O papel do cientista junto à sociedade vem sendo, com ênfase, desde o
século XX, o de denúncia acerca de padrões de comportamento, ideias e normas
adotadas que causam desigualdade e ferem indivíduos e grupos em desigualdade de
poder. Mas também é papel do cientista, manter um mínimo de isenção, a fim de
não tornar-se ele um escravo de ideologias e perder a sua maior vocação - a
capacidade crítica que lhe confere uma visão científica dos fatos. É claro que
enquanto parte da sociedade, a extrema objetividade é uma ilusão. Mas é
obrigação do cientista (e digo isso no lugar de fala de alguém que há 25 anos
atua na ciência que mais necessita desse espaço de distanciamento posterior à
imersão cultural - a antropologia) trabalhar esse distanciamento para que sua
atuação na sociedade seja a de separar o joio do trigo, na apreensão e
decodificação de fatos, narrativas, movimentos, ideologias, comportamentos e
indicadores socioculturais.
Há 25 anos desenvolvi uma pesquisa de mestrado sobre a indústria
fonográfica onde mapeei a relação entre produtores independentes e grandes
gravadoras, onde diagnostiquei uma relação simbiótica onde não existem
"mocinhos e bandidos", mas um movimento de apropriação cultural do
mercado e expropriação de conteúdos, onde se separa o signo do significado para
tornar o código cultural dos outsiders um "produto", ao ressignificar
elementos culturais desterritorializados de sua origem. Parece sopa de
letrinha? Mas é fácil entender: o mercado expropria o sentido original do
movimento gótico e cria a tendência "gótica suave". O consumidor quer
o o sentido de autenticidade do outsider para que o produto tenha uma lógica de
diferenciação que atraia, mas quer o conforto e segurança de "não ter contato
com os outsiders, os excluídos, os marginalizados". Fetiche da mercadoria?
Mercado predatório? Apropriação cultural? Expropriação? É tão fácil dar uma
solução óbvia e que veste ideologias, mas durante a pesquisa percebi que, é
graças a esse sistema que muitos produtores alternativos conseguem se alavancar
e que é assim que bandas, selos, produtores culturais e toda uma gama de
pessoas excluídas de um sistema consegue viabilizar sua produção. Os
alternativos "se relacionam" com os majors e é onde conseguem
estabelecer seu valor e seu preço, sua distinção e elevam seu grupo a objeto de
desejo, conseguindo levar sua mensagem e seus códigos ao Outro.
Já no doutorado, há 22 anos, minha pesquisa, realizada entre Brasil,
Inglaterra e Itália teve como objetivo mapear a relação entre a indústria do
vestuário e a cultura urbana dos excluídos esteticamente, onde uma vertente da
moda inglesa tornou aquilo que a moda mais abominava, tendência estética em
voga, como quando Alexander Mcqueen vestiu Aimée Mullins, uma atleta com as
pernas amputadas como Joana D'arc num desfile e colocou uma mulher obesa nua
numa caixa de vidro em outro desfile, mostrando que o mercado faz o mesmo
processo de se apropriar da cultura das margens para gerar significados para as
elites. Na mesma lógica do meu mestrado, mapeei, há 20 anos, o processo de
apropriação de culturas excluídas e como seus indivíduos, ao mesmo tempo que
tem seus conteúdos expropriados, também conseguem "dar seu preço",
numa relação onde conseguem ser "vistos" e valorizados justamente
naquilo que a sociedade rejeita, pois aí reside a chave da inovação e
diversidade que alimentam o sistema e que a elite não consegue produzir, pois
não tem o "raw", o significado gutural capaz de impactar,
surpreender, diferenciar do "mais do mesmo". O sistema continua
predatório, mas os excluídos, também aqui, se relacionam com o sistema e levam
sua mensagem e seu "preço", o que repercute em capital de valor.
Todo esse "recitativo de currículo acadêmico chato e autorreferencial"
(rs) pra dizer que, 20 anos depois vejo com grande alegria, mas sem espanto, a
tendência mundial de ascensão de grupos excluídos na mídia, no mercado, no
sistema e sua - necessária - exigência de respeito, de valorização, de
reconhecimento à sua dignidade como indivíduos e como grupo. Há 20 anos quando
falávamos sobre o racismo, a homofobia e o sexismo no mercado, éramos os
loucos, os chatos, os acadêmicos que não entendem nada de como a economia
funciona. Quando falávamos sobre como o preconceito é estrutural e não é
compreendido mesmo pelos grupos que sofrem dele, pois é naturalizado,
recebíamos pedras e deboche.
