A democracia brasileira está em perigo,
e só as forças políticas de esquerda e de centro-esquerda a podem salvar. Mas
só podem ter êxito nesta exigente tarefa caso se unam.
Publicado em 26/01/2018
Por
Boaventura de Sousa Santos.
Em momentos sombrios como os nossos é
imperativo escutar vozes de lucidez de pessoas que conhecem nosso país. Entre
tantas, sobressai o sociólogo português Boaventura de Souza Santo.É considerado
uma das melhores cabeças que pensam o mundo, a globalização, a partir do Grande
Sul. Fez sua tese morando numa favela do Brasil, para conhecer por dentro o
mundo da pobreza. Professor em Colimbra e em Wisconsin-Madison nos USA, ganhou
fama mundial por ter introduzido várias categorias sociológicas novas para
entender o mundo novo que está nascendo. Publicamos aqui seu apelo aos
democratas do Brasil pelo amor que tem por nosso país e por seu povo. Lboff
Dirijo-me aos democratas brasileiros porque só eles
podem estar interessados no teor desta mensagem. Vivemos um tempo de emoções
fortes. Para alguém, como eu e tantos outros que nestes anos acompanhamos as
lutas e iniciativas de todos os brasileiros no sentido de consolidar e
aprofundar a democracia brasileira e contribuir para uma sociedade mais justa e
menos racista e menos preconceituosa, este não é um momento de júbilo. Para
alguém, como eu e tantos outros que nas últimas décadas se dedicaram a estudar
o sistema judicial brasileiro e a promover uma cultura de independência
democrática e de responsabilidade social entre os magistrados e os jovens
estudantes de direito, este é um momento de grande frustração. Para alguém,
como eu e tantos outros que estiveram atentos aos objetivos das forças
reacionárias brasileiras e do imperialismo norte-americano no sentido de
voltarem a controlar os destinos do país, como sempre fizeram mas pensaram que
desta vez as forças populares e democratas tinham prevalecido sobre eles, este
é um momento de algum desalento.
As emoções fortes são preciosas se forem parte da
razão quente que nos impele a continuar, se a indignação, longe de nos fazer
desistir, reforçar o inconformismo e municiar a resistência, se a raiva ante
sonhos injustamente destroçados não liquidar a vontade de sonhar. É com estes
pressupostos que me dirijo a vós. Uma palavra de análise e outra de princípios
da ação.
Porque estamos aqui? Este não é lugar nem o momento
para analisar os últimos quinze anos da história do Brasil. Concentro-me nos
últimos tempos. A grande maioria dos brasileiros saudou o surgimento da
operação Lava Jato como um instrumento que contribuiria para fortalecer a
democracia brasileira pela via da luta contra a corrupção. No entanto, em face
das chocantes irregularidades processuais e da grosseira seletividade das
investigações, cedo nos demos conta de que não se tratava disso mas antes de
liquidar, pela via judicial, não só as conquistas sociais da última década como
também as forças políticas que as tornaram possíveis. Acontece que as classes
dominantes perdem frequentemente em lucidez o que ganham em arrogância.
A destituição de Dilma Rousseff, a Presidente que
foi talvez o Presidente mais honesto da história do Brasil, foi o sinal que a
arrogância era o outro lado da quase desesperada impaciência em liquidar o
passado recente. Foi tudo tão grotescamente óbvio que os brasileiros
conseguiram afastar momentaneamente a cortina de fumo do monopólio mediático. O
sinal mais visível da sua reação foi o modo como se entusiasmaram com a
campanha pelo direito do ex-Presidente Lula da Silva a ser candidato às
eleições de 2018, um entusiasmo que contagiou mesmo aqueles que não votariam
nele, caso ele fosse candidato. Tratou-se pois de um exercício de democracia de
alta intensidade.
