se acrescentarmos a isto que a maior parte dos dados são armazenados em paraísos fiscais para escapar das mãos dos reguladores e das comunidades que os geraram, é possível perceber a intenção monopolista desta captura de valor.

O acordo também estabelece que os dados podem sair da fronteira livres de taxas alfandegárias. Ou seja, o bem mais valioso atualmente nas economias pode ser extraído por pessoas ou empresas estrangeiras sem deixar rendimentos para a população que o gerou. Igual à extração de prata de Potosí: extrativismo de matéria-prima sem qualquer benefício para o território que a possui.

Outro dos seus artigos determina que um Estado não pode exigir que uma empresa tenha acesso aos algoritmos e ao seu código fonte associado (ou seja, às instruções executadas pelo algoritmo escrito na linguagem de programação específica) para auditar ou transferir tecnologia. Uma proposta não menos controversa. O perigo de um sistema automatizado desenvolvido com preconceitos discriminatórios decidir sobre nossas vidas já está documentado em livros, artigos acadêmicos e campanhas de divulgação. A Liga da Justiça Algorítmica foi criada para lutar contra isso.

Como se não bastasse, o acordo de livre comércio na economia digital tem outras pérolas. Propõe-se isentar as plataformas da responsabilidade pelos conteúdos que publicam. Num mundo onde se debate o impacto das notícias falsas na democracia ou da venda de conteúdos de pedofilia nas redes sociais, isto torna-se cada vez mais problemático. Todas estas questões devem ser debatidas por especialistas para alcançar urgentemente uma regulamentação que evite os efeitos nocivos deste conteúdo e a sua circulação nas redes. A assinatura do acordo vai na direção oposta.

Salve-se quem puder

Hoje existe um discurso hegemônico […] que diz que aqueles que estudam programação e trabalham para o Vale do Silício exportando serviços de informática não só serão salvos, mas levarão a região a ser o gigante que sempre sonhou. Não estaremos exportando a commodity da hora humana do programador para que ele possa entrar no mercado numa tecnologia estrangeira como, por exemplo, um telefone celular? […] O acordo de economia digital limita o acesso aos dados e restringe a oportunidade de debater como regular a “fábrica algorítmica” das indústrias digitais com o objetivo de avançar para uma sociedade mais humana e com diversas tecnologias no mercado internacional.

Em outubro de 2023, o governo de Joe Biden retirou parte do projeto que havia apresentado para negociação anos atrás: os artigos que decidiram reconsiderar são a proibição da auditoria algorítmica e a livre mobilidade de dados. Até o império tecnológico que são os Estados Unidos percebeu o grande problema que estes pontos implicavam. Embora o acordo cambaleie na OMC, estas regulamentações avançam noutros acordos de comércio livre.

É por esta razão que organizações da sociedade civil que defendem os direitos digitais na região, ONGs especializadas em questões de livre comércio, entre outras, assinaram uma carta pedindo aos Estados que se retirassem da negociação e reconsiderassem, primeiro, quais são as regulamentações nacionais necessárias para criar espaços regulatórios que conduzam à inovação e ao desenvolvimento tecnológico regional. A reunião ministerial da OMC que acontecerá em Abu Dhabi de 26 a 29 de fevereiro deste ano busca avançar na negociação e colocar o projeto de volta na mesa, garantindo que os 88 países que dele fazem parte cheguem a um acordo.

Existe um caminho possível, e parece ser o de criar tecnologias com elevado valor acrescentado, qualidade e padrões globais, novas e inteligentes. Este acordo empurra na direção oposta a esses objetivos. Esta não é a primeira vez que alguns burocratas na Suíça – que entendem muito sobre comércio liberal, mas pouco sobre economias mais humanas – negociam acordos de comércio livre para decidir o destino da região. Temos muito a oferecer no mercado global. Não vamos permitir novos saques. Não sejamos Potosí novamente.

 

domingo, 28 de janeiro de 2024

CRÔNICA DE UMA ANGÚSTIA PLANETÁRIA.

 Do face do João Lopes...

