O jornalista
Pepe Escobar escreve sobre o cenário global depois da pandemia do coronavírus:
"Não é a crise do Covid-19 que levará a um outro mundo - mas a reação da
sociedade à crise."
Por Pepe
Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patrícia
Zimbres, para o 247
Entre a falta
de responsabilização das elites e a total fragmentação da sociedade civil, o
Covid-19, como um circuit breaker, está mostrando que o rei - o design
sistêmico - está nu.
Estamos sendo
sugados para dentro de uma dança macabra de múltiplos sistemas
complexos "colidindo uns com os outros", produzindo uma infinidade de
ciclos de realimentação, na sua maioria negativos.
O que já sabemos com certeza, como Shoshana Zuboff demonstrou em detalhes em seu The Age of Surveillance Capitalism (A Era do Capitalismo de Vigilância), é que "o capitalismo industrial seguiu sua própria lógica de choque e terror" para conquistar a natureza. Mas agora o capitalismo de vigilância "está de olho na natureza humana".
Em The Human Planet: How We Created the Anthropocene (O Planeta Humano: Como Criamos o Antropoceno), analisando o crescimento populacional explosivo, o aumento do consumo de energia e o tsunami de informações "movidos a ciclos de realimentação positivos de reinvestimento e lucro", Simon Lewis e Mark Maslin, do University College de Londres, sugerem que nosso atual modo de vida é a "menos provável" entre diversas opções possíveis. "Um colapso ou uma troca para um novo modo de vida é mais provável".
Com a distopia e a paranoia em massa parecendo ser a lei da (perplexa) terra, as análises de Michel Foucault sobre biopolítica nunca foram tão oportunas, agora que estados de todo o mundo assumem o biopoder - o controle sobre a vida e os corpos das pessoas.
David Harvey, mais uma vez, demonstra o quanto Marx foi profético, não apenas em suas análises do capitalismo industrial mas, também no Grundrisse: Fundações da Crítica da Economia Política – onde ele chegou a prever os mecanismos do capitalismo digital.
Marx, escreve
Harvey, "fala de como as novas tecnologias e o novo saber se incorporam à
máquina: eles deixam de residir no cérebro do trabalhador, e o trabalhador é
empurrado para a margem, tornando-se um mero apêndice da máquina, um mero
cuidador de máquinas. Toda a inteligência e todo o saber que antes pertenciam
aos trabalhadores e conferiam a eles um certo monopólio de poder frente ao
capital, agora desaparecem".
Assim, Harvey
acrescenta, "O capitalista, que antes precisava das habilidades do
trabalhador, agora se livra dessa limitação, e a habilidade é incorporada à
máquina. O conhecimento produzido pela ciência e pela tecnologia é canalizado
para a máquina, e a máquina se torna a 'alma' do dinamismo capitalista.
A vida na
'deflação psíquica'
Um efeito
imediato - de ordem econômica - da colisão de sistemas complexos é a Nova
Grande Depressão que se aproxima. Enquanto isso, muito poucos tentam entender
em profundidade o Planeta Confinamento e, principalmente, o Pós-Planeta
Confinamento. Entretanto, uns poucos conceitos já se destacam. Estado de
exceção. Necropolítica. Um novo brutalismo. E, como veremos, um novo paradigma
viral.
Vamos,
portanto, recapitular o que disseram algumas das melhores e mais brilhantes
cabeças da vanguarda do pensamento sobre o Covid-19. Um excelente mapa de
viagem é a Sopa de Wuhan, uma
coletânea independente publicada em língua espanhola, trazendo ensaios de,
entre outros, Giorgio Agamben, Slavoj Zizek, Judith Butler, David Harvey, o
sul-coreano Byung-Chul Han e o espanhol Paul Preciado.
Os dois últimos, juntamente com Agamben, foram mencionados em ensaios anteriores desta série sobre os estoicos, Heráclito, Confúcio, Buda e Lao-Tzu, e também sobre filosofia contemporânea, em A Cidade em Tempo de Peste.
Franco
Berardi, ícone do movimento estudantil de 1968 e agora professor de filosofia
em Bolonha, propõe o conceito de "deflação psíquica" para explicar a
dificílima situação por que estamos passando. Estamos vivendo em uma
"epidemia psíquica... gerada por um vírus, no momento em que a Terra
atingiu um estágio de extrema irritação e o corpo coletivo da sociedade sofre,
o que vem acontecendo já há bastante tempo, um estado de tensão intolerável: a
doença se manifesta nesse estágio, devastando as esferas sociais e psíquicas,
como uma reação de autodefesa do corpo planetário".
