quinta-feira, 6 de outubro de 2016

Xadrez do marco zero das esquerdas


As eleições municipais simbolizam um marco zero para as esquerdas, de fim da era de predominio  absoluto do PT.

O partido nasceu moderno nos anos 80, como uma confluência de coletivos. 

Nos anos 90 amoldou-se para a luta política convencional, revendo dogmas, aplainando radicalismos estéreis. Mas, para tanto, recorreu a um centralismo que pouco a pouco foi  inibindo o protagonismo dos coletivos. 

Com a chegada ao poder, tentou manobrar as ferramentas de luta institucional. Nesse período, perdeu quatro elementos centrais: José Genoíno e Luiz Gushiken, tragados pela AP 470; o ex-Ministro Márcio Thomaz Bastos; manteve ainda José Dirceu atuando como eminência parda, mas sem dispor mais das ferramentas institucionais e afastado do centro de poder pelo isolamento a que foi confinado pelo governo Dilma, crítica de seus métodos.

Finalmente, no governo Dilma Rousseff perdeu a identidade ideológica.

Assim, ocorreu uma quádrupla derrota nos campos político, institucional, midiático e ideológico. A esquerda terá que ser refundada.

As características dos novos tempos são as seguintes.

Peça 1 - fim do lulismo

A legenda Lula compreendia um conjunto de símbolos pouco captados pelas novas gerações: a criação da CUT, os comícios da Vila Euclides, a campanha de Collor, a campanha do impeachment.

Manteve-se como o grande aglutinador dos grupos de esquerda e como o maior símbolo da política brasileira do século. Mas tombou, vítima da falta de lembrança das novas gerações, da campanha sistemática de destruição pela aliança da Procuradoria Geral da República (PGR), Lava Jato e mídia. E pelos erros tremendos de não ter entendido os aspectos institucionais e midiáticos da guerra política.

Na verdade, o único líder do PT com essa visão era José Dirceu.  Explicitou demais o seu poder, atuou com excessiva desenvoltura em todas as áreas, do Judiciário aos grandes grupos e terminou fuzilado por uma armação: a tal  "teoria do fato", magistralmente definida pela Ministra Rosa Weber com seu célebre "não tenho provas, mas a doutrina me permite condená-lo".

Depois, foi alvo de todas as armações acusatórias possíveis e de uma bala de prata real: suas relações com Milton Pascowitch.

O sonho de Lula 2018 está comprometido pelos resultados da campanha política de desconstrução de sua imagem e pela continuidade do jogo político escandaloso da Lava Jato, visando inabilitá-lo juridicamente.

Continuará sendo figura referencial das esquerdas, a liderança capaz de aglutinar os diversos setores. Mas os cenários possíveis para a esquerda têm que começar a trabalhar com a hipótese concreta de não contar com Lula em 2018.

Peça 2 - a mediocridade da direita

Nos anos 80, ganhou popularidade uma velha piada sobre o inferno. 

O sujeito morre, vai para o inferno e precisa escolher entre três, o inferno norte-americano, o alemão ou o brasileiro. O brasileiro, além de incorporar todas as  funcionalidades dos dois anteriores, ainda tem um cardápio adicional de tortura, dentre as quais meia hora diária ouvindo o José Serra falando sobre o perigo bolivariano no mundo.

O condenado se espantou:

·         Se o brasileiro é tão pior assim, porque está cheio e os dois outros vazios?
·         É porque no brasileiro nada funciona. O Secretário de Governo desviou o carvão da fornalha, o demônio da Casa Civil montou uma concorrência fraudada e a cadeira do Dragão dá curto circuito, o Satanás só herdou as mesóclises de Jânio. E o Serra nunca aparece porque dorme até tarde e passa o resto do dia tentando decorar siglas: Brics, NSA, Mercosul, União Europeia… Brics, NSA, Mercosul, União Europeia… Bracs, perdão, Brics, GSA, perdão NSA...