"O caos social, climático e econômico que vivemos não se traduz em estatísticas: são dramas terríveis que podiam ser evitados. Sabemos o que precisa ser feito e há recursos suficientes… mas seguimos como expectadores, submetidos a estúpidos bilionários"

Por Ladislau Dowbor -  22/01/2024 - Outras Palavras 

Uma visão geral dos nossos problemas, como humanidade, não é um exercício surrealista. Tanto progresso tecnológico, mas tanta violência e destruição, tanto sofrimento. E tantas narrativas sobre quem são os bons e quem são os maus. De que lado você está? A única certeza é que sou corintiano. O resto virou um caos.

(Ladislau Dowbor)

Eu sou economista. Minha principal área de interesse é linguística, falo vários idiomas, leio a Bíblia em hebraico, Dostoiévski em russo, Dante em italiano, Jorge Amado em português brasileiro e assim por diante. Sim, e Keynes em inglês, claro. Entrei na economia porque senti a necessidade de entender nossa bagunça. Isso foi em 1963, no dramaticamente desigual Nordeste do Brasil. Com tanto sofrimento e miséria diante dos opulentos magnatas da cana-de-açúcar, não pude deixar de sentir o absurdo. Quão profunda é a nossa capacidade de fingir que não vemos? Não foi porque estudei economia que fiquei indignado: a indignação me levou a esses estudos. Encontrei as respostas? O que descobri foi uma mistura de justificativas, em nome dos mercados livres – pode-se justificar qualquer coisa com um tanto de matemática e modelos – e construções idealistas. Eu ainda estou procurando. Não estamos todos?

Fiz o dever de casa, estudei com bons banqueiros na Suíça, com especialistas em planejamento na Polônia, ajudei países em diversos continentes, até trabalhei como consultor do Secretário Geral da ONU. Assisti à descolonização, à ascensão dos direitos das mulheres, à erosão do apartheid na África do Sul, a tantas esperanças. E atualmente me aferro às dramáticas estatísticas, a desigualdade, a fome, o desastre climático, a perda de biodiversidade e toda esta violência. Mas essas coisas não são estatísticas para mim, tenho 82 anos e ainda não suporto ver uma mãe com filhos dormindo na calçada de São Paulo, a cidade mais rica da América Latina, enquanto as pessoas atarefadas e os carros circulam de um lado para o outro. Que tipo de animal nós somos? Homo sapiens?

Assisto às horríveis notícias sobre a calamidade que ocorre na Palestina/Israel. Será essa uma questão de lados? Bem, cada um dos lados tenta fazer veicular na mídia as coisas mais horríveis que o “outro lado” fez, e temos a possibilidade de escolher bebês, crianças, mulheres, numa demonstração de barbárie de ambos os lados, um campeonato de notícias. Dependendo de quem é o dono da notícia, teremos mais barbárie de um lado ou de outro. E depois temos os comerciais, com rapazes sorridentes, moças lindas e as oportunidades que não devemos perder. Não olhe para cima. O que é isso tudo? Cada um de nós viveu a sua própria história e ela pesa.

Nasci em 1941, na fronteira espanhola, de nascimento seria catalão. Durante a guerra, na Europa, ninguém podia escolher o local de nascimento, cada um nascia onde quer que os seus pais tenham sido empurrados. Os meus pais, poloneses, um engenheiro e uma médica, escaparam à invasão alemã em 1939 através da fronteira sul e chegaram a França. Não eram judeus, mas se tivessem permanecido na Polônia o meu pai teria terminado, como engenheiro mecânico, em trabalhos forçados em fábricas alemãs.

Depois os alemães invadiram França, por isso os meus pais fugiram para sul, para a fronteira espanhola, mas esta foi fechada por causa de outra guerra, a tragédia espanhola a que o mundo assistiu com curiosidade, discutindo que lados tomar, no final dos anos 1930. Assim, nasci na fronteira espanhola, na França, de pais poloneses.

