Roberto Amaral
Escrita em 1953, no
auge do macarthismo (1950-1957), protegida pelo disfarce da futurologia
científica, a obra-prima de Ray Bradbury nos falava então e nos fala agora de
um presente real, este no qual nos foi dado viver, dominado pela crise letal do
que chamamos de civilização ocidental. Como Admirável mundo novo,
e A Revolução dos bichos e 1984, os clássicos de Aldous
Huxley e Georges Orwell, Fahrenheit 451 é ensaio que desconsidera os
limites temporais para nos convidar a uma reflexão sobre a realidade política
que governa nossas vidas. Trata-se de revisão quase sempre incômoda, porque a
crise que se esbate sobre o futuro da civilização é a nossa tragédia de cada
dia, e a tomada de consciência da realidade tem a força de romper com a
alienação, transformando em desassossego a paz de espírito com que sonham
os niilistas.
A crise da dita
civilização ocidental – moral, ética, política, filosófica –, escamoteada
pelos avanços da ciência e da tecnologia, parece renovar-se em ciclos de
autoritarismo: nazismo, fascismo, salazarismo, franquismo, stalinismo,
macarthismo. Os primeiros decênios do terceiro milênio prometem trazer de
volta os fantasmas do século passado. Esta é a explicação plausível para, após
tanta experiência histórica, vivermos a emergência de lideranças da
estatura liliputiana de Donald Trump, Boris Johnson, Viktor Orban e do capitão
que ocupa o terceiro andar do palácio do planalto, guardado pelas costas largas
de seus generais de estimação.
Quem poderia supor
que após as lições ensejadas pelo ciclo da ditadura militar viveríamos a
insanidade do bolsonarismo?
Os bombeiros de
Bradbury, observa Manuel da Costa Pinto no prefácio à tradução brasileira
(Biblioteca Azul, 2012), “são agentes da higiene pública que queimam livros
para evitar que suas quimeras perturbem o sono dos cidadãos honestos, cujas
inquietações são cotidianamente sufocadas por doses maciças de comprimidos
narcotizantes e pela onipresença da televisão”, e, acrescento, por doses
maciças de doutrinamento evangélico, fake news. a manipulação
robótica das redes sociais e o unilateralismo ideológico dos grandes meios de
comunicação. A fogueira de livros, uma presença em toda a história da
humanidade, é simbólica da luta entre o saber que inquieta e a ignorância que
abre caminho para a conformação do dominado.
A direita de todos
os tempos e de todas as latitudes – como a assembleia que condenou
Sócrates, os tribunais da santa inquisição, as depurações de Stálin e os
julgamentos do macarthismo – detesta o saber, porque ele é a chave da
liberdade; detesta a inteligência e a liberdade de pensamento, detesta os
intelectuais, pois eles têm o vício de duvidar. Nos idos de 1933, os
nazistas alemães, como os fascistas italianos, queimavam livros em praça
pública e aprisionavam escritores, a Espanha franquista matava poetas, o
salazarismo os prendia ou exilava. O obscurantismo reinava nos dois lados do
Atlântico. No Estado Novo (1937-1945), o DIP censurava a imprensa e muitos
intelectuais e cientistas, como Nisi da Silveira, e escritores como Graciliano
Ramos conheceram o cárcere. A ditadura instalada em 1º de abril de 1964,
demitiu professores e cientistas, prendeu escritores e exilou nossos
sábios, e decretou a censura geral e irrestrita à imprensa. O
general Ernesto Geisel impôs a censura prévia aos livros. Os nazistas atearam
fogo, entre outros muitos, em livros de Marx, Kafka, Thomas Mann, Einstein e
Freud. No governo do capitão, o pré-neandertal que assumiu a presidência da
Fundação Palmares, para destruí-la, expele como indesejável a obra fotográfica
de Sebastião Salgado e bane da biblioteca da instituição livros como Almas
mortas, de Nikolai Gogol, Dicionário do folclore brasileiro, de Luís da
Câmara Cascudo e obras de autores como Marx, Engels, Weber, Caio Prado Jr.,
Eric Hobsbawn e Celso Furtado.
