Final de tarde de domingo (dia dos
pais), assistindo a um show do Eric Clapton na televisão, pego o livro do
Humberto Eco, “Pape Satàn Aleppe – crônicas de uma sociedade líquida” para
começar a lê-lo.
Sua primeira crônica é a que
empresta o subtítulo ao livro, “crônicas de uma sociedade líquida”. Já em seu
início, começo a marcar a caneta algumas linhas. Ao final, ainda ao som do
Eric, resolvo reproduzir a crônica e dividir com quem ler este texto. Só
conseguiria dar continuidade a leitura do livro depois disso. Divirtam-se e preocupem-se.
Há braços.
Sociedade Líquida – Umberto Eco
(2015)
A ideia de modernidade ou
sociedade “líquida” deve-se, como todos sabem, a Zygmunt Bauman. Para quem quiser
entender as várias implicações do conceito, a leitura de “Estado de crise”
(Zahar, 2016), onde Bauman e Carlo Bordomi discutem estes e outros problemas,
pode ser útil.
A sociedade líquida começou a
delinear-se com a corrente conhecida como pós-modernismo (aliás um termo “guarda-chuva”
sobre o qual se amontoam diversos fenômenos, da arquitetura à filosofia e à
literatura, e nem sempre de modo coerente). O pós-modernismo assinalava a crise
das “grandes narrativas” que se consideravam capazes de impor ao mundo um
modelo de ordem e fazia uma revisitação lúdica e irônica ao passado,
entrecruzando-se em várias situações com pulsões niilistas. Mas para Bordoni, o
pós-modernismo também conheceu uma fase de declínio. Era um movimento de
caráter temporário, pelo qual passamos quase sem perceber, e que um dia será
estudado, assim como o pré-romantismo. Servia para analisar um acontecimento em
andamento e representou uma espécie de bolsa que levava a modernidade a um
presente ainda sem nome.
Para Bauman, entre as características
deste presente nascente podemos incluir a crise do Estado (que liberdade de
decisão ainda têm os Estados nacionais diante dos poderes das entidades
supranacionais?). Desaparece assim uma entidade que garantia aos indivíduos a
possibilidade de resolver de modo homogêneo os vários problemas de nosso tempo,
e com sua crise, despontaram a crise das ideologias, portanto, dos partidos e,
em geral, de qualquer apelo a uma comunidade de valores que permita que o
indivíduo se sinta parte de algo capaz de interpretar suas necessidades.
Com a crise do conceito de
comunidade, emerge um individualismo desenfreado, onde ninguém mais é
companheiro de viagem de ninguém, e sim seu antagonista, alguém contra quem é
melhor se proteger. Este “subjetivismo” solapou as bases da modernidade, que se
fragilizaram dando origem a uma situação em que, na falta de qualquer ponto de
referência, tudo se dissolve em uma espécie de liquidez. Perde-se a certeza do
direito (a justiça é percebida como inimiga) e as únicas soluções para o
indivíduo sem pontos de referência são o aparecer a qualquer custo, aparecer
como valor (fenômenos que abordei com frequência nas “Bustinas”), e o
consumismo. Trata-se, porém, de um consumismo que não visa a pose de objetos de
desejo capazes de produzir satisfação, mas que torna estes mesmos objetos
imediatamente obsoletos, levando o indivíduo de um consumo a outro numa espécie
de bulimia sem escopo (o novo celular nos oferece pouquíssimo a mais em relação
ao velho, mas descarta-se o velho apenas para participar dessa orgia do
desejo).
Crise das ideologias e dos
partidos: alguém já disse que estes últimos se transformaram em táxis que
transportam caciques políticos ou chefes mafiosos que controlam votos, que
escolhem em qual embarcarão com desenvoltura, segundo as oportunidades que
oferecem – o que até torna compreensível e não mais escandaloso os vira-casacas.
Não somente os indivíduos, mas a própria sociedade vive em um contínuo processo
de precarização.
O que poderá substituir esta
liquefação? Ainda não sabemos e este intervalo ainda vai durar muito. Bauman observa
que (com o fim da fé numa salvação proveniente do alto, do estado ou da
revolução) os movimentos de indignação são típicos de períodos de intervalo.
Estes movimentos sabem o que não querem, mas não o que querem. E recordo aqui
que um dos problemas levantados pelos responsáveis da ordem pública a propósito
dos “black blocs” é a impossibilidade de rotulá-los, como se fazia antes com os
anarquistas, os fascistas, as Brigadas Vermelhas. Eles agem, mas ninguém sabe
mais quando e em que direção. Nem eles mesmos.
Existe um
modo de sobreviver à liquidez? Existe e é justamente perceber que vivemos em
uma sociedade líquida que, para ser compreendida e talvez superada, exige novos
instrumentos. Mas o problema é que a política e grande parte da “intelligentsia”
ainda não entenderam o alcance do fenômeno. Por ora, Bauman continua a ser uma “vox
clamantis in deserto”.
Sérgio Mesquita
Secretário de Formação do PT-Maricá
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