Como família, estávamos presos nos Pireneus, meus pais e quatro filhos. Eu me lembro, provavelmente tinha quatro anos, quando íamos para o campo com minha mãe colhendo pissenlit, um tipo de erva que se podia usar para comer ou fazer chá. Muitas gangues buscaram a sobrevivência na confusão geral, meu pai foi pego por milícias armadas, torturado, mas sobreviveu. É impressionante como produzimos milhares de filmes glorificando guerras, soldados heroicos, belos tanques, bombas. Vende bem. Temos que fazer uma pesquisa profunda para encontrar um filme sobre o que significa para as famílias viverem numa guerra. A miséria, o frio, a fome, a insegurança e a angústia permanentes. Angústia, em francês, é uma palavra mais forte. Não me fale sobre guerras. Mudamo-nos para o Brasil porque os meus pais, tendo vivido as duas Guerras Mundiais, perderam a confiança na Europa e na sua barbárie cultural. Sou, portanto, atualmente um economista brasileiro.

Somos bons em pensamento mágico. Os dramas simplesmente desaparecerão? Na história, sempre deixamos as coisas apodrecerem a tal ponto que a insegurança, as frustrações e a ganância evoluíram para formas ideais de libertação de pressão, através do ódio, da violência e da guerra. Acabei de ler um livro lindo, As Cruzadas Vistas pelos Árabes [The Crusades Seen by the Arabs], de Amin Maalouf. Não anticristão, apenas pesquisa sólida nos documentos do Oriente Médio daquela época, por volta do século XIII. As batalhas, as destruições, os 

massacres, os estupros, as humilhações. Por cristãos tementes a Deus, por xiitas, por sunitas ou entre si. Os dois séculos de guerras bárbaras foram seguidos pelas invasões mongóis. Mais massacres. Queimar livros não foi uma invenção nazista, na época já era um esporte para todos os lados.

Chegamos em 2024. Acabamos de sair da guerra do Afeganistão, com resultados trágicos para todos. E a guerra do Iraque, com a confusão que vemos atualmente. E o drama da Líbia. No momento em que escrevo, temos a Ucrânia, claro – Zelensky queixa-se de que o conflito na Palestina nos distrai –, mas a trágica guerra do Iêmen está fora dos noticiários, não são europeus brancos que estão a morrer. E temos os massacres no Sudão, claro, a África é muito

instável. Que curiosos os golpes de Estado no Mali, no Níger e em Burkina Faso! Por que eles simplesmente não respeitam a democracia? Bom, eu trabalhei nessas regiões sete anos. Já vi milhares de pessoas morrerem de cólera. Não temos as tecnologias para garantir água potável? Bem, Bezos precisa fazer uma viagem ao espaço. Seria ele um estúpido? Zuckerberg é idiota? Larry Fink? Prefiro considerá-los high tech assholes Sim, sei bem que esta não é uma categoria econômica. Mas eles não veem o que acontece com o mundo?

Os humanos adoram narrativas. Pode-se justificar praticamente qualquer coisa, e a humanidade é impressionantemente propensa a acreditar em praticamente qualquer coisa. Se há uma narrativa da qual temos que nos livrar é a de que você pode egoisticamente buscar a sua própria prosperidade, sem dar a mínima para o que acontece com os outros, e o resultado será uma contribuição para o bem comum. É como se a ganância individual resultasse em prosperidade geral. Bem, isso não acontece. A dura realidade é que estamos destruindo o nosso mundo pelo

poder e para a riqueza de uns poucos felizes. Você tem que ser um estúpido em Wall Street ou na ‘City’ para acreditar que “a ganância é boa”. Não é apenas um desastre para o ambiente que nos sustenta, é um desastre para a humanidade e, portanto, para a democracia. Bilhões de pessoas frustradas em todo o mundo acreditarão em quem quer que se aproveite da sua frustração e do seu ódio. O mundo não carece de demagogos.