Piadas à parte, a direita brasileira não se mostra capaz de desenhar um projeto minimamente articulado de país. Nos anos 90, embarcou na onda Reagan-Thatcher, que começava a dominar o mundo pós-muro de Berlim. Agora, nada tem, nem utopias globais às quais recorrer. Atualmente único fator de aglutinação é atacar a velha esquerda e exalar toda forma de preconceito. E importar das ondas globais a intolerância mais retrógrada.

Terá vida curta. Sua única saída será ampliar o Estado de Exceção. Mas mesmo para isso teria que dispor de características  morais e de capacidade de desenhar o futuro. Só com mesóclises será insuficiente...

Portanto o novo tempo do jogo está próximo, de menos de uma década, com novos atores que ainda estão em formação.

Peça 3 - a ampliação do estado de exceção

Antes de ingressar no novo tempo político, há o enorme desafio de enfrentar a maré do Estado de Exceção.

Quando comecei a apontar a participação do PGR Rodrigo Janot no golpe, procuradores bem intencionados preferiram se iludir com a presunção de isenção. Nas suas entranhas, o processo jurídico é burocratizado e lento. E as regras de accoutibility suficientemente vagas para que os operadores do direito manobrem com prazos, com avaliações  subjetivas sobre os inquéritos e, principalmente, com o uso seletivo dos vazamentos.

O inquérito contra Aécio Neves dormiu por anos na gaveta do PGR. O julgamento do “mensalão tucano” foi atrasado por anos graças a um mero "esquecimento" do Ministro Ayres Brito.

Até hoje é impossível saber quais e quantos inquéritos repousam nas gavetas da PGR ou em pedidos de vista intermináveis do STF.

Agora, o MPF e a Polícia Federal se constituem na maior ameaça à democracia. E há razões de sobra para temer.

Qualquer avaliação sobre o avanço do Estado de Exceção tem que analisar dinamicamente o que ocorre, levando em conta todos esses sinais.  

O que Mirian Leitão fez foi uma mistificação histórica, ao comparar o quadro politico atual com a ditadura pós-AI5, em plena maré de torturas, para concluir que hoje em dia não existe regime de exceção. 

Para chegar a 1968, a ditadura passou por 1964, período no qual foram plantadas as sementes da radicalização posterior - principalmente quando o regime entendeu que não tinha possibilidades eleitorais. E surgiu porque avançou-se dia a dia em medidas de exceção, criminalizando os críticos, fossem comunistas ou liberais. E, na mídia, as Miriam Leitão da época estimulavam a caça às bruxas recorrendo a um legalismo de araque.

Se Mirian e outros colegas forem bem sucedidos em seu trabalho diário de fomentar a caça às bruxas, é possível que dentro de pouco tempo possamos chegar ao padrão AI5.

O direito penal do inimigo está proliferando por todos os poros da república, dos colunistas de jornais a procuradores da República, diretores de escola expurgando “comunistas” e redações expurgando quem ousar criticar o golpe.

É um sentimento disseminado.

É possível que em um ponto qualquer do futuro erga-se alguma onda de resistência contra o arbítrio. No momento, não.

No CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) as piores asneiras de direita são perdoadas. Hoje em dia, no entanto, as ameaças do CNMP pairam sobre o pescoço do procurador que questionou a reforma trabalhista em artigo, os bravos procuradores da República em São Paulo que correram até a delegacia para defender jovens vítimas de arbitrariedades policiais; a Procuradora Federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, por ter decidido filmar as passeatas para coibir as truculências da Polícia Militar paulista.

Em quadro de normalidade democrática, de discernimento mínimo jurídico, nem o mais obtuso procurador da República proibiria exposição de obras de Paulo Freire na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) ou cartazes de “fora Temer” em colégios - como fez ontem o procurador da República no Rio de Janeiro, Fábio Moraes de Aragão.

