As eleições
municipais simbolizam um marco zero para as esquerdas, de fim da era de
predominio absoluto do PT.
O partido nasceu
moderno nos anos 80, como uma confluência de coletivos.
Nos anos 90
amoldou-se para a luta política convencional, revendo dogmas, aplainando
radicalismos estéreis. Mas, para tanto, recorreu a um centralismo que pouco a
pouco foi inibindo o protagonismo dos coletivos.
Com a chegada ao
poder, tentou manobrar as ferramentas de luta institucional. Nesse período,
perdeu quatro elementos centrais: José Genoíno e Luiz Gushiken, tragados pela
AP 470; o ex-Ministro Márcio Thomaz Bastos; manteve ainda José Dirceu atuando
como eminência parda, mas sem dispor mais das ferramentas institucionais e
afastado do centro de poder pelo isolamento a que foi confinado pelo governo
Dilma, crítica de seus métodos.
Finalmente, no
governo Dilma Rousseff perdeu a identidade ideológica.
Assim, ocorreu uma
quádrupla derrota nos campos político, institucional, midiático e ideológico. A
esquerda terá que ser refundada.
As características
dos novos tempos são as seguintes.
Peça
1 - fim do lulismo
A legenda Lula
compreendia um conjunto de símbolos pouco captados pelas novas gerações: a
criação da CUT, os comícios da Vila Euclides, a campanha de Collor, a campanha
do impeachment.
Manteve-se como o
grande aglutinador dos grupos de esquerda e como o maior símbolo da política
brasileira do século. Mas tombou, vítima da falta de lembrança das novas
gerações, da campanha sistemática de destruição pela aliança da Procuradoria
Geral da República (PGR), Lava Jato e mídia. E pelos erros tremendos de não ter
entendido os aspectos institucionais e midiáticos da guerra política.
Na verdade, o único
líder do PT com essa visão era José Dirceu. Explicitou demais o seu
poder, atuou com excessiva desenvoltura em todas as áreas, do Judiciário aos
grandes grupos e terminou fuzilado por uma armação: a tal "teoria do
fato", magistralmente definida pela Ministra Rosa Weber com seu célebre
"não tenho provas, mas a doutrina me permite condená-lo".
Depois, foi alvo de
todas as armações acusatórias possíveis e de uma bala de prata real: suas
relações com Milton Pascowitch.
O sonho de Lula
2018 está comprometido pelos resultados da campanha política de desconstrução
de sua imagem e pela continuidade do jogo político escandaloso da Lava Jato,
visando inabilitá-lo juridicamente.
Continuará sendo
figura referencial das esquerdas, a liderança capaz de aglutinar os diversos
setores. Mas os cenários possíveis para a esquerda têm que começar a trabalhar
com a hipótese concreta de não contar com Lula em 2018.
Peça
2 - a mediocridade da direita
Nos anos 80, ganhou
popularidade uma velha piada sobre o inferno.
O sujeito morre,
vai para o inferno e precisa escolher entre três, o inferno norte-americano, o
alemão ou o brasileiro. O brasileiro, além de incorporar todas as
funcionalidades dos dois anteriores, ainda tem um cardápio adicional de
tortura, dentre as quais meia hora diária ouvindo o José Serra falando sobre o
perigo bolivariano no mundo.
O condenado se
espantou:
·
Se
o brasileiro é tão pior assim, porque está cheio e os dois outros vazios?
·
É
porque no brasileiro nada funciona. O Secretário de Governo desviou o carvão da
fornalha, o demônio da Casa Civil montou uma concorrência fraudada e a cadeira
do Dragão dá curto circuito, o Satanás só herdou as mesóclises de Jânio. E o
Serra nunca aparece porque dorme até tarde e passa o resto do dia tentando
decorar siglas: Brics, NSA, Mercosul, União Europeia… Brics, NSA, Mercosul, União
Europeia… Bracs, perdão, Brics, GSA, perdão NSA...
Piadas à parte, a
direita brasileira não se mostra capaz de desenhar um projeto minimamente
articulado de país. Nos anos 90, embarcou na onda Reagan-Thatcher, que começava
a dominar o mundo pós-muro de Berlim. Agora, nada tem, nem utopias globais às
quais recorrer. Atualmente único fator de aglutinação é atacar a velha esquerda
e exalar toda forma de preconceito. E importar das ondas globais a intolerância
mais retrógrada.
Terá vida curta.
Sua única saída será ampliar o Estado de Exceção. Mas mesmo para isso teria que
dispor de características morais e de capacidade de desenhar o futuro. Só
com mesóclises será insuficiente...
Portanto o novo
tempo do jogo está próximo, de menos de uma década, com novos atores que ainda
estão em formação.
Peça
3 - a ampliação do estado de exceção
Antes de ingressar
no novo tempo político, há o enorme desafio de enfrentar a maré do Estado de
Exceção.
Quando comecei a
apontar a participação do PGR Rodrigo Janot no golpe, procuradores bem
intencionados preferiram se iludir com a presunção de isenção. Nas suas
entranhas, o processo jurídico é burocratizado e lento. E as regras de accoutibility suficientemente
vagas para que os operadores do direito manobrem com prazos, com
avaliações subjetivas sobre os inquéritos e, principalmente, com o uso
seletivo dos vazamentos.
O inquérito contra
Aécio Neves dormiu por anos na gaveta do PGR. O julgamento do “mensalão tucano”
foi atrasado por anos graças a um mero "esquecimento" do Ministro
Ayres Brito.
Até hoje é
impossível saber quais e quantos inquéritos repousam nas gavetas da PGR ou em
pedidos de vista intermináveis do STF.