Como podemos acreditar na narrativa da “externalidade”? É coisa que se ouve e lê em cada esquina. Sim, produzimos armas, mas é só para a segurança das pessoas – e não somos nós que puxamos o gatilho. Só produzimos as armas e respondemos a exigências legítimas. O mundo está se afogando em dívidas abusivas? Bem, aqueles que contraem dívidas deveriam ser mais responsáveis. Shaxson vai direto ao ponto: “Precisamos de financiamento, mas a medida da contribuição desse financiamento para a nossa economia não é se ele vai gerar bilionários e grandes lucros, mas se será capaz de nos fornecer serviços úteis a um custo razoável” (p.12).1 Mas estamos perante gigantes financeiros, e eles financiam tudo o que lhes trará mais

dinheiro, sejam lá quais forem os dramas sociais ou ambientais que essas atividades produzam. Eles são seguros, grandes demais para falir. Assegurados pelos nossos impostos, quando necessário. Em poucos anos as externalidades serão internas para todos e já estamos sentindo isso.

Marjorie Kelly, como tantos economistas hoje em dia, separa o setor financeiro (PIB do setor financeiro) e o crescimento do resto da economia (PIB do setor real), “que é a economia real de empregos e gastos em bens e serviços. Quando separamos estes dois, vemos que cerca de um terço do PIB está sendo extraído pelas finanças. E essa extração é muito maior do que já foi no passado” (p.147).2 Calculei os números correspondentes para o Brasil e cheguei aproximadamente ao mesmo número: mais de 30% do PIB drenado pelo rentismo financeiro improdutivo.3 Este mundo era para ser um em que os capitalistas lutam para ganhar o seu dinheiro, servindo-nos cada vez melhor. Em contraste, a Oxfam apresenta o quadro real: “Nos termos atuais, os países de rendimento baixo e médio-baixo serão forçados a pagar quase meio bilhão de dólares todos os dias em juros e reembolsos de dívidas entre hoje e 2029. 

Países inteiros estão à beira da falência, com os mais pobres os países gastam hoje quatro vezes mais no pagamento de dívidas a credores ricos do que em cuidados de saúde”.4 Isto representa mais da metade dos países mais pobres do mundo, 2,4 mil milhões de pessoas.

Se demorarmos muito para engolir as narrativas, quem pode nos ajudar são os think tanks, atualmente uma enorme rede de formação de opinião. Shaxson nos traz “a organização ideológica mais influente”, a Atlas Economic Research Foundation, bem como “a Templeton Foundation, financiada por Wall Street, as redes do magnata dos fundos de hedge Robert Mercer (um apoiador de Steve Bannon e Breibart News), e o que alguns chamam de “Kochtopus” – o nexo tentacular de ligações políticas e financeiras financiadas pelos irmãos bilionários Charles e David Koch. Os membros da Atlas incluem o American Enterprise Institute, o igualmente influente American Legislative Exchange Council (ALEC), o Cato Institute, a Freedom Foundation, a Heritage Foundation e, no momento em que este artigo foi escrito, mais de 180 outras instituições. E essas são apenas as redes de financiamento nos Estados Unidos: a Atlas encheu o mundo com 475 instituições parceiras – e a aumentar” (p.127). Seriam todos cegos?

O sistema tornou-se disfuncional. Os interesses dominantes são atualmente globais, sejam eles financeiros, de comunicação, de informação, de comércio de mercadorias ou de comércio de informação privada. Mas não temos capacidade de regulação global, exceto pelas enfraquecidas instituições internacionais herdadas do pós-Segunda Guerra Mundial, há 80 anos. Ainda temos autoridades que verificam as nossas bagagens nos aeroportos internacionais, enquanto os fluxos econômicos reais são apenas entradas virtuais em computadores. E tantas finanças desonestas e paraísos fiscais, tantas vendas ilegais de armas, tantos oligarcas navegando na confusão institucional e jurídica global.

Sim, sabemos o que deve ser feito, temos isso nos ODSs, no ESG, no Global Green New Deal, no Pacto Global, entre outros. Mas estamos desamparados, apenas observando o mundo descendo pelas corredeiras e se aproximando das cachoeiras. Apenas para lembrar que as tecnologias que dominamos e os recursos financeiros que desperdiçamos são mais do que suficientes para garantir que temos o suficiente para todos, sem destruir o nosso futuro. A ganância é para estúpidos. E constatar como estamos à deriva em meio a essa catástrofe em câmera lenta é repugnante.