Por tudo isso, o primeiro grande desafio será conter essa escalada da violência, do dedurismo, que entrou por todos os poros da sociedade.

Peça 4 - a reconstrução de um modelo de esquerda

Essa reconstrução passa não apenas pela recuperação dos valores centrais - inclusão social, políticas sociais, estado do bem estar social, tolerância, defesa das minorias, defesa do meio ambiente etc. -, mas por rediscussão sobre modelos de estado, instituições e mídia.

Sobre instituições

A maneira das corporações entrarem no jogo político foi atrás do associativismo. Criado como uma instância de supervisão do Judiciário, por exemplo, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) só levanta dados para justificar gastos do Judiciário. O CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) é incapaz de ações mais severas contra abusos de procuradores. Hoje em dia, o Judiciário já consome 1,8% do PIB e caminha para 2,1%, fato inédito em qualquer economia global.

Pior, há um desconhecimento amplo dessas corporações em relação a temas políticos e econômicos, mais ainda em relação a projetos de país.

Nenhum governo será viável se não tiver o controle dessa agenda e se não instituir uma accountibility ampla nesses setores. Hoje em dia não se tem acompanhamento nem sobre processos em tramitação no Supremo, nem na Câmara, não se tem controle sobre a gaveta do PGR.

Terá que se recuperar os princípios originais de independência do Ministério Público e do Judiciário: para assegurar a independência de julgamento do juiz e o trabalho independente do procurador. e não como ferramenta de instrumentalização política de um poder de Estado.

Sobre gestão

Os governos Lula e Dilma revelaram grandes exemplos de boa gestão, especialmente nos programas desenvolvidos por Fernando Haddad no MEC (Ministério da Educação), no Bolsa Família e no Brasil para Todos. E alguns arremedos de gestão compartilhada no PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).

Mesmo assim, não trataram de definir um padrão, a partir do acúmulo de experiências bem sucedidas.

Mas, apesar dos avanços, ainda se deixou muito a desejar. 

1.       A institucionalização  de políticas públicas passa por definir métodos claros de parceria com estados, municípios e terceiro setor. Só se consegue com a criação de protocolos de procedimentos para cada programa, facilmente assimiláveis na ponta, fiscalizáveis e reprodutíveis. 
2.       Desenvolvimento de modelos de comunicação, para facilitar a compreensão da opinião pública sobre os benefícios dos projetos. 
3.       Institucionalização de canais de participação da sociedade nas diversas instâncias de discussão das políticas públicas.

Sobre mídia

Nenhuma democracia é compatível um mercado dominado por grandes grupos de mídia atuando de forma cartelizada e com poder de fogo similar ao das Organizações Globo.

Em todos os fóruns de direitos humanos, o direito à informação ganhou status de direito fundamental, tão relevante quanto o direito à vida, à alimentação e à saúde.

A Globo conseguiu seu maior feito politico ao ser a protagonista principal de um golpe de Estado. Criou uma conta enorme a ser saldada em um ponto qualquer do futuro. Desde então, se transformou no inimigo número um de qualquer governo progressista que surja nas próximas décadas.




terça-feira, 4 de outubro de 2016

Apertem os cintos: estamos entrando na era da pós-verdade

Carlos Castilho
Pós verdade parece mais uma expressão de impacto para chamar a atenção de um público saturado de informações e inclinado para a alienação noticiosa. Mas o fato é que estamos diante de um fenômeno que já começou a mudar nossos comportamentos e valores em relação aos conceitos tradicionais de verdade, mentira, honestidade e desonestidade , credibilidade e dúvida.

As evidências desta nova era estão nas manchetes de jornais, em declarações como as do candidato republicano Donald Trump ou nas dos procuradores e acusados na Lava Jato. Se antes havia verdade e mentira, agora temos verdade, meias verdades, mentira e afirmações que podem ser verdadeiras, conforme afirma o escritor norte-americano Ralph Keyes, o autor do livro The Post Truth Era: Dishonesty and Deception in Contemporary Life (St. Martin’s Press, 2004. ISBN 978-0-312-30648-9).

