25/01/2017
Já se disse quase tudo e se fez de tudo em termos
de crítica, de manifestações de professores, estudantes, artistas e
intelectuais no sentido de salvar um dos patrimônios culturais mais caros à
cidade do Rio de Janeiro: a Universidade do Rio de Janeiro, fundada em 1950.
Quero ater-me a um testemunho pessoal dos anos em que fui professor de ética e
de filosofia da religião naquela Universidade que teve a generosidade de me
oferecer uma cátedra logo após a minha condenação ao “silêncio obsequioso”pelas
autoridades doutrinais do Vaticano. Poteriormente ingressei por concurso
público. Mas antes vale recordar uma política exemplar vinda de Cuba.
A dissolução política da União Soviética que
apoiava economicamente Cuba nos quadros de uma política de solidariedade,
seguiu-se formidável crise generalizada, pois a nova Rússia não tinha mais
condições de ajudar o país. Entregou-o à própria sorte. Tudo foi duramente
reduzido e reajustado. Mas dois campos ficaram intocáveis: a saúde e a
educação. Aí se mantiveram todos os investimentos necessários. É conhecido o
alto nível da educação e da saúde de Cuba. A razão era óbvia: um povo doente e
ignorante nunca poderá levar avante qualquer projeto nacional.
Pois não é isso que ocorre no Brasil. Cortou-se na
saúde e na educação. Parece que a falta de educação e de saúde obedece à lógica
da dominação das classes endinheiradas e do Estado refém de suas estratégias. É
mais fácil explorar um povo ignorante e doente que sadio e educado. Muito do
analfabetismo e dessasistência sanitária têm raízes políticas, o que é
eticamente desumano e politicamente perverso.
Assistir à derrocada da UERJ, uma das melhores
universidades do país, com méritos em quase todos os campos do saber e da
pesquisa, a primeira a abrir-se à política de cotas face à carência de pobres e
negros, é aceitar que se mate a seiva da criatividade e se feche o horizonte de
um futuro da atual geração de estudantes e de professores. Bem dizia Celso
Furtado em seu “O longo amanhecer: “Uma sociedade só se transforma se
tiver capacidade de improvisar, de ter ou não acesso à criatividade: eis a
questão”(1999,p.67). O que caracterizava a UERJ era e continua sendo sua
criatividade, sua abertura a fronteiras novas, seja ligadas a pesquisa de ponta
em várias áreas técnicas e na saúde –a primeira a introduzir a medicina
integral – seja sua articulação com as bases populares com cursos de extenção
na formação de liderenças, em direito social e em educação em direitos humanos
em vários municípios, sua atuação corajosa nos conflitos de terras.
Aceitei ser professor nesta universidade à condição
de que minhas aulas fossem abertas a quem quisesse das comunidades e de outros
interessados. Sempre havia representantes das bases que animavam as discussões,
pois eles não falam palavras, falam coisas. Minha preocupação em filosofia era
levar os estudantes a pensar com suas próprias cabeças e tomar como temas de
tese realidades brasileiras. Não basta saber o que Aristóteles, Heidegger,
Habermas, Bergson, Deleuse ou Gatarri sabiam. Importa pensar o que sabemos. Daí
nasceram teses brilhantes, como, por exemplo, uma sobre o profeta Gentileza,
outra sobre espiritualidade nos tempos modernos no diálogo com a psicologia
analítica de C.G. Jung. Uma estudante grávida deveria observar-se nas várias
fases da gravidez e fazer uma leitura filosófico-fenomenológica no sentido de
vida que ia se revelando nela. Produziu um texto, digno de publicação. Exemplos
entre outros tantos.
Contudo, o que mais me impressionou nesta Universidade
da qual trago as melhores lembranças e cujo nome levei a todos os países nos
quais dei paletras e cursos, na Rússia, na China e até entre os samis
(esquimós) perto do pólo norte, foi o ambiente de abertura e de representação
do que é o Brasil real, com a presença de estudantes vindos das classes
populares da Baixada Fluminese, a coexistência sem qualquer discriminação entre
negros e brancos, a orientação social de todo o ensino da Universidade, com
forte acento na construção de uma nação livre, criativa, soberana e insubmisa
às lógicas da dominação. Há que recordar a resistência da UERJ à ditadura
militar com a morte de um estudante pelos órgãos de repressão .
O lema das manifestações é “luto e luta”: luto pela
agonia deste centro de excelência e luta para garantir sua existência contra o
sucateamento e sua eventual privatização. Salvar a UERJ é garantir a seiva da
vida intelectual e artística da cidade e permitir que o Brasil inteiro se
beneficie com seus serviços sérios e excelentes.
Leonardo Boff é professor aposentado da UERJ e
sempre aberto a convites de palestras e de mesas redondas.