LADISLAU DOWBOR

Economista e professor titular de pós-graduação da PUC-SP. Foi consultor de diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios, além de várias organizações do sistema“S”. Autor e co-autor de cerca de 45 livros, toda sua produção intelectual está disponível online no website.

Impressões sobre o Seminário Reindustrialização em novas bases e apoio à inovação nas empresa

Mesas:

Revolução da Inteligência Artificial e seus impactos na sociedade

Bioeconomia como estratégia de desenvolvimento

Realizadas em 23.01.24 

 

Objetivo

Transmitir minhas impressões sobre o Seminário Reindustrialização em novas bases e apoio à inovação nas empresas, em especial, sobre as mesas que aconteceram no dia 23.01: Revolução da Inteligência Artificial e seus impactos na sociedade e Bioeconomia como estratégia de desenvolvimento.

 Justificativa

Buscar a socialização das percepções adquiridas durante as palestras proferidas, bem como abrir discussão com os companheiros/as da DITEC sobre os meus entendimentos, no sentido de equalizar o pensamento/conhecimento entre e com todos/as integrantes da Diretoria.

 As Palestras

- Revolução da Inteligência Artificial e seus impactos na sociedade

Coordenação: Fernando Peregrino, chefe de Gabinete da Finep

Palestrantes: Edmundo Souza – UFRJ/COPPE; Virgílio Almeida – UFMG; Anderson Souza – UFG; Fábio Borges – LNCC; Eliza Reis – ABC.

- Bioeconomia como estratégia de desenvolvimento

Coordenação: Fernando Peregrino, chefe de Gabinete da Finep

Palestrantes: Rodrigo Rollembrerg – MDIC; Ana Euler – EMBRAPA; Henrique Pereira – INPA; Paulo Renato Cabral – SEBRAE.

 Metodologia

Tentar juntar em um texto os vários tópicos colocados nas falas de cada palestrantes, a partir das anotações que fiz em cada palestra. Agrupando as anotações em cinco blocos: conceitualização/definição; desvantagens; vantagens/o que fazer; minha intervenção; conclusão.

Identifiquei 3 linhas de agrupamento com os totais a seguir:  3 pontos de conceituação/definição, 18 negativos, e 20 positivos. Segue abaixo um resumo das anotações.

Revolução da Inteligência Artificial e seus impactos na sociedade

Resumo

Dois palestrantes fizeram falas que poderiam ser entendidas como um esboço de definição do que seria uma Inteligência Artificial. A IA seria uma nova revolução industrial, uma nova onda ou um novo iluminismo. O que ponho em discussão ao final.

No ponto desvantagens, houve um grande número de coincidências como a perda do emprego; o pouco ou a falta de investimentos na Educação e na Ciência; as “Fakes News”; preocupação com o impacto nas eleições; o avanço das IAs sobre o trabalho intelectual; os riscos em relação ao aumento das desigualdades; a percepção pública negativa, em contrapartida aos donos do meios de produção e do setor financeiro; os erros e inconsistências que ainda aparecem nas produções de IAs; o atraso do Brasil no campo de desenvolvimento e regulação das IAs; a falta de competividade; os baixos valores das bolsas de pesquisa e desenvolvimento; a perda de cérebros para o exterior, entre outros.

Como pontos positivos ou o que fazer, temos várias coincidências também. Abro com a fala de que ainda somos nós que fazemos. A necessidade de um grande pacto social que deve ser somada às falas de criação de uma política de regulação com participação das universidades e sociedade; políticas públicas que não visem a substituição dos humanos; trabalhar com o trinômio IA – Humano – Robótica; IA no meio ambiente, agricultura, educação e indústria; estreitar a IA com a academia; retenção de cérebros. Temos ainda a necessidade de gerar força de trabalho com criticidade; aumento dos investimentos, também em recursos humanos; entender as IAs como novas janelas de oportunidades; investir em um pensamento mais generalista; as IAs são uma realidade, e são de grande capilaridade; combater o analfabetismo digital; IA para além dos profissionais de TI; pensamento para além da caixinha; divulgar os trabalhos de cientistas, em especial, qual o papel do cientistas e o que fazem.