Quando Trump afirmou num discurso que o presidente Barack Obama foi um dos fundadores do Estado Islâmico, até os ultraconservadores norte-americanos acharam que ela estava exagerando. Mas o candidato republicano não se abalou, nem mesmo na televisão, quando explicou que Obama permitiu o surgimento do grupo radical islâmico porque este cresceu no vácuo politico deixado no Iraque pelo que Trump classificou de fracassos da diplomacia do presidente norte-americano. A polêmica criada em torno da afirmação gerou a percepção de que ela poderia ser verdadeira. Foi o suficiente para que Trump saísse ileso da discussão.
Os conservadores transformaram a insegurança pública num dos seus carros chefes na campanha pela implantação da doutrina do medo social, como forma de domesticar a população. Mas eles negam a evidência estatística de que na maioria dos grandes centros urbanos do planeta a incidência de crimes diminuiu em relação ao número de habitantes. A explicação para a discrepância entre a sensação de insegurança e as estatísticas criminais é complexa e exige uma boa dose de esforço e isenção. É mais fácil partir para aquilo que uma parte do publico quer ouvir.

A “cognição preguiçosa”

É um caso típico de aplicação da teoria da “cognição preguiçosa”, criada pelo psicólogo e prêmio Nobel Daniel Kahneman, para quem as pessoas tendem a ignorar fatos, dados e eventos que obriguem o cérebro a um esforço adicional.

Aqui no Brasil, a pós verdade é nítida no caso das investigações da Lava Jato. Separar o joio do trigo no emaranhado de versões e contra versões produzidas pelas delações premiadas é bem complicado. Há poucas dúvidas sobre a existência de esquemas de propinas, caixa dois eleitoral, superfaturamento, formação de cartéis e enriquecimento de suspeitos, mas provar cada um deles com base em evidências é uma operação complexa e demorada. Em alguns casos até inviável dada a sofisticação dos esquemas adotados pelos suspeitos de corrupção.
Mas como existe o interesse político envolvendo a questão e como existe a “cognição preguiçosa”, as convicções passam a ocupar o espaço das evidências e provas. A dicotomia jurídica clássica entre o legal e o ilegal passa a ser substituída por justificativas tipo “domínio do fato”, ou seja, convicções construídas a partir da repetição massiva de percepções individuais ou corporativas, pelos meios de comunicação.

Segundo a revista The Economist, o mundo contemporâneo está substituindo os fatos por indícios, percepções por convicções, distorções  por vieses. Estamos saindo da dicotomia tradicional entre certo ou errado, bom ou mau, justo ou injusto, fatos ou versões, verdade ou mentira para ingressarmos numa era de avaliações fluidas, terminologias vagas ou juízos baseados mais em sensações do que em evidências. A verossimilhança ganhou mais peso que a comprovação.

A pós verdade, um termo já incorporado ao vocabulário da mídia mundial, é parte de um processo inédito provocado essencialmente pela avalancha de informações gerada pelas  novas tecnologias de informação e comunicação (TICs). Com tanta informação ao nosso redor é inevitável que surjam dezenas e até centenas de versões sobre um mesmo fato. A consequência também inevitável foi a relativização dos conceitos e sentenças.

Mas o que parecia ser um fenômeno positivo, ao eliminar os absurdos da dicotomia clássica num mundo cada vez mais complexo e diverso, acabou gerando uma face obscura na mesma moeda. Os especialistas em informação enviesada ou distorcida (spin doctors no jargão norte-americano), aproveitaram-se das incertezas e inseguranças provocadas pela quebra dos paradigmas dicotômicos para criar a pós verdade, ou seja, uma pseudo-verdade apoiada em indícios e convicções já que os fatos tornaram-se demasiado complexos.