O impacto com
que, assustado e impotente, acompanhei pela televisão o festival macabro
das labaredas consumindo a memória nacional depositada na Cinemateca
Brasileira, levou-me às primeiras páginas de Fahrenheit 451:
“Era um prazer
especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas
e alteradas. Empunhando o bocal de bronze, a grande víbora cuspindo seu
querosene peçonhento sobre o mundo, o sangue latejava em sua cabeça e suas mãos
eram as de um prodigioso maestro regendo todas as sinfonias de chamas e
labaredas para derrubar os farrapos e as ruínas carbonizadas da
história. [...] A passos largos ele avançou em meio a um enxame de
vaga-lumes. Como na velha brincadeira, o que ele mais desejava era levar à fornalha
um marshmallow na ponta de uma vareta, enquanto os livros morriam num
estertor de pombos na varanda e no gramado da casa. Enquanto os livros se
consumiam em redemoinhos de fagulhas e se dissolviam no vento escurecido da
fuligem”.
A alegoria de Bradbury
é simbólica; e simbólicos de nossos tempos devem ser considerados tanto o
incêndio premeditado da Cinemateca (pois fruto de planejado corte de verbas)
quanto a destruição em chamas do Museu Nacional, no Rio de Janeiro,
propositalmente desamparado de recursos de conservação.
O ainda presidente
da república, parvo e pulha, porém, não se dá por satisfeito em destruir o
passado, incinerando nossa memória. Tenta apagar o futuro. Destrói o ministério
da cultura, reduzido a um apêndice do ministério do turismo, e entrega o
ministério da educação a uma tríade de apedeutos; move tenaz perseguição
aos institutos de ensino e pesquisa, como o INPE, reduz os recursos para a área
da educação e tenta inviabilizar as universidades federais com a asfixia
orçamentária. Os recursos dos principais fundos destinados ao apoio à pesquisa
científica e tecnológica caíram, de R$ 13.971.751124 em 2015, para
4.401.561.381 em 2020 (dados do IPEA). No mesmo ano de 2015, os recursos
destinados ao CNPq somavam 2,6 bilhões, reduzidos a 1,6 bilhão em
2019 (Fonte: SIOP/Ministério do Planejamento). É o garrote financeiro que visa
a estrangular o ensino e a pesquisa, ao inviabilizar a formação de mestres e
doutores.
O Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, criado em 1951 com o
objetivo de promover o desenvolvimento da investigação cientifica e
tecnológica, vive a pior crise de sua história de 70 anos de bons serviços
prestados ao país. Administra a maior e mais importante plataforma científica
do Brasil, reunindo toda a produção nacional, como projetos, pesquisas e
trabalhos desenvolvidos por pesquisadores e universidades brasileiras, e ainda é
responsável pelas bolsas a cientistas brasileiros. Toda a sua
base de dados está ameaçada porque, por falta de manutenção, derivada da
rapina de recursos, sucateamento e obsolescência de equipamentos, o
sistema de informática da instituição saiu do ar.
As bolsas estão
congeladas desde 2012 em número e valor (R$ 4.100, no caso de pós-doutorado), o
que estimula o êxodo de nossos melhores quadros: pobres, estamos formando
pesquisadores para os EUA e a Europa. Daqui a pouco também para a China.
Na próxima
sexta-feira (6/8) reunir-se-á o Conselho Diretor do Fundo Nacional para o
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), quando apreciará a
estapafúrdia proposta do governo que visa a carrear R$ 800 milhões a quatro ou
cinco organizações sociais, cifra que corresponde ao dobro do que é destinado a
mais de 200 universidades brasileiras. Este é o outro lado da política em
vigor: malversação dos recursos públicos.
O quadro desolador
da ciência e da tecnologia se soma à política de terra arrasada levada à
cultura e à educação; não se trata, porém, pura e simplesmente, de uma política
de descaso ou omissão: ao contrário, o projeto do governo é determinado, é
consciente e obedece a um planejamento cujo objetivo é destruir quaisquer
veleidades nacionais de soberania. A questão, é, pois, fundamentalmente
política, e o arrocho financeiro não é operação autônoma. Deriva do projeto
maior: nossa destinação ao papel de grande província do Império. Política, a
ameaça de sucateamento de nossos laboratórios e esvaziamento do ensino e
da pesquisa só será enfrentada se conseguirmos alterar a atual correlação de
forças. Não há conciliação possível; recusar o combate é fortalecer
o status quo. O desafio diz que está mais do que na hora de as
lideranças universitárias, por exemplo, procurarem a articulação com a
sociedade, denunciando o projeto e explicando de forma clara os prejuízos que
advirão, para o país, se a política do desmonte e alienação não for
detida.
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