 A intervenção

Foquei minha intervenção em quatro pontos, apesar da vontade de ir um pouco além.

O primeiro foi a quase que unânime fala dos palestrantes de que o Brasil deveria melhorar sua competitividade/inovação, como também foi a preocupação com o aumento da desigualdade. Por conta dessa dualidade – vivemos em um sistema que incentiva a competitividade e a desigualdade. Propus que o Brasil inovasse buscando o desenvolvimento de sua IA com cooperação e não para a competitividade, pois a possibilidade de aumento da desigualdade será certa se o desenvolvimento for focado na competição. Deviríamos trabalhar mais a cooperação e mudar o modelo de produção do sistema.

O segundo ponto foi na mesma linha acima, mas no campo da Educação. Iniciei falando que senti falta da Cultura em todas as falas, pois todos os processos de mudanças também são culturais, em especial os de dominação e de independência, se não forem pelas armas. Se vamos investir na Educação, que seja além da digital. Que se invista em um outro modelo de produção do conhecimento, pois o que está posto é para atender o modelo de produção do sistema, que depende da desigualdade e da competitividade.

O terceiro ponto, foi quanto à necessidade da regulamentação. Lembrei que somos capazes de produzir excelentes estatutos e Leis, mas somos péssimos em fazer cumprir os mesmos. Dei o exemplo do Marco Civil da Internet, que mesmo depois de quase destruído na Câmara Federal, é considerado um dos melhores do mundo porque foi amplamente discutido com a sociedade. Hoje, temos uma comissão no Senado que não sabemos quem são e qual o conhecimento para tal responsabilidade, e sequer se tem terraplanista em sua composição. Não resolvemos a questão das redes sociais e queremos regulamentar a IA.

Termino dizendo que a mesma tecnologia que mata, é a que salva. A tecnologia que permite o “fake News” é a mesma que transmite a boa informação. E que hoje, ainda somos nós, humanos, que decidimos o como usar as tecnologias.

Conclusão

Acredito que o impacto da IA, está mais para a prensa de Gutemberg do que para a revolução industrial, bem como longe do Iluminismo, que buscava a razão, pois ainda não temos IA com razão ou mesmo ética. Uma nova onda, pode ser, só não sabemos se tsunami.

Ficou patente entre os palestrantes “técnicos” – a exceção, Elisa, é socióloga - a existência de um certo afastamento entre a academia e o dia a dia da população. Especialmente quando ainda se referem a tríplice hélice, como se ela funcionasse harmonicamente, quando na realidade o governo e a universidade atendem a necessidade da indústria. Na realidade, atendem ao modelo de produção capitalista, onde o sistema (na hélice – indústria) demanda as Leis para que o governo promova e influencia nos currículos educacionais, para que suas necessidades sejam atendidas. A discussão hoje seria a hélice quíntupla, onde a sociedade, em iguais condições com o governo, indústria e universidades discutiriam sempre levando em consideração os impactos ambientais, onde as pás seriam:  sociedade – ambiente – universidade – governo – indústria.

A questão da ética foi tocada na fala da Elisa e do Edmundo, se não me engano, mas não foi a tônica, quando na minha opinião, seria uma das questões primordiais. Não dá mais para engolir, por exemplo, a Monsanto lançar um produto que aumenta a produção leiteira em uns 20l por vaca, e vacas e humanos adoecerem, nascerem defeituosos, e a empresa dizer que: cientificamente o processo está certo, o problema foi na tecnologia aplicada... RIDÍCULO e desrespeitoso, uma vez que os cientistas e os desenvolvedores das tecnologias são humanos que erram e acertam.

Outro ponto foi quanto ao desenvolvimento das IAs: senti uma concordância implícita, de que não passariam de máquinas treinadas, quando as discussões sobre atingirem ou não consciência e ética fervilham. No momento são treinadas e a minha preocupação está em qual modelo de sociedade estão sendo treinadas... se nesse modelo em que vivemos, com certeza irão existir Elysiuns, e depois SkayNets...