Agora, o MPF e a
Polícia Federal se constituem na maior ameaça à democracia. E há razões de sobra
para temer.
Qualquer avaliação
sobre o avanço do Estado de Exceção tem que analisar dinamicamente o que
ocorre, levando em conta todos esses sinais.
O que Mirian Leitão
fez foi uma mistificação histórica, ao comparar o quadro politico atual com a
ditadura pós-AI5, em plena maré de torturas, para concluir que hoje em dia não
existe regime de exceção.
Para chegar a 1968,
a ditadura passou por 1964, período no qual foram plantadas as sementes da
radicalização posterior - principalmente quando o regime entendeu que não tinha
possibilidades eleitorais. E surgiu porque avançou-se dia a dia em medidas de
exceção, criminalizando os críticos, fossem comunistas ou liberais. E, na
mídia, as Miriam Leitão da época estimulavam a caça às bruxas recorrendo a um legalismo
de araque.
Se Mirian e outros
colegas forem bem sucedidos em seu trabalho diário de fomentar a caça às
bruxas, é possível que dentro de pouco tempo possamos chegar ao padrão AI5.
O direito penal do
inimigo está proliferando por todos os poros da república, dos colunistas de
jornais a procuradores da República, diretores de escola expurgando
“comunistas” e redações expurgando quem ousar criticar o golpe.
É um sentimento
disseminado.
É possível que em
um ponto qualquer do futuro erga-se alguma onda de resistência contra o
arbítrio. No momento, não.
No CNMP (Conselho
Nacional do Ministério Público) as piores asneiras de direita são perdoadas.
Hoje em dia, no entanto, as ameaças do CNMP pairam sobre o pescoço do
procurador que questionou a reforma trabalhista em artigo, os bravos
procuradores da República em São Paulo que correram até a delegacia para
defender jovens vítimas de arbitrariedades policiais; a Procuradora Federal dos
Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, por ter decidido filmar as passeatas para
coibir as truculências da Polícia Militar paulista.
Em quadro de
normalidade democrática, de discernimento mínimo jurídico, nem o mais obtuso
procurador da República proibiria exposição de obras de Paulo Freire na UFRJ
(Universidade Federal do Rio de Janeiro) ou cartazes de “fora Temer” em
colégios - como fez ontem o procurador da República no Rio de Janeiro, Fábio
Moraes de Aragão.
Por tudo isso, o
primeiro grande desafio será conter essa escalada da violência, do dedurismo,
que entrou por todos os poros da sociedade.
Peça
4 - a reconstrução de um modelo de esquerda
Essa reconstrução
passa não apenas pela recuperação dos valores centrais - inclusão social,
políticas sociais, estado do bem estar social, tolerância, defesa das minorias,
defesa do meio ambiente etc. -, mas por rediscussão sobre modelos de estado,
instituições e mídia.
Sobre
instituições
A maneira das
corporações entrarem no jogo político foi atrás do associativismo. Criado como
uma instância de supervisão do Judiciário, por exemplo, o CNJ (Conselho
Nacional de Justiça) só levanta dados para justificar gastos do Judiciário. O
CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) é incapaz de ações mais severas
contra abusos de procuradores. Hoje em dia, o Judiciário já consome 1,8% do PIB
e caminha para 2,1%, fato inédito em qualquer economia global.
Pior, há um
desconhecimento amplo dessas corporações em relação a temas políticos e
econômicos, mais ainda em relação a projetos de país.
Nenhum governo será
viável se não tiver o controle dessa agenda e se não instituir uma accountibility ampla
nesses setores. Hoje em dia não se tem acompanhamento nem sobre processos em
tramitação no Supremo, nem na Câmara, não se tem controle sobre a gaveta do
PGR.
Terá que se
recuperar os princípios originais de independência do Ministério Público e do
Judiciário: para assegurar a independência de julgamento do juiz e o trabalho
independente do procurador. e não como ferramenta de instrumentalização
política de um poder de Estado.
Sobre
gestão
Os governos Lula e
Dilma revelaram grandes exemplos de boa gestão, especialmente nos programas
desenvolvidos por Fernando Haddad no MEC (Ministério da Educação), no Bolsa
Família e no Brasil para Todos. E alguns arremedos de gestão compartilhada no
PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
Mesmo assim, não
trataram de definir um padrão, a partir do acúmulo de experiências bem
sucedidas.
Mas, apesar dos
avanços, ainda se deixou muito a desejar.
1. A institucionalização de
políticas públicas passa por definir métodos claros de parceria com estados,
municípios e terceiro setor. Só se consegue com a criação de protocolos de
procedimentos para cada programa, facilmente assimiláveis na ponta, fiscalizáveis
e reprodutíveis.
2. Desenvolvimento de modelos de
comunicação, para facilitar a compreensão da opinião pública sobre os
benefícios dos projetos.
3. Institucionalização de canais de
participação da sociedade nas diversas instâncias de discussão das políticas
públicas.
Sobre
mídia
Nenhuma democracia
é compatível um mercado dominado por grandes grupos de mídia atuando de forma
cartelizada e com poder de fogo similar ao das Organizações Globo.
Em todos os fóruns
de direitos humanos, o direito à informação ganhou status de direito
fundamental, tão relevante quanto o direito à vida, à alimentação e à saúde.
A Globo conseguiu
seu maior feito politico ao ser a protagonista principal de um golpe de Estado.
Criou uma conta enorme a ser saldada em um ponto qualquer do futuro. Desde
então, se transformou no inimigo número um de qualquer governo progressista que
surja nas próximas décadas.