A herança de Goebbels

Diante das dificuldades crescentes para materializar a verdade por conta da avalanche informativa, especialmente na politica e na econômica, criaram-se as pós verdades, ou factoides (no jargão brasileiro), onde a repetição e a insistência passam a ocupar o espaço das evidências.

Na era da pós verdade, as versões ganharam mais importância do que os fatos, o que não é bom e nem mau. É simplesmente uma realidade. O que chamamos de fatos, na verdade são representações de um fato, dado ou evento desenvolvidas pela mente de cada indivíduo.
Assim, teoricamente, podemos ter um número de representações de um mesmo fato igual ao número de seres humanos no planeta Terra. E como as TICs permitem a disseminação massiva destas representações ou percepções, fica fácil intuir a complexidade da avaliação de fatos, dados ou eventos.  “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade”,  a controvertida máxima cunhada pelo chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels, tornou-se preocupantemente atual.

Os meios de comunicação, principalmente a imprensa, ganharam um papel protagônico no fenômeno da pós-verdade porque a circulação de mensagens passou a ser o principal mecanismo de produção de novos conhecimentos numa economia digital movida a inovação permanente. A relevância conquistada pelos meios de comunicação os transformou em agentes fundamentais no processo que prioriza uma forma de descrever a realidade. Quando a imprensa norte-americana endossou a tese da existência de armas de destruição maciça no Iraque de Saddam Hussein, ela  deixou de lado a verificação dos fatos e foi decisiva na transformação de uma possibilidade em certeza acima de suspeitas.

Teoricamente a pós verdade pode ser usada tanto pela esquerda como pela direita no terreno politico, mas como a imprensa joga um papel fundamental no processo, os rumos obviamente serão determinados pela ação de jornais, revistas, meios audiovisuais e pelas redes sociais. A imprensa portanto, não é uma observadora mas uma protagonista do processo de transformação de mentiras ou meias verdades em fatos socialmente aceitos.

A pós verdade e o jornalismo

A pós verdade é apenas um dos itens da era digital que estão abalando nossas crenças e valores. Nós jornalistas e toda a sociedade estamos vivendo um momento de insegurança e incertezas porque estamos passando de um contexto social para outro.  Esta insegurança não é um fenômeno inédito na humanidade porque já aconteceu antes quando grandes inovações tecnológicas alteraram radicalmente o contexto social da época. Basta ver o que ocorreu após a invenção da pólvora, dos tipos móveis por Gutemberg, da máquina a vapor e dos processos de produção industrial.

Um dos grandes, talvez o maior de todos, dilemas enfrentados pela sociedade atual, é a necessidade de conviver com a complexidade do mundo contemporâneo. Tomemos o caso da polêmica científica sobre o meio ambiente. É um tema complexo onde o bombardeio informativo confunde as pessoas comuns com afirmações contraditórias entre cientistas e pesquisadores. Do ponto de vista dos cientistas é natural que existam posicionamentos distintos mas para o público, acostumado pela imprensa a esperar verdades absolutas, as contradições e divergências geram incertezas, que acabam conduzindo ao descrédito generalizado.

A pós verdade coloca para nós jornalistas o desafio da repensar a credibilidade e os parâmetros profissionais para avaliar dados, fatos e eventos. Não é uma casualidade o fato da credibilidade da imprensa, em países como os Estados Unidos, estar hoje num dos pontos mais baixos de sua história. O leitor está cada vez mais confuso e desconfiado em relação à imprensa. É uma resistência intuitiva ao fenômeno da complexidade informativa gerada pela internet.

A pós verdade é talvez o maior desafio para o jornalismo contemporâneo porque ela afeta a relação de credibilidade entre nós e o público. A nossa atividade está baseada na confiança das pessoas de que o que publicamos é verdadeiro. Quando uma nova conjuntura informativa interfere nesta confiabilidade, temos serias razões para nos preocupar, e muito, sobre o futuro da profissão.