Precisamos abandonar os quadrados impostos pelo sistema, com ênfase em sua fase neoliberal. O palestrante Anderson Souza, que defendeu explicitamente a tríplice hélice, foi o único “técnico” que defendeu a questão do ser generalista, encaminhada também pela Elisa, quando falou em sair do quadrado. O olhar deve ser mais humano, como era a Economia até o final do século XVIII - Economia Político Científica, hoje só Economia onde só leva em conta se o número é azul ou vermelho. Somente com uma visão contextualizada poderemos realmente avançar científica e tecnologicamente na direção do bem-estar da população, e não apenas de uma minoria.

Obs:

·   O palestrante Virgílio comentou que o governo dos EUA, em 2023, investiu 250 bi de dólares em pesquisas sobre a IA. Lembro que neste mesmo período, o mesmo EUA, investiu 850 bi de dólares em armamento. Qual a prioridade do sistema?

    Como ficará a questão da proteção dos dados individuais e dos bancos de dados nacionais com resultados das pesquisas desenvolvidas nas diversas áreas? Serão de livre acesso? A questões de segurança nacional, como ficará? Uma vez que as IAs se desenvolvem capturando estas e outras informações?

·        A Universidade de Goiás criou a graduação em IA tendo o SISU como a porta de acesso.

 Bioeconomia como estratégia de desenvolvimento

 Resumo

Apesar de não ser a “minha praia”, mas por acreditar na linha generalista, a nossa preocupação deve principalmente estar nas consequências, nas externalidades boas ou ruins de nossas atitudes - tanto as profissionais quanto as de relacionamento.

Lembrando Keynes, que define o economista mestre como aquele que, entre outros saberes, deve ter algum conhecimento em matemática, filosofia, história e ser um estadista. Devemos ter alguma atenção sobre as demais áreas do conhecimento, em especial, sobre aquela que impacta em todas as vidas... a ambiental. Portanto, com outro olhar, seguem minhas impressões sobre o colocado pelos palestrantes.

 Após a abertura do Rodrigo Rollemberg, do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços, apresentando a linha de ação e números financeiros, assistimos às falas dos representantes da EMBRAPA, INPA e SEBRAE.

 Nada de novo no front da EMBRAPA, para além da capacidade da empresa e de seus resultados. Com foco na região amazônica mostrou seus avanços, projetos e sua atuação no resgate e manutenção da biodiversidade da floresta e de seus povos. Por parte do INPA a mesma linha. A surpresa, para minha pessoa, veio na apresentação do SEBRAE, em especial no projeto INOVA (Inova Amazônia, Cerradoa, Pampa, ...), onde trabalha o empreendedorismo junto à população local com ênfase nos produtos gerados a partir da floresta, sem renunciar à manutenção da biodiversidade e a cultura local. Onde surpreendeu a representante da EMBRAPA, quando foi apresentado o número de 60% dos projetos inscritos tinham mulheres em seus comandos, contra o número nacional de 20%, como lembrou a Euler (EMBRAPA).

Foi apresentado como exemplo uma cooperativa de mulheres que vende suas saboarias e shampoos e outros produtos na avenida Paulista e no mundo. Mas a grande sensação que causou certo alvoroço, foi um chá proveniente de uma árvore africana, usado em ritual de passagens da vida criança para adolescência e adulta, que após pesquisa por um brasileiro, descobriu em uma árvore brasileira os mesmos componentes do chá. O alvoroço foi quando o palestrante informou que o chá “resetava” a mente... todos queriam experimentar...

Brincadeiras à parte, o produto não é vendido em farmácias, é usado por psicólogos e afins e pelo exército americano, para tratamento de seus veteranos traumatizados.

Encerrando, a novidade para mim foi esse trabalho do SEBRAE, devido à minha implicância com a utilização do termo empreendedorismo dado pela mídia em subserviência do sistema capitalista.

Há braços.

Sérgio Mesquita