Então, como
propõe Berardi, um "vírus semiótico na psicosfera bloqueia o funcionamento
abstrato da economia ao subtrair dela corpos". Apenas um vírus seria
capaz de paralisar por completo a acumulação do capital: "O capitalismo é
axiomático, ele opera com base em uma premissa não-verificada (a necessidade de
crescimento ilimitado que torna possível a acumulação de capital).
Toda
concatenação lógica e econômica é coerente com esse axioma, e nada pode ser
testado fora desse axioma. Não há saída política que permita escapar do
capitalismo axiomático, não há possibilidade de destruir o sistema",
porque até mesmo a linguagem é refém desse axioma e não admite a possibilidade
de nada que seja "eficientemente extra sistêmico".
Então, o que
sobra? "A única saída é a morte, como aprendemos com Baudrillard". O
falecido grande mestre do simulacro já previa uma paralisação sistêmica nos pós-modernos
anos 80.
O filósofo
croata Srecko Horvat , por outro lado, traz
uma hipótese menos conceitual e mais realista sobre o futuro imediato: "O
medo da pandemia é mais perigoso que o próprio vírus. As imagens apocalípticas
da mídia de massa escondem um nexo profundo entre a extrema-direita e a
economia capitalista. Tal como um vírus que precisa de células vivas para se
reproduzir, o capitalismo irá se adaptar à biopolítica do século XXI.
Para o químico
e filósofo catalão Santiago Lopez Petit, o coronavírus pode ser visto como uma
declaração de guerra: "O neoliberalismo, desavergonhadamente, se fantasia
de estado de guerra. O capital está apavorado", mesmo que "a
incerteza e a insegurança invalidem a necessidade de um tal estado". No
entanto, pode haver possibilidades criativas quando a vida obscura e
paroxística, incalculável em sua ambivalência, escapa do algoritmo".
Nossa exceção
normalizada
Giorgio
Agamben provocou imensa controvérsia na Itália e por toda a Europa quando, em
fins de fevereiro, publicou uma coluna sobre a "invenção de uma
epidemia". Ele, mais tarde, teve que explicar o que queria dizer. Mas seu
principal insight permanece válido: o estado de exceção foi completamente
normalizado.
E fica ainda pior. "Um novo despotismo que, em termos dos controles onipresentes e da cessação de toda e qualquer atividade política, será pior que os totalitarismos que conhecemos até agora".
E fica ainda pior. "Um novo despotismo que, em termos dos controles onipresentes e da cessação de toda e qualquer atividade política, será pior que os totalitarismos que conhecemos até agora".
Agamben
insiste em suas análises da ciência como sendo a religião de nosso tempo:
"A analogia com a religião é tomada literalmente; os teólogos declararam
não serem capazes de definir o que Deus é, mas em Seu nome ditaram regras de
conduta aos homens e não hesitaram em queimar heréticos. Os virologistas
admitem não saber exatamente o que um vírus é, mas em seu nome fingem decidir
como os seres humanos irão viver".
O filósofo e
historiador camaronense Achille Mbembe, autor de dois livros
indispensáveis, Necropolítica e Brutalismo,
identificou o paradoxo de nosso tempo: "O abismo
entre a crescente globalização dos problemas da existência humana e o recuo dos
países para dentro de suas velhas e antiquadas fronteiras".
Mbembe
investiga o fim de um certo mundo, "dominado por gigantescos dispositivos
de cálculo", um mundo móvel no sentido mais polimórfico, viral e quase
cinematográfico", referindo-se à ubiquidade das telas (novamente o
Baudrillard da década de 80) e à lexicografia, "que revela não apenas uma
mudança de linguagem mas o fim do mundo".
Aqui temos
Mbembe dialogando com Berardi – mas Mbembe leva a questão muito mais longe:
"Esse fim de mundo, esse triunfo definitivo do gesto e dos órgãos
artificiais sobre a palavra, o fato de que a história da palavra chega ao fim
frente a nossos olhos, esse para mim é o desenvolvimento histórico por
excelência, o que o Covid-19 revela.