O Efeito Dunning-Kruger na qualidade do debate político

Marcio Valley

O primeiro atributo necessário à pessoa que busca um conhecimento honesto sobre qualquer assunto é a humildade de reconhecer a própria ignorância. O segundo é admitir a existência de um sem números de pessoas - sábios, pensadores e cientistas - que se debruçaram sobre o tema exaustivamente e, a partir de uma reflexão profunda, produziram e divulgaram obra do pensamento através da qual exteriorizam, não somente os contornos, a superfície, mas uma visão de profundidade sobre todos os aspectos da questão, alguns inclusive apresentando as respostas possíveis para a solução do problema. O terceiro é aceitar os ensinamentos desses sábios para, a partir deles, construir uma identidade intelectual própria sobre a matéria.

É perfeitamente saudável questionar o trabalho intelectual de pensadores e cientistas, todavia exigindo-se, primeiro, o conhecimento da obra criticada e, segundo, uma capacidade técnica própria - cognitiva e intelectual - para produzir conclusão contrária, a ser demonstrada de forma racional e lógica. O "achismo", nesse campo, é inadmissível. Pode-se dizer caber a qualquer um não aceitar determinada conclusão, mas não se pode aceitar essa recusa como refutação. É apenas pirraça intelectual que, se não freada pela humildade, transmuta-se em mera arrogância autoritária.

A palavra chave aqui é humildade. Sem ela, vence a soberba e prevalece a ignorância, possivelmente decorrente da síndrome de superioridade intelectual ilusória denominada Efeito Dunning-Kruger. Em resumo, trata-se de um fenômeno muito mais comum do que se imagina ou se gostaria e que cega as pessoas sobre a extensão do próprio conhecimento ou habilidade, que deliram ser muito superior ao que efetivamente possuem. Grosseiramente falando, trata-se do idiota ignorante que pensa saber mais do que o sábio erudito. Cegado por essa superioridade ilusória, o iludido resta inapto para identificar os limites da própria habilidade, reconhecer a amplitude de sua inabilidade e admitir a maior habilidade alheia. Isso ocorre justamente porque o iludido não possui as ferramentas intelectuais necessárias à constatação da própria incompetência e à identificação do que é competência real quando a vê no outro. Infelizmente, não há cura externa ao iludido, que somente será capaz de admitir sua inabilidade após, e se, adquirir o conhecimento do qual carecia, o que depende de um esforço espiritual interno. Caso contrário, morrerá reafirmando a própria idiotia.

Pelo que se observa dos debates públicos, esse efeito pernicioso que conspurca a vontade possivelmente deve ser tanto mais intenso quanto maior for o grau de escolaridade do iludido e sua inapetência intelectual sobre assuntos que extrapolem a sua área de atuação profissional, o chamado "especialista sem espírito".

As ciências humanas, por não serem propriamente ciência, no sentido estrito da palavra, é o reduto preferido de atuação dos iludidos pela superioridade ilusória. São poucos, muito poucos, os que as conhecem com um mínimo de aprofundamento, os que leram ao menos um livro de história, de filosofia ou de sociologia, mas são muitos, muitos mesmo, os que se consideram aptos a falar em nome delas.

A história e a filosofia, com suas filhas sociologia, antropologia, psicologia, ciência política, teoria do direito e economia são, provavelmente, os ramos mais instigantes a integrar o cabedal de conhecimento humano, pois são esses saberes que se preocupam com a humanidade enquanto subjetividade e interssubjetividade, ou seja, com o indivíduo como um elemento constituinte da coletividade em intensa e próxima inter-relação com os demais. Mais do que as ciências naturais, como física e química, cujos objetos - por exemplo, partículas atômicas e cadeias de elementos químicos - são mais distantes da realidade vivida, as humanas são instigantes justamente por que nos identificamos com seus objetos de pesquisa, que são o indivíduo e suas diversas formas de vinculação com os outros, ou seja, nós.