Pois bem, no momento atual, onde o mercado se apropriou das causas
sociais - tema do meu último pos doc - "A Era das Causas - O Propósito
como Capital de Valor" - vejo indivíduos, grupos, profissionais e marcas
"comprarem a briga contra o preconceito" e isso é tão essencial,
necessário e manifestação macro do processo que estudo há 25 anos, que quando
observo com o distanciamento necessário para entender o que ocorre, percebo uma
nova anomalia que, realmente, não sei se seria possível não ocorrer, dado que a
sociologia mostra como o sapiens sempre manifesta alguns comportamentos padrão
em relações de poder sendo o objeto dessas relações algo de esquerda, de
direita, da elite, do periférico, no maisntream, ou no underground - Sempre
haverá aquele, ou aqueles, que se apropriam da ideologia vigente e serão
"mais sofredores que o próprio sujeito do sofrimento" (pensemos na
Idade Média e os fiéis que se automutilavam para serem mais próximos de Deus ao
reproduzirem o sofrimento de Jesus), o que é brilhantemente mencionado por
George Orwell, na obra "A Revolução dos Bichos": “Os animais são
todos iguais, mas uns são mais iguais do que outros". Ou que Jean Baudrillard
abordou em sua "Lógica da Diferenciação", na obra "O sistema dos
Objetos", onde pessoas utilizam signos e códigos culturais para se
diferenciarem no mosaico social. Isso nos leva a um dos tópicos de minha
pesquisa em "A Era das Causas" - a lógica da busca por diferenciação
por meio de status não mudou, o sistema continua o mesmo, o que mudou foi a
estrutura de significação do que é status HOJE. Se há 30 anos ter status era
ter um carro caro e bonito, diferenciando-se pelo consumo de bens de luxo, atualmente,
ter status atualmente é não ter carro e usar transporte alternativo, pois
status hoje é consumo moral, consciente, baseado em ideologias que defendem
causas sociais e a inclusão de grupos excluídos. Assim, da mesma forma como há
algumas décadas pessoas buscavam diferenciação sendo "mais que as outras
ao consumir luxo", pessoas hoje buscam "ser mais que as outras ao
consumir ideologias, causas e ser mais inclusivos e mais militantes da inclusão
do que os próprios excluídos".
A lógica da vaidade e da diferenciação social é a mesma. A diferença é
que no consumo moralmente orientado por causas, a necessidade de se fazer mais
militante que o Outro, apontar dedos e dizer que o Outro diz que é militante,
mas não é tão militante assim, pois não apoia tal ação, não participa de tal
grupo, incorreu numa fala preconceituoso, racista, ou homofóbica, é a nova
marcação social de status, em nada diferente dos cristãos que se automutilavam
e faziam votos de pobreza, ou dos consumidores de luxo que eram mais
"trendy" do que a própria elite que tinha acesso ao luxo de exceção e
assim apontava dedo ao Outro pois ele era "cafona", antiquado, ou
apenas pobre.
Tudo isso pra dizer, meus amigos, que, sem nenhuma tentativa de estar
expondo "verdades" (que não existem em ciências sociais), apenas
tecendo um relato sobre um encadeamento lógico observado ao longo de minha
vivência como pesquisadora, acredito que a função dos cientistas sociais, nesse
momento, é a função que exercemos como orientadores no campo científico,
orientar, não é dizer o que se tem ou não que fazer, ou expor uma verdade
incontestável, mas é trazer os olhos do orientando ao caminho do Oriente, que é
onde nasce o Sol, onde nasce a luz, para que ele, a sociedade, tenham maior
clareza ao observar os fenômenos que ocorrem na sociedade contemporânea, sem
impor ideologias que, mesmo que como pesquisadores acreditemos que são
corretas, não devem ser impostas por cientistas. Nosso papel é mostrar dados,
pesquisas que refletem o momento presente e, nesse contexto, expor também os
desvios que mapeamos ao observar sistematicamente a realidade.
É nosso papel expor as raízes e naturalização do preconceito, as formas
veladas e explícitas da discriminação étnica, social, de gênero, mas também é
nosso papel expor o quanto a apropriação que pessoas, grupos e empresas estão
fazendo do novo capital de status social - a militância por causas - também vem
sendo utilizada como uma ferramenta de diferenciação e exclusão social, de
soberba, de manipulação e causando comportamentos ferinos onde indivíduos e
grupos se posicionam como instituições sociais a demonizarem pessoas que são,
muitas vezes, apenas ignorantes. Nosso papel é primeiro educar, levar a luz do
conhecimento, mostrar como são engendradas as vilanias sociais do preconceito e
da discriminação e todo educador de verdade sabe que o processo de educação
leva tempo, pois existe a necessidade de desconstruir paradigmas que fazem
parte de pessoas, grupos e empresas desde sempre. Apenas apontar dedos e cobrar
comportamentos de quem não entende as estruturas da desigualdade, demonizando o
Outro antes de fazê-lo entender os processos sociais, não é o papel do
cientista.
Assim como a produção da tendência "gótica suave" esvazia o
sentido do ser gótico, do movimento gótico e do lugar de fala dos membros desse
grupo, a era das causas como código de diferencial de status, esvazia o sentido
que cada causa social tem para aqueles que são excluídos e sujeitos dessas
causas. Nesse contexto, proponho uma atitude reflexiva sobre o momento presente
das causas para que um processo necessário de equanimidade e inclusão não se
transforme em ferramenta de diferenciação social, de criação de "iguais
mais iguais que os outros", pois se isso ocorrer, a Era das Causas será
mais uma tendência a obsolescer e seus efeitos sociais serão superficiais e inócuos.
https://brasil.elpais.com/cultura/2020-07-08/chomsky-rushdie-steinem-e-outros-150-intelectuais-reivindicam-o-direito-de-discordar-nos-eua.html
Bibliografia
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mercado fonográfico, produção e tendências do rock nos anos 90.
1998.Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
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2003.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
BRANDINI, Valéria. A ERA DAS CAUSAS. O Propósito como Capital na
Estética Publicitária. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo. Editora Reflexiva.
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ORWELL, George. A revolução dos Bichos. São Paulo. Editora globo. 1990