sexta-feira, 10 de julho de 2020

Militância Ideológica como Soberba e Manipulação: o Perigo do Esvaziamento das Causas Sociais no Mercado - Separando o Joio do Trigo



O papel do cientista junto à sociedade vem sendo, com ênfase, desde o século XX, o de denúncia acerca de padrões de comportamento, ideias e normas adotadas que causam desigualdade e ferem indivíduos e grupos em desigualdade de poder. Mas também é papel do cientista, manter um mínimo de isenção, a fim de não tornar-se ele um escravo de ideologias e perder a sua maior vocação - a capacidade crítica que lhe confere uma visão científica dos fatos. É claro que enquanto parte da sociedade, a extrema objetividade é uma ilusão. Mas é obrigação do cientista (e digo isso no lugar de fala de alguém que há 25 anos atua na ciência que mais necessita desse espaço de distanciamento posterior à imersão cultural - a antropologia) trabalhar esse distanciamento para que sua atuação na sociedade seja a de separar o joio do trigo, na apreensão e decodificação de fatos, narrativas, movimentos, ideologias, comportamentos e indicadores socioculturais.

Há 25 anos desenvolvi uma pesquisa de mestrado sobre a indústria fonográfica onde mapeei a relação entre produtores independentes e grandes gravadoras, onde diagnostiquei uma relação simbiótica onde não existem "mocinhos e bandidos", mas um movimento de apropriação cultural do mercado e expropriação de conteúdos, onde se separa o signo do significado para tornar o código cultural dos outsiders um "produto", ao ressignificar elementos culturais desterritorializados de sua origem. Parece sopa de letrinha? Mas é fácil entender: o mercado expropria o sentido original do movimento gótico e cria a tendência "gótica suave". O consumidor quer o o sentido de autenticidade do outsider para que o produto tenha uma lógica de diferenciação que atraia, mas quer o conforto e segurança de "não ter contato com os outsiders, os excluídos, os marginalizados". Fetiche da mercadoria? Mercado predatório? Apropriação cultural? Expropriação? É tão fácil dar uma solução óbvia e que veste ideologias, mas durante a pesquisa percebi que, é graças a esse sistema que muitos produtores alternativos conseguem se alavancar e que é assim que bandas, selos, produtores culturais e toda uma gama de pessoas excluídas de um sistema consegue viabilizar sua produção. Os alternativos "se relacionam" com os majors e é onde conseguem estabelecer seu valor e seu preço, sua distinção e elevam seu grupo a objeto de desejo, conseguindo levar sua mensagem e seus códigos ao Outro.

Já no doutorado, há 22 anos, minha pesquisa, realizada entre Brasil, Inglaterra e Itália teve como objetivo mapear a relação entre a indústria do vestuário e a cultura urbana dos excluídos esteticamente, onde uma vertente da moda inglesa tornou aquilo que a moda mais abominava, tendência estética em voga, como quando Alexander Mcqueen vestiu Aimée Mullins, uma atleta com as pernas amputadas como Joana D'arc num desfile e colocou uma mulher obesa nua numa caixa de vidro em outro desfile, mostrando que o mercado faz o mesmo processo de se apropriar da cultura das margens para gerar significados para as elites. Na mesma lógica do meu mestrado, mapeei, há 20 anos, o processo de apropriação de culturas excluídas e como seus indivíduos, ao mesmo tempo que tem seus conteúdos expropriados, também conseguem "dar seu preço", numa relação onde conseguem ser "vistos" e valorizados justamente naquilo que a sociedade rejeita, pois aí reside a chave da inovação e diversidade que alimentam o sistema e que a elite não consegue produzir, pois não tem o "raw", o significado gutural capaz de impactar, surpreender, diferenciar do "mais do mesmo". O sistema continua predatório, mas os excluídos, também aqui, se relacionam com o sistema e levam sua mensagem e seu "preço", o que repercute em capital de valor.

Todo esse "recitativo de currículo acadêmico chato e autorreferencial" (rs) pra dizer que, 20 anos depois vejo com grande alegria, mas sem espanto, a tendência mundial de ascensão de grupos excluídos na mídia, no mercado, no sistema e sua - necessária - exigência de respeito, de valorização, de reconhecimento à sua dignidade como indivíduos e como grupo. Há 20 anos quando falávamos sobre o racismo, a homofobia e o sexismo no mercado, éramos os loucos, os chatos, os acadêmicos que não entendem nada de como a economia funciona. Quando falávamos sobre como o preconceito é estrutural e não é compreendido mesmo pelos grupos que sofrem dele, pois é naturalizado, recebíamos pedras e deboche.