Cada um desses distintos ramos de conhecimento produziu e produz incontáveis narrativas sobre a conduta humana e civilizatória, que são realizadas à luz da aplicação do método científico. Não se trata meramente de "achar" que algo é assim ou assado, mas de coletar elementos no campo de observação e conduzi-los ao microscópio epistemológico da análise intelectual parametrizada. Um historiador, um sociólogo ou um antropólogo não se resignarão com apenas um dado proveniente de uma fonte para situar o objeto da pesquisa e, assim, categorizá-lo. Sempre que possível, irá rebuscar todas as fontes possíveis para conferir a maior credibilidade alcançável sobre a conclusão que obtiver.

Imagine-se um antropólogo fundando sua pesquisa atual sobre determinada tribo da Polinésia em um único artigo de jornal do século XVII. Dificilmente será levado a sério. O antropólogo certamente irá à Polinésia para conhecer presencialmente a tribo em questão e, sempre que possível, nela conviverá por algum tempo e tentará mesmo aprender sua língua para assim ser capaz de determinar com maior precisão seus hábitos, costumes e idiossincrasias. Publicada sua obra, pode-se discutir as conclusões obtidas, mas sempre com a extrema reserva da humildade de quem não possui as mesmas fontes, os mesmos saberes e nem o mesmo tempo de reflexão.

Num comentário sobre política, um internauta lamentava o fato de que, segundo ele, "a academia se encontra entulhada de esquerdopatas". A afirmação, muito comum, além de ser marcada por um conteúdo autoritário que embute a vontade velada de silenciar a voz contrária, é típica de pessoa acometida pela síndrome de superioridade intelectual ilusória: o crítico considera-se superior aos acadêmicos que condena. Claro que a assertiva não é, em absoluto, verdadeira, pois a academia produz trabalhos múltiplos, polissêmicos e polissonantes. Não são poucas as oportunidades nas quais, divulgada a fala de um acadêmico respeitado, ao mesmo tempo vozes de todas as cores partidárias, muitas vezes das mesmas cores, a ela se opõem acidamente ou aderem entusiasticamente, o que revela que, na verdade, talvez o pensamento publicado tenha sido pautado por uma isenção e um equilíbrio que passaram despercebidos, não tendo o pensador incorrido em filiação a qualquer ideologia político-partidária.

Talvez seja verdade que exista um leve predomínio do pensamento de esquerda entre os acadêmicos das ciências humanas, mais propensos a idealizar uma sociedade mais justa e menos desigual. Isso, todavia, longe de ser repelido com violência leviana, deveria ser motivo de reflexão por parte daquele que sinceramente admitisse não possuir os mesmos atributos de conhecimento. Ora, se um grupo de pessoas sem afinidades entre si no tempo e no lugar, após uma vida dedicada a estudar e refletir sobre a sociedade, passa a entender que o mundo, tal como se apresenta, é profundamente injusto socialmente, com repartição desigual dos benefícios oriundos da Terra, e mereceria uma refundação político-econômica como meio de mitigar os efeitos daninhos observados, quem sou eu, que não me dedico a tal estudo, para dizer que esse grupo é formado por "esquerdopatas"? É muito provável que a afirmação da "esquerdopatia acadêmica" tenha sido comemorada, pelo internauta que a proferiu, como demonstração de inteligência racional, mas é pura idiotia arrogante, um efeito da superioridade ilusória da qual padece.

