Ainda lendo “Pape Satàn Aleppe – crônicas de uma
sociedade líquida”, do Umberto Eco, segue abaixo mais uma de suas colunas.
Desta vez discutindo a Ciência, Cultura, a informação e o conhecimento...
divirtam-se.
Entre Dogmatismo e Falibilismo
Umberto Eco – 2010
No “Corrieri della Sera” de domingo passado, Ângelo
Panebianco escreveu sobre os possíveis dogmatismo da ciência. Concordo
fundamentalmente com ele, só gostaria de destacar um outro ângulo da questão.
Panebianco disse, em síntese, que a ciência é por
definição antidogmática, pois sabe que avança por tentativa e erro e porque
(acrescentaria eu, com Peirce, que inspirou Popper) seu princípio implícito é o
“falibilismo”, que a mantém sempre alerta para corrigir os próprios equívocos.
Ela só se torna dogmática em suas fatais simplificações jornalísticas, que
transformam cautelosas hipóteses de pesquisa em descobertas milagrosas e
verdades estabelecidas. Mas também corre o risco de tornar-se dogmática quando
aceita um critério inevitável, ou seja, que a cultura de uma época é dominada
por um “paradigma” (como o darwirniano ou o einsteiniano, mas também o
copernicano) que todo o cientista observa, justamente para eliminar as loucuras
daqueles que atuam fora dele, inclusive os loucos que continuam a afirmar que o
Sol gira em torno da Terra. Como fica então o fato de que a inovação acontece
justamente quando alguém consegue questionar o paradigma dominante? Não estaria
a ciência se comportando de modo dogmático quando se encastela num determinado paradigma,
excluindo quem o contesta como louco ou herege, talvez para defender posições
de poder adquiridas?
A questão é dramática. Os paradigmas devem ser
sempre defendidos ou sempre contestados? Ora, uma cultura (entendida como
sistema de saberes, opiniões, crenças, costumes, heranças históricas
compartilhadas por um grupo humano particular) não é apenas um acúmulo de
dados, é também o resultado de sua filtragem. Cultura também é a capacidade de
se jogar fora aquilo que não é útil ou necessário. A história da Cultura e da civilização
é feita de toneladas de informações que foram sepultadas. Vale para uma cultura
aquilo que vale para nossa vida individual. Borges escreveu o conto “Funes, el
memorioso”, em que fala de um personagem que recorda tudo, cada folha que viu
em cada árvore, cada palavra que ouviu em sua vida, cada lufada de vento que
sentiu, cada sabor que experimentou, cada frase que leu. No entanto (ou aliás,
por isso mesmo), Funes é um completo idiota, um homem bloqueado por sua incapacidade
de selecionar e jogar fora. Nosso inconsciente funciona porque joga fora.
Depois, se ocorrer algum bloqueio, procura-se um psicanalista para recuperar
aquilo que servia e que descartamos por engano. Mas, felizmente, todo o resto
foi eliminado e nossa alma é exatamente o produto da continuidade dessa memória
seletiva. Se tivéssemos a alma de Funes, seríamos pessoas sem alma.
Assim age uma cultura e o conjunto de seus paradigmas
é o resultado da Enciclopédia partilhada, feita não somente com aquilo que
conservamos, mas também, por assim dizer, com o tabu sobre aquilo que
eliminamos. É com base nesta enciclopédia comum que se discute. Mas para que a
discussão seja compreendida por todos, é necessário partir de paradigmas
existentes, nem que seja para demonstrar que não se sustentam mais. Sem a
negação do paradigma ptelomaico, que se conserva como pano de fundo, o discurso
de Copérnico seria incompreensível.
Ora, a internet é como Funes. Como totalidade de
conteúdos disponíveis de modo desordenado, não filtrado e não organizado, ela
permite que cada um construa sua enciclopédia, ou seja, o próprio livre sistema
de crenças, noções e valores, no qual podem estar presentes, como acontece na
cabeça de muitos seres humanos, tanto a ideia de que a água é H2O
quanto a de que o Sol gira em torno da Terra. Na teoria, portanto, poderíamos
chegar à existência de 6 bilhões de enciclopédias diferentes e a sociedade
humana estaria reduzida ao diálogo fragmentar de seis bilhões de pessoas, cada
uma delas falando uma língua diversa, só entendida pelo próprio falante.
Felizmente, esta hipótese é só teórica, mas
justamente porque a comunidade científica zela para que circulem linguagens
comuns, sabendo que para derrubar um paradigma é necessário que exista um paradigma
para ser derrubado. Defender os paradigmas pressupõe certamente o risco do
dogmatismo, mas é esta contradição que serve de base para o desenvolvimento do
saber. Para evitar conclusões apressadas, concordo com o que dizia o cientista
citado no final do texto do Panebianco: “Não sei, é um fenômeno complexo,
preciso estuda-lo”.