As
consequências políticas são inevitavelmente terríveis: "Parte da política
de poder das grandes nações não residiria no sonho de uma organização
automatizada do mundo graças à fabricação de um Novo Homem que seria o produto
de montagem fisiológica, montagem sintética e eletrônica e montagem biológica?
Chamemos a isso de tecno-libertarianismo".
Isso não é
exclusivo do Ocidente: "A China está no mesmo caminho,
vertiginosamente".
Esse novo
paradigma de uma pletora de sistemas automatizados e decisões algorítmicas
"onde a história e a palavra não existem mais, choca-se frontalmente com a
realidade de corpos de carne e osso, micróbios, bactérias e líquidos de todos
os tipos, o sangue inclusive".
O Ocidente,
afirma Mbembe, há muito optou por "imprimir um curso dionisíaco a sua
história, levando consigo o resto do mundo, mesmo que este não entenda. O
Ocidente não conhece mais a diferença entre começo e fim. A China está no mesmo
caminho. O mundo foi mergulhado em um vasto processo de dilaceramento, onde
ninguém é capaz de prever as consequências".
Isso, acrescenta ele, corresponde ao nosso novo
paradigma viral.
Sua análise certamente se encaixa com a de Agamben:
"Tenho a impressão de que o brutalismo vai se intensificar sob o ímpeto
tecno-libertarianista, seja na China ou sob as roupagens da democracia liberal.
Da mesma forma que o 11 de setembro abriu caminho para um estado de exceção
generalizado e para sua normalização, a luta contra o Covid-19 será usada como
pretexto para aproximar ainda mais a política do domínio da segurança".
"Mas desta vez", acrescenta Mbembe,
"será uma segurança quase biológica, comportando novas formas de
segregação entre os "corpos imunes" e os "corpos virais".
O viralismo se transformará no novo palco para o fracionamento das
populações, agora identificadas como espécies distintas".
Parece mesmo
um neo-medievalismo, uma reencenação digital do fabuloso afresco O Triunfo da Morte, em Palermo.
Poetas, não
políticos
É útil
contrastar toda essa ruína sombria com a perspectiva de um geógrafo. Christian
Grataloup, um excelente geo-historiador, insiste em um destino
comum para a humanidade (aqui ele ecoa Xi Jinping e o conceito chinês de
"comunidade de destinos compartilhados": "Há um sentimento de
identidade sem precedentes. O mundo não é simplesmente um sistema espacial
econômico e demográfico, ele se transforma em um território. Desde as Grandes
Descobertas tudo o que era global vinha encolhendo, resolvendo uma série de
contradições. Agora, temos que aprender a reconstruí-lo, dar-lhe mais
consistência, uma vez que corremos o risco de deixá-lo apodrecer com as tensões
internacionais".
Não é a crise
do Covid-19 que levará a um outro mundo - mas a reação da sociedade à crise.
Não haverá uma noite mágica, com shows dos pop stars da "comunidade
internacional", quando a vitória será anunciada ao antigo Planeta
Confinamento.
O que é
realmente importante é o longo e árduo combate político que nos levará ao
próximo nível. Os conservadores extremos e os tecno-libertarianistas já tomaram
a iniciativa - da recusa à tributação sobre grandes fortunas para socorrer as
vítimas da Nova Grande Depressão até a obsessão com a dívida, que impede novos
e necessários gastos públicos.
Nesse quadro,
proponho ir além da biopolítica de Foucault. Gilles Deleuze pode ser o
conceituador de uma nova e radical liberdade. Aqui temos uma deliciosa série britânica que pode ser
curtida como se fosse um enfoque sério à la Monty Python a Deleuze.
Foucault foi
insuperável na descrição de como o significado e os quadros de verdades sociais
mudam ao longo do tempo, constituindo em novas realidades condicionadas por
poder e conhecimento.
Deleuze, por
outro lado, concentrou-se em como as coisas mudam. Movimento. Nada é estável.
Nada é eterno. Ele conceituou o fluxo - de forma muito heracliteana.
As novas
espécies (até mesmo o novo Ubermensch criado pela Inteligência Artificial)
evoluem em relação a seu ambiente. É usando Deleuze que podemos investigar como
os espaços entre as coisas criam possibilidades para O Choque do Novo.
Mais que
nunca, sabemos agora que tudo é conectado (obrigado, Spinoza). O mundo
(digital) é complicado, interconectado e misterioso a ponto de abrir um número
infinito de possibilidades.