Obviamente que não cabe advogar a renúncia à crítica e uma espécie de adesão incondicional a argumentos de autoridade. Apenas se ressalta que a refutação de um trabalho sério de pesquisa, realizado com base epistemológica, não pode ser levianamente produzida na base do "achismo" ou a partir da primazia da incredulidade desfundamentada. Ao ser confrontado com uma pesquisa acadêmica, realizada por pesquisadores da Unicamp, que demonstrava que o programa bolsa-família não produz o voto de cabresto e possui baixo índice de desvio, um crítico limitou-se a afirmar não acreditar nisso. Por quê?, indagou-se ao crítico, que respondeu que não era isso que "via" nas pessoas que conhecia e que eram beneficiárias do programa. E ponto final. Uma pesquisa que envolveu trabalho de campo com centenas, talvez milhares de beneficiários do programa, em um sem número de municípios distintos, além de dados obtidos em instituições como IBGE e posterior adensamento intelectual na redação da monografia, que sempre exige longa reflexão, de meses ou mesmo anos, foi jogada fora em cinco minutos de conversa porque não era isso que o iludido "via" em três ou quatro pessoas que conhecia, a acreditar em sua palavra. Não há como remar contra argumentos desse tipo, que representam um verdadeiro tsunami de insipiência.

Nos últimos anos parece que houve uma epidemia de ocorrências do Efeito Dunning-Kruger. Para piorar as consequências daninhas da prevalência da ignorância ressentida sobre a inteligência verdadeira, a voz da ilusão de superioridade intelectual predomina no discurso que é ressoado pela mídia, multiplicando o seu efeito devastador.

Em prejuízo da construção de uma sociedade mais equilibrada, menos desigual, pari passu com a figura do idiota arrogante, movido por superioridade intelectual ilusória, têm-se os intelectuais verdadeiros que escrevem textos de forma totalmente hermética, prenhe de jargões incompreensíveis para os leigos, que são produzidos para ser publicados nos jornais, obviamente com a intenção de alcançar o público comum, não acadêmico. Tais textos são dirigidos a um público diferente daquele formado pelo universo dos idiotas arrogantes: os ignorantes deslumbrados.

Em termos sociológicos, quanto à discussão pública dos dilemas sociais a serem enfrentados coletivamente, discursos teóricos construídos com alta complexidade, e não direcionados ao estrito âmbito da academia, longe de solução, costumam ser um problema. Os discursos reducionistas também complicam as coisas. Os primeiros com muita frequência são paralógicos, muitas vezes simplesmente vazios de conteúdo e em outras apenas sofistas. Em ambos os casos buscam produzir a ilusão da verdade para alcançar um objetivo oculto, em geral, mas não necessariamente, apologéticos ao conservadorismo. Quanto mais profundamente se deseja enganar muitas pessoas simultaneamente, mais palavras fora do comum são necessárias ser ditas para o sucesso do intento. Os ignorantes deslumbrados ficam fascinados por textos que não compreendem, entendendo-os como demonstração de profundo conhecimento de quem os escreve.

O mesmo ocorre com os discursos reducionistas. O reducionismo na conversa política busca dar a falsa impressão de que a ação coletiva almejada é facilmente alcançável, como, por exemplo, na invocação da assim chamada "vontade política", uma espécie de varinha de condão política que tudo viabiliza, em relação a uma certa figura pública, sem levar em conta o grau de dificuldade da ação pretendida, não somente com relação às condições materiais exigidas, como na amplitude do convencimento político-institucional necessário. Parece claro que a vontade política capaz de solucionar a maioria dos problemas coletivos dificilmente será proveniente de um determinado agente político - caso em que seria praticamente anódina - possuindo potência transformadora somente aquela que é adotada pela maioria de dado universo de pessoas políticas com efetivo poder. Historicamente, tal vontade política dos poderosos, no que concerne aos reais interesses do povo, ocorre apenas em situações especialíssimas, como revoluções ou calamidades públicas.

Como costuma ocorrer em relação a todas as instituições humanas, parece que o equilíbrio repousa no meio. Nem complexificação exagerada, nem reducionismo extremo.

E, claro, tentando reconhecer valor ao conhecimento de quem realmente o possui.