Pois bem, no momento atual, onde o mercado se apropriou das causas sociais - tema do meu último pos doc - "A Era das Causas - O Propósito como Capital de Valor" - vejo indivíduos, grupos, profissionais e marcas "comprarem a briga contra o preconceito" e isso é tão essencial, necessário e manifestação macro do processo que estudo há 25 anos, que quando observo com o distanciamento necessário para entender o que ocorre, percebo uma nova anomalia que, realmente, não sei se seria possível não ocorrer, dado que a sociologia mostra como o sapiens sempre manifesta alguns comportamentos padrão em relações de poder sendo o objeto dessas relações algo de esquerda, de direita, da elite, do periférico, no maisntream, ou no underground - Sempre haverá aquele, ou aqueles, que se apropriam da ideologia vigente e serão "mais sofredores que o próprio sujeito do sofrimento" (pensemos na Idade Média e os fiéis que se automutilavam para serem mais próximos de Deus ao reproduzirem o sofrimento de Jesus), o que é brilhantemente mencionado por George Orwell, na obra "A Revolução dos Bichos": “Os animais são todos iguais, mas uns são mais iguais do que outros". Ou que Jean Baudrillard abordou em sua "Lógica da Diferenciação", na obra "O sistema dos Objetos", onde pessoas utilizam signos e códigos culturais para se diferenciarem no mosaico social. Isso nos leva a um dos tópicos de minha pesquisa em "A Era das Causas" - a lógica da busca por diferenciação por meio de status não mudou, o sistema continua o mesmo, o que mudou foi a estrutura de significação do que é status HOJE. Se há 30 anos ter status era ter um carro caro e bonito, diferenciando-se pelo consumo de bens de luxo, atualmente, ter status atualmente é não ter carro e usar transporte alternativo, pois status hoje é consumo moral, consciente, baseado em ideologias que defendem causas sociais e a inclusão de grupos excluídos. Assim, da mesma forma como há algumas décadas pessoas buscavam diferenciação sendo "mais que as outras ao consumir luxo", pessoas hoje buscam "ser mais que as outras ao consumir ideologias, causas e ser mais inclusivos e mais militantes da inclusão do que os próprios excluídos".

A lógica da vaidade e da diferenciação social é a mesma. A diferença é que no consumo moralmente orientado por causas, a necessidade de se fazer mais militante que o Outro, apontar dedos e dizer que o Outro diz que é militante, mas não é tão militante assim, pois não apoia tal ação, não participa de tal grupo, incorreu numa fala preconceituoso, racista, ou homofóbica, é a nova marcação social de status, em nada diferente dos cristãos que se automutilavam e faziam votos de pobreza, ou dos consumidores de luxo que eram mais "trendy" do que a própria elite que tinha acesso ao luxo de exceção e assim apontava dedo ao Outro pois ele era "cafona", antiquado, ou apenas pobre.

Tudo isso pra dizer, meus amigos, que, sem nenhuma tentativa de estar expondo "verdades" (que não existem em ciências sociais), apenas tecendo um relato sobre um encadeamento lógico observado ao longo de minha vivência como pesquisadora, acredito que a função dos cientistas sociais, nesse momento, é a função que exercemos como orientadores no campo científico, orientar, não é dizer o que se tem ou não que fazer, ou expor uma verdade incontestável, mas é trazer os olhos do orientando ao caminho do Oriente, que é onde nasce o Sol, onde nasce a luz, para que ele, a sociedade, tenham maior clareza ao observar os fenômenos que ocorrem na sociedade contemporânea, sem impor ideologias que, mesmo que como pesquisadores acreditemos que são corretas, não devem ser impostas por cientistas. Nosso papel é mostrar dados, pesquisas que refletem o momento presente e, nesse contexto, expor também os desvios que mapeamos ao observar sistematicamente a realidade.

É nosso papel expor as raízes e naturalização do preconceito, as formas veladas e explícitas da discriminação étnica, social, de gênero, mas também é nosso papel expor o quanto a apropriação que pessoas, grupos e empresas estão fazendo do novo capital de status social - a militância por causas - também vem sendo utilizada como uma ferramenta de diferenciação e exclusão social, de soberba, de manipulação e causando comportamentos ferinos onde indivíduos e grupos se posicionam como instituições sociais a demonizarem pessoas que são, muitas vezes, apenas ignorantes. Nosso papel é primeiro educar, levar a luz do conhecimento, mostrar como são engendradas as vilanias sociais do preconceito e da discriminação e todo educador de verdade sabe que o processo de educação leva tempo, pois existe a necessidade de desconstruir paradigmas que fazem parte de pessoas, grupos e empresas desde sempre. Apenas apontar dedos e cobrar comportamentos de quem não entende as estruturas da desigualdade, demonizando o Outro antes de fazê-lo entender os processos sociais, não é o papel do cientista.

Assim como a produção da tendência "gótica suave" esvazia o sentido do ser gótico, do movimento gótico e do lugar de fala dos membros desse grupo, a era das causas como código de diferencial de status, esvazia o sentido que cada causa social tem para aqueles que são excluídos e sujeitos dessas causas. Nesse contexto, proponho uma atitude reflexiva sobre o momento presente das causas para que um processo necessário de equanimidade e inclusão não se transforme em ferramenta de diferenciação social, de criação de "iguais mais iguais que os outros", pois se isso ocorrer, a Era das Causas será mais uma tendência a obsolescer e seus efeitos sociais serão superficiais e inócuos.

https://brasil.elpais.com/cultura/2020-07-08/chomsky-rushdie-steinem-e-outros-150-intelectuais-reivindicam-o-direito-de-discordar-nos-eua.html
Bibliografia
BRANDINI, Valéria. Rock alternativo, do underground ao mainstream: mercado fonográfico, produção e tendências do rock nos anos 90. 1998.Universidade de São Paulo, São Paulo, 1998.
BRANDINI, Valéria. Vestindo a rua: moda, cultura & metrópole. 2003.Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
BRANDINI, Valéria. A ERA DAS CAUSAS. O Propósito como Capital na Estética Publicitária. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2003.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo. Editora Reflexiva. 1979
ORWELL, George. A revolução dos Bichos. São Paulo. Editora globo. 1990