Já nos anos
1970, Deleuze dizia que o novo mapa - a potencialidade inata da novidade -
deveria ser chamado de "o virtual". Quanto mais a matéria viva se
complexifica, mais ela transforma esse virtual em ação espontânea e movimentos
imprevistos.
Deleuze
colocou um dilema que agora nos confronta em termos ainda mais radicais. A
escolha entre "o poeta, que fala em nome do poder criativo, capaz de
subverter todas as ordens e representações para afirmar a diferença no estado
de revolução permanente que caracteriza o eterno retorno; e o político, que se
preocupa, acima de tudo, em negar aquilo que 'difere', a fim de conservar ou
prolongar a ordem histórica estabelecida, ou de estabelecer uma ordem histórica
que já faz surgir no mundo as formas de sua representação".
Os tempos nos
chamam a agir como poetas, e não como políticos.
A metodologia
talvez possa ser a exposta por Deleuze e Guattari no seu formidável Mil Platôs – que traz o significativo subtítulo
de Capitalismo e Esquizofrenia, onde o movimento é não-linear.
Estamos falando de filosofia, psicologia, política, conectadas por ideias que
correm em diferentes velocidades, em um incessante movimento contínuo que
mistura linhas de articulação, em diferentes estratos, dirigidas a linhas de
voo, movimento de desterritorialização.
O conceito de
"linhas de voo" é essencial para essa nova paisagem virtual, porque o
virtual é formado por linhas de voo entre diferenças, em um processo contínuo
de mudança e liberdade.
Todo esse
frenesi, contudo, tem que ter raízes - como nas raízes de uma árvore (a do
conhecimento). E isso nos leva à metáfora central de Deleuze, o rizoma, que é
não apenas uma raiz, mas uma massa de raízes brotando em novas direções.
Deleuze
mostrou como o rizoma conecta assembleias de códigos linguísticos, relações de
poder, as artes - e, o mais importante, a biologia. O hyperlink é um rizoma,
que antes representava um símbolo da deliciosa falta de ordem da Internet, até
ser aviltado, quando o Google começou a impor seus algoritmos. Os links, por
definição, deveriam sempre nos levar a destinações inesperadas.
Os rizomas são
as antíteses dos traços-padrão da "democracia" liberal ocidental – o
parlamento e o senado. As trilhas, ao contrário, são rizomas - como na trilha
Ho Chi Minh. Não há plano ordenador. Múltiplas entradas e múltiplas
possibilidades. Sem começo nem fim. Como Deleuze o descreveu, "O rizoma
opera por variação, expansão, conquista, captura, ramificações".
Isso pode
servir de projeto para uma nova forma de participação política que se seguiria
à queda do design sistêmico. Esse projeto incorpora uma metodologia, uma
ideologia, uma epistemologia, sendo também uma metáfora. O rizoma é
inerentemente progressivo, enquanto as tradições são estáticas. Como metáfora,
o rizoma pode substituir nossa concepção de história como linear e singular,
oferecendo diferentes histórias que se movem em diferentes velocidades. A TINA,
ou "não há alternativa“ (There Is No Alternative) está morta: há
alternativas múltiplas.
E isso nos
traz de volta a David Harvey inspirado em Marx. Para embarcar em um novo
caminho emancipador, temos que antes nos emancipar a nós mesmos e ver que um
novo imaginário é possível, paralelamente a uma nova realidade de sistemas
complexos.
Então, vamos
relaxar - e desterritorializar. Se aprendermos a fazer isso, o advento do Novo
Tecno-Homem vivendo em servidão voluntária e controlado remotamente por um
estado de segurança todo-poderoso que tudo vê deixará de ser fatal.
Deleuze: um
grande escritor é sempre como que um estrangeiro na língua por meio da qual ele
se expressa, mesmo que ela seja sua língua materna. Ele não mistura uma outra
língua com a sua própria língua. Ele constrói uma língua estrangeira não
pré-existente dentro de sua própria língua. "Ele faz a própria língua
gritar, gaguejar, murmurar. Um pensamento deveria brotar rizomaticamente - em
muitas direções.
Estou
resfriado. O vírus é um rizoma.
Lembra-se de
quando Trump disse que este era um "vírus estrangeiro"?
Todos os vírus
são estrangeiros – por definição.
Mas Trump, é
claro, nunca leu o Almoço Nu do Grande Mestre William
Burroughs.