Temos, no entanto, de convir que, da perspectiva
das forças conservadoras e do imperialismo norte-americano, a vitória deste
movimento popular era algo inaceitável. Dada a popularidade de Lula da Silva,
era bem possível que ganhasse as eleições, caso fosse candidato. Isso
significaria que o processo de contra-reforma que tinha sido iniciado com a
destituição de Dilma Rousseff e a condução política da Lava Jato tinha sido em
vão. Todo o investimento político, financeiro e mediático teria sido
desperdiçado, todos os ganhos econômicos já obtidos postos em perigo ou
perdidos. Do ponto de vista destas forças, Lula da Silva não poderia voltar ao
poder. Se o Judiciário não tivesse cumprido a sua função, talvez Lula da Silva
viesse a ser vítima de um acidente de aviação, ou algo semelhante. Mas o
investimento imperial no Judiciário (muito maior do que se pode imaginar)
permitiu que não se chegasse a tais extremos.
Que fazer? A democracia brasileira está em perigo,
e só as forças políticas de esquerda e de centro-esquerda a podem salvar. Para
muitos, talvez seja triste constatar que neste momento não é possível confiar
nas forças de direita para colaborar na defesa da democracia. Mas esta é a
verdade. Não excluo que haja grupos de direita que apenas se revejam nos modos
democráticos de lutar pelo poder. Apesar disso, não estão dispostos a colaborar
genuinamente com as forças de esquerda. Por quê? Porque se vêem como parte de
uma elite que sempre governou o país e que ainda não se curou da ferida caótica
que os governos lulistas lhe infligiram, uma ferida profunda que advém do facto
de um grupo social estranho à elite ter ousado governar o país, e ainda por
cima ter cometido o grave erro (e foi realmente grave) de querer governar como
se fosse elite.
Neste momento, a sobrevivência da democracia
brasileira está nas mãos da esquerda e do centro-esquerda. Só podem ter êxito
nesta exigente tarefa se se unirem. São diversas as forças de esquerda e a
diversidade deve ser saudada. Acresce que uma delas, o PT, sofre do desgaste da
governação, um desgaste que foi omitido durante a campanha pelo direito de Lula
a ser candidato. Mas à medida que entrarmos no período pós-Lula (por mais que
custe a muitos), o desgaste cobrará o seu preço e a melhor forma de o
estabelecer democraticamente é através de um regresso às bases e de uma
discussão interna que leve a mudanças de fundo. Continuar a evitar essa
discussão sob o pretexto do apoio unitário a um outro candidato é um convite ao
desastre. O patrimônio simbólico e histórico de Lula saiu intacto das mãos dos
justiceiros de Curitiba & Co. É um patrimônio a preservar para o futuro.
Seria um erro desperdiçá-lo, instrumentalizando-o para indicar novos
candidatos. Uma coisa é o candidato Lula, outra, muito diferente, são os
candidatos de Lula. Lula equivocou-se muitas vezes, e as nomeações para o
Supremo Tribunal Federal aí estão a mostrá-lo.
A unidade das forças de esquerda deve
ser pragmática, mas feita com princípios e compromissos detalhados. Pragmática,
porque o que está em causa é algo básico: a sobrevivência da democracia. Mas
com princípios e compromissos, pois o tempo dos cheques em branco causou muito
mal ao país em todos estes anos. Sei que, para algumas forças, a política de
classe deve ser privilegiada, enquanto para outras, as políticas de inclusão
devem ser mais amplas e diversas. A verdade é que a sociedade brasileira é uma
sociedade capitalista, racista e sexista. E é extremamente desigual e violenta.
Entre 2012 e 2016 foram assassinadas mais pessoas no Brasil do que na Síria
(279.000/256.000), apesar de este último país estar em guerra e o Brasil estar
em “paz”. A esquerda que pensar que só existe política de classe está
equivocada, a que pensar que não há política de classe está desarmada.
Boaventura de Sousa Santos nasceu
em Coimbra, 15 de Novembro de 1940. É doutor em Sociologia do Direito pela
Universidade de Yale (1973), além de professor catedrático jubilado da
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e distinguished legal scholar
da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também global legal scholar da
Universidade de Warwick e professor visitante do Birkbeck College da
Universidade de Londres. Seu livro mais recente é A difícil democracia: reinventar
as esquerdas (Boitempo, 2016). Pela Boitempo, publicou
também Renovar a teoria crítica e
reinventar a emancipação social (2007). Colabora
com o Blog da Boitempo esporadicamente.