A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
A gente não quer só comida
A gente quer bebida, diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer
Titãs
A matéria abaixo, do El Pais, explicita o porquê do
discurso do novo normal ser tão repetido, ser quase um mantra. Também deixa
claro porque a Renda Básica Universal sempre teve problema em sua aceitação e,
quando discutida, discute-se qual seria o valor a ser recebido por um africano morador
de uma aldeia e por um americano do Norte da classe média.
Somos um mundo onde, infelizmente, existem duas
espécies de humanos, uma que merece viver em segurança, bem alimenta e acesso
aos bens de consumo de melhor qualidade e a outra, que deve ser contentar com o
que os do andar de cima, acha que no máximo merecem.
A matéria revela o que incomodou a nossa classe
média durante os governos Lula e Dilma, a possibilidade do empobrecido, mudar
de estamento social.
Conversando com Dieguinho, ex-Secretário de
Economia Solidária de Maricá-RJ, sobre a pesquisa, ele me recorda uma votação
na Câmara, onde se abria a possibilidade do uso da moeda Mumbuca (moeda social
digital do município), para se pagar corrida de taxi. Vereadores ligados a
oposição votaram contra, e felizmente, foram a minoria. O mesmo Dieguinho encerra
o papo, cantando os versos de uma música do Titãs, colocado na abertura acima.
Perderemos a oportunidade que nos coloca a Covid-19,
em sermos pessoas melhores? O Prefeito Fabiano Horta, em uma inauguração
recente, termina sua fala com a seguinte frase: “não existe fascista que
resista a um cumprimento sincero e carregado de emoção”.
Há braços.
Sérgio Mesquita
Secretário de
Ciência, Tecnologia e Comunicações
Por que julgamos mais
duramente as decisões dos pobres
El Pais, Javier Salas,
03.07.20
Uma série de estudos realizados em Harvard revela
um preconceito: as pessoas com menos recursos deveriam se contentar com menos,
mesmo que isso prejudique sua saúde ou segurança
“Para vocês seria porcaria, para estes pais não era porcaria. Quando
falam assim, não me ofendem, ofendem a eles.” Quando Isabel
Díaz Ayuso, presidente da Comunidade de Madri, defendeu com essas
palavras os menus da Telepizza para crianças vulneráveis, talvez o debate subjacente não fosse
sobre a qualidade dos alimentos. Porque os especialistas não tinham dúvidas. Um
estudo recentemente divulgado pela Universidade Harvard mostra que talvez o
debate não fosse, na realidade, sobre o que consideramos aceitável para
famílias pobres. Esse limite do aceitável é mais baixo para pessoas com menos
recursos? Pesquisadoras da universidade dos EUA queriam responder a essa
pergunta e as conclusões de seu trabalho são reveladoras: “Temos um padrão
duplo preocupante”.
Por meio de 11 experimentos, as pesquisadoras mostram que pessoas de baixa renda são julgadas de modo mais negativo por consumirem os
mesmos itens do que outras com renda mais alta, o que acrescenta uma pressão
social extra às restrições materiais que já enfrentam. Mas não é por terem
menos para gastar, mas porque se considera que suas despesas deveriam ser mais
parcimoniosas. “Descartamos a explicação de que pessoas com renda mais alta
podem consumir socialmente mais simplesmente porque podem pagar mais; pelo
contrário, observamos que para as pessoas de baixa renda se considera
socialmente que tenham de consumir menos porque se supõe que necessitam de
menos”, diz Serena Hagerty, principal autora do artigo. Segundo Hagerty, o
estudo revela que as necessidades básicas têm que ser mais básicas para os
pobres.
Em um dos testes, a história de Joe é apresentada a dois grupos
diferentes: para um, esse personagem tem baixa renda, para outro, tem uma boa
renda. Joe ganhou 200 dólares (1.070 reais) em um sorteio, tudo bem se gastar o
dinheiro em uma nova televisão? Se Joe é de baixa renda, isso é muito mais malvisto
do que se tem um bom padrão de vida. Curiosamente, há um terceiro grupo, o de
controle, ao qual não se conta nada sobre a situação financeira de Joe. Para
este grupo, é tão admissível que o Joe neutro compre a TV como para o grupo do
Joe rico. Só é malvisto pelo que tem como referência o Joe pobre.
À medida que o estudo, publicado na PNAS, vai mais fundo, os
experimentos se tornam mais complexos para delinear melhor os mecanismos pelos
quais as pessoas são julgadas de acordo com seus recursos. Por exemplo, em
outro teste a pergunta é que cartão-presente dariam ao Joe pobre ou ao Joe
rico, um de 100 dólares para comprar comida ou outro de 200 dólares para uma
TV? O pobre Joe recebe principalmente o cartão da comida, enquanto o Joe rico
ganha o que lhe permite comprar uma TV, ou seja, o dobro do dinheiro. No
cômputo final, em média, o Joe pobre recebe 125 dólares e o rico, 152. Ou seja,
mesmo quando se trata de um presente, quem tem mais, merece mais, e quem tem
menos, ganha um presente inferior. Mesmo que saibam que Joe disse expressamente
que gostaria de uma nova TV, os participantes do estudo dão muito menos TVs ao
Joe pobre do que ao rico.
“Uma implicação desse duplo padrão é que as pessoas parecem mais
confortáveis dirigindo e limitando as decisões de gastos dos pobres”, resume Hagerty. Este estudo é
muito revelador no contexto atual, como indicam essas pesquisadoras, em que se
discute a promoção da renda mínima em países como a Espanha. “Uma crítica
potencial à renda vital mínima pode ser que as pessoas de baixa renda gastarão
o dinheiro em coisas erradas”, diz Hagerty sobre o caso
espanhol. “No entanto, é provável que esse medo resulte em primeiro lugar de
uma visão limitada de quais produtos são considerados ‘necessários’ para
pessoas de baixa renda”, diz ela.
