domingo, 3 de setembro de 2017

Entre Dogmatismo e Falibilismo

Ainda lendo “Pape Satàn Aleppe – crônicas de uma sociedade líquida”, do Umberto Eco, segue abaixo mais uma de suas colunas. Desta vez discutindo a Ciência, Cultura, a informação e o conhecimento... divirtam-se.

Entre Dogmatismo e Falibilismo
Umberto Eco – 2010

No “Corrieri della Sera” de domingo passado, Ângelo Panebianco escreveu sobre os possíveis dogmatismo da ciência. Concordo fundamentalmente com ele, só gostaria de destacar um outro ângulo da questão.

Panebianco disse, em síntese, que a ciência é por definição antidogmática, pois sabe que avança por tentativa e erro e porque (acrescentaria eu, com Peirce, que inspirou Popper) seu princípio implícito é o “falibilismo”, que a mantém sempre alerta para corrigir os próprios equívocos. Ela só se torna dogmática em suas fatais simplificações jornalísticas, que transformam cautelosas hipóteses de pesquisa em descobertas milagrosas e verdades estabelecidas. Mas também corre o risco de tornar-se dogmática quando aceita um critério inevitável, ou seja, que a cultura de uma época é dominada por um “paradigma” (como o darwirniano ou o einsteiniano, mas também o copernicano) que todo o cientista observa, justamente para eliminar as loucuras daqueles que atuam fora dele, inclusive os loucos que continuam a afirmar que o Sol gira em torno da Terra. Como fica então o fato de que a inovação acontece justamente quando alguém consegue questionar o paradigma dominante? Não estaria a ciência se comportando de modo dogmático quando se encastela num determinado paradigma, excluindo quem o contesta como louco ou herege, talvez para defender posições de poder adquiridas?

A questão é dramática. Os paradigmas devem ser sempre defendidos ou sempre contestados? Ora, uma cultura (entendida como sistema de saberes, opiniões, crenças, costumes, heranças históricas compartilhadas por um grupo humano particular) não é apenas um acúmulo de dados, é também o resultado de sua filtragem. Cultura também é a capacidade de se jogar fora aquilo que não é útil ou necessário. A história da Cultura e da civilização é feita de toneladas de informações que foram sepultadas. Vale para uma cultura aquilo que vale para nossa vida individual. Borges escreveu o conto “Funes, el memorioso”, em que fala de um personagem que recorda tudo, cada folha que viu em cada árvore, cada palavra que ouviu em sua vida, cada lufada de vento que sentiu, cada sabor que experimentou, cada frase que leu. No entanto (ou aliás, por isso mesmo), Funes é um completo idiota, um homem bloqueado por sua incapacidade de selecionar e jogar fora. Nosso inconsciente funciona porque joga fora. Depois, se ocorrer algum bloqueio, procura-se um psicanalista para recuperar aquilo que servia e que descartamos por engano. Mas, felizmente, todo o resto foi eliminado e nossa alma é exatamente o produto da continuidade dessa memória seletiva. Se tivéssemos a alma de Funes, seríamos pessoas sem alma.

Assim age uma cultura e o conjunto de seus paradigmas é o resultado da Enciclopédia partilhada, feita não somente com aquilo que conservamos, mas também, por assim dizer, com o tabu sobre aquilo que eliminamos. É com base nesta enciclopédia comum que se discute. Mas para que a discussão seja compreendida por todos, é necessário partir de paradigmas existentes, nem que seja para demonstrar que não se sustentam mais. Sem a negação do paradigma ptelomaico, que se conserva como pano de fundo, o discurso de Copérnico seria incompreensível.

Ora, a internet é como Funes. Como totalidade de conteúdos disponíveis de modo desordenado, não filtrado e não organizado, ela permite que cada um construa sua enciclopédia, ou seja, o próprio livre sistema de crenças, noções e valores, no qual podem estar presentes, como acontece na cabeça de muitos seres humanos, tanto a ideia de que a água é H2O quanto a de que o Sol gira em torno da Terra. Na teoria, portanto, poderíamos chegar à existência de 6 bilhões de enciclopédias diferentes e a sociedade humana estaria reduzida ao diálogo fragmentar de seis bilhões de pessoas, cada uma delas falando uma língua diversa, só entendida pelo próprio falante.


Felizmente, esta hipótese é só teórica, mas justamente porque a comunidade científica zela para que circulem linguagens comuns, sabendo que para derrubar um paradigma é necessário que exista um paradigma para ser derrubado. Defender os paradigmas pressupõe certamente o risco do dogmatismo, mas é esta contradição que serve de base para o desenvolvimento do saber. Para evitar conclusões apressadas, concordo com o que dizia o cientista citado no final do texto do Panebianco: “Não sei, é um fenômeno complexo, preciso estuda-lo”.