É algo claro em outro de seus experimentos, como o que mostra 20 objetos
de consumo cotidiano que uma família poderia comprar: jornais, móveis,
relógios, computadores, equipamentos esportivos, etc. Em todos é mais malvista
sua compra por uma família de baixa renda, exceto em um item: produtos de higiene
corporal. Com essa mesma abordagem propuseram 20 critérios a serem levados em
consideração por uma família que procure uma nova casa: garagem,
ar-condicionado, bairro barulhento, proximidade de áreas de lazer, etc. A
aquisição de todos esses itens é mais malvista quando se considera uma família
de baixa renda, exceto em dois deles: que a casa esteja perto de um
supermercado e do transporte
público. O mais revelador é que se considera supérfluo que uma
família pobre procure uma casa perto de um hospital ou em um bairro seguro, o que
implica que, mesmo com pouca renda, até buscar segurança é considerado um
capricho desnecessário.
A segurança como um luxo para famílias sem recursos também aparece em
outro experimento do estudo, no qual se propõe a compra de um carro com um
sistema de câmera traseira. Mesmo quando se explica aos participantes que é um
item adicional importante para a segurança do veículo, isso é considerado menos
necessário para uma família de poucos recursos. É malvisto que os pobres comprem
um objeto que para os ricos é fundamental para sua segurança. De novo, não é
que o rico tenha mais condição, é que os vulneráveis não merecem tanto, mesmo
que esteja em jogo sua saúde.
“A principal contribuição deste estudo é que definimos as necessidades a
partir dos recursos que as pessoas têm, porque o que definimos como necessário
ou supérfluo muda de acordo com a renda da pessoa”, afirma o economista Luis
Miller, pesquisador do CSIC. E acrescenta: “Isso tem implicações importantes,
sobretudo no que chamamos de armadilha da pobreza, esse círculo vicioso que nega os
recursos necessários para se ter acesso a mais recursos”.
Quando alguém critica um sem-teto ou um refugiado por ter um smartphone
é porque isso é considerado um capricho desnecessário, embora para todos seja
uma ferramenta imprescindível para nos relacionarmos com nossos familiares,
empregadores ou clientes. Sem esse tipo de recurso, é impossível romper o
círculo de que Miller fala: sem uma casa, chuveiro, telefone celular etc., é
impossível conseguir um emprego que permita sair da armadilha da pobreza.
“Há a ideia de que, se você ajuda uma família, faz com que ela trabalhe
menos. Um projeto de monitoramento analisou isso, e não é assim”, disse
recentemente Esther Duflo, ganhadora do Prêmio Nobel de Economia. “Isso não
os torna mais preguiçosos, como também lhes proporciona o bem-estar e a
segurança que os tornam mais produtivos “. Todas as pessoas precisam sair da
“visão de túnel” imposta pelas carências, essas penúrias que as impedem de
tomar decisões calmas, como explicaram Sendhil Mullainathan e Eldar Shafir
em seu livro Escassez: uma nova forma de pensar a
falta de recursos na vida das pessoas e nas organizações (Editora Best
Business): “A escassez arrebata nossa atenção e Isso nos proporciona um
benefício muito estreito: temos um desempenho melhor ao nos ocuparmos das
necessidades mais prementes. Mas, de modo mais amplo, pagamos um custo:
negligenciamos outros assuntos e somos menos eficientes no resto de nossos
afazeres cotidianos”. Dar uma TV ao Joe pobre talvez lhe proporcione um
estímulo emocional que lhe permita acordar mais animado pela manhã. Ou não.
Mas, em geral, pensamos que ele deveria se contentar com o que tem e se
concentrar em comprar o imprescindível para subsistir.
Miller acredita que esses mecanismos ocorrem na Espanha de uma maneira
mais sutil, porque lá as pesquisas mostram claras preferências pela
redistribuição e não há com tanto peso “a figura do libertário dos EUA, aquele
que diz que cada um tem o que merece”. E acrescenta: “Aqui esses mecanismos têm
mais a ver com a necessidade de nos diferenciarmos dos pobres”. Segundo explica
Hagerty por e-mail, a renda dos participantes do estudo não influenciou em suas
opiniões: independentemente de sua renda, todos reduziam o círculo das compras
aceitáveis para o Joe pobre, mesmo que pusessem em risco sua saúde, como uma
cadeirinha para as crianças no carro, um bairro sem criminalidade ou acesso
próximo a um posto de saúde, que são vistos quase como caprichos somente quando
a pessoa tem pouca renda. “O fato de darmos menos margem de manobra às decisões
dos economicamente desfavorecidos parece expressar noções mais básicas de
mérito e autonomia”, diz a pesquisadora.
Voltando ao menu da Telepizza, Hagerty tem uma resposta clara à luz de
seu trabalho: “Essa visão parcial da necessidade também pode explicar por que
deram comida porcaria às crianças de baixa renda [em Madri],
quando a mesma comida pode não ser adequada para crianças de alta renda”. E ela
ressalta que suas descobertas sugerem que debates como esse estão na realidade
fazendo duas perguntas diferentes que terão duas respostas substancialmente
diferentes: O acesso a alimentos saudáveis é necessário? O acesso a
alimentos saudáveis é necessário para as pessoas de baixa renda? “Isso precisa
ser levado em consideração no debate político: como são feitas as perguntas
relevantes em política e que preconceitos implícitos podem influir nas
respostas?”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário