sábado, 14 de agosto de 2021

Nosso Fahrenheit 451

 Roberto Amaral

 

Escrita em 1953, no auge do macarthismo (1950-1957), protegida pelo disfarce da futurologia científica, a obra-prima de Ray Bradbury nos falava então e nos fala agora de um presente real, este no qual nos foi dado viver, dominado pela crise letal do que chamamos de civilização ocidental. Como Admirável mundo novo, e A Revolução dos bichos e 1984, os clássicos de Aldous Huxley e Georges Orwell, Fahrenheit 451 é ensaio que desconsidera os limites temporais para nos convidar a uma reflexão sobre a realidade política que governa nossas vidas. Trata-se de revisão quase sempre incômoda, porque a crise que se esbate sobre o futuro da civilização é a nossa tragédia de cada dia, e a tomada de consciência da realidade tem a força de romper com a alienação, transformando em desassossego a paz de espírito com que sonham os niilistas.

 

A crise da dita civilização ocidental – moral, ética, política, filosófica –, escamoteada pelos avanços da ciência e da tecnologia, parece renovar-se em ciclos de autoritarismo: nazismo, fascismo, salazarismo, franquismo, stalinismo, macarthismo. Os primeiros decênios do terceiro milênio prometem trazer de volta os fantasmas do século passado. Esta é a explicação plausível para, após tanta experiência histórica, vivermos a emergência de lideranças da estatura liliputiana de Donald Trump, Boris Johnson, Viktor Orban e do capitão que ocupa o terceiro andar do palácio do planalto, guardado pelas costas largas de seus generais de estimação.

 

Quem poderia supor que após as lições ensejadas pelo ciclo da ditadura militar viveríamos a insanidade do bolsonarismo?

 

Os bombeiros de Bradbury, observa Manuel da Costa Pinto no prefácio à tradução brasileira (Biblioteca Azul, 2012), “são agentes da higiene pública que queimam livros para evitar que suas quimeras perturbem o sono dos cidadãos honestos, cujas inquietações são cotidianamente sufocadas por doses maciças de comprimidos narcotizantes e pela onipresença da televisão”, e, acrescento, por doses maciças de doutrinamento evangélico, fake news.  a manipulação robótica das redes sociais e o unilateralismo ideológico dos grandes meios de comunicação. A fogueira de livros, uma presença em toda a história da humanidade, é simbólica da luta entre o saber que inquieta e a ignorância que abre caminho para a conformação do dominado.

 

A direita de todos os tempos e de todas as latitudes – como a assembleia que condenou Sócrates, os tribunais da santa inquisição, as depurações de Stálin e os julgamentos do macarthismo – detesta o saber, porque ele é a chave da liberdade; detesta a inteligência e a liberdade de pensamento, detesta os intelectuais, pois eles têm o vício de duvidar.  Nos idos de 1933, os nazistas alemães, como os fascistas italianos, queimavam livros em praça pública e aprisionavam escritores, a Espanha franquista matava poetas, o salazarismo os prendia ou exilava. O obscurantismo reinava nos dois lados do Atlântico. No Estado Novo (1937-1945), o DIP censurava a imprensa e muitos intelectuais e cientistas, como Nisi da Silveira, e escritores como Graciliano Ramos conheceram o cárcere. A ditadura instalada em 1º de abril de 1964, demitiu professores e cientistas, prendeu escritores e exilou nossos sábios, e decretou a censura geral e irrestrita à imprensa.  O general Ernesto Geisel impôs a censura prévia aos livros. Os nazistas atearam fogo, entre outros muitos, em livros de Marx, Kafka, Thomas Mann, Einstein e Freud. No governo do capitão, o pré-neandertal que assumiu a presidência da Fundação Palmares, para destruí-la, expele como indesejável a obra fotográfica de Sebastião Salgado e bane da biblioteca da instituição livros como Almas mortas, de Nikolai Gogol, Dicionário do folclore brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo e obras de autores como Marx, Engels, Weber, Caio Prado Jr., Eric Hobsbawn e Celso Furtado.

 

O impacto com que, assustado e impotente, acompanhei pela televisão o festival macabro das labaredas consumindo a memória nacional depositada na Cinemateca Brasileira, levou-me às primeiras páginas de Fahrenheit 451:

 

“Era um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as coisas serem enegrecidas e alteradas. Empunhando o bocal de bronze, a grande víbora cuspindo seu querosene peçonhento sobre o mundo, o sangue latejava em sua cabeça e suas mãos eram as de um prodigioso maestro regendo todas as sinfonias de chamas e labaredas para derrubar os farrapos e as ruínas carbonizadas da história.  [...] A passos largos ele avançou em meio a um enxame de vaga-lumes. Como na velha brincadeira, o que ele mais desejava era levar à fornalha um marshmallow na ponta de uma vareta, enquanto os livros morriam num estertor de pombos na varanda e no gramado da casa. Enquanto os livros se consumiam em redemoinhos de fagulhas e se dissolviam no vento escurecido da fuligem”.

 

A alegoria de Bradbury é simbólica; e simbólicos de nossos tempos devem ser considerados tanto o incêndio premeditado da Cinemateca (pois fruto de planejado corte de verbas) quanto a destruição em chamas do Museu Nacional, no Rio de Janeiro, propositalmente desamparado de recursos de conservação.

 

O ainda presidente da república, parvo e pulha, porém, não se dá por satisfeito em destruir o passado, incinerando nossa memória. Tenta apagar o futuro. Destrói o ministério da cultura, reduzido a um apêndice do ministério do turismo, e entrega o ministério da educação a uma tríade de apedeutos; move tenaz perseguição aos institutos de ensino e pesquisa, como o INPE, reduz os recursos para a área da educação e tenta inviabilizar as universidades federais com a asfixia orçamentária. Os recursos dos principais fundos destinados ao apoio à pesquisa científica e tecnológica caíram, de R$ 13.971.751124 em 2015, para 4.401.561.381 em 2020 (dados do IPEA). No mesmo ano de 2015, os recursos destinados ao CNPq somavam 2,6 bilhões, reduzidos a  1,6 bilhão em 2019 (Fonte: SIOP/Ministério do Planejamento). É o garrote financeiro que visa a estrangular o ensino e a pesquisa, ao inviabilizar a formação de mestres e doutores.

 

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq, criado em 1951 com o objetivo de promover o desenvolvimento da investigação cientifica e tecnológica, vive a pior crise de sua história de 70 anos de bons serviços prestados ao país. Administra a maior e mais importante plataforma científica do Brasil, reunindo toda a produção nacional, como projetos, pesquisas e trabalhos desenvolvidos por pesquisadores e universidades brasileiras, e ainda é responsável pelas bolsas a cientistas brasileiros.  Toda a sua base de dados está ameaçada porque, por falta de manutenção, derivada da rapina de recursos, sucateamento e obsolescência de equipamentos, o sistema de informática da instituição saiu do ar.

 

As bolsas estão congeladas desde 2012 em número e valor (R$ 4.100, no caso de pós-doutorado), o que estimula o êxodo de nossos melhores quadros: pobres, estamos formando pesquisadores para os EUA e a Europa. Daqui a pouco também para a China.

 

Na próxima sexta-feira (6/8) reunir-se-á o Conselho Diretor do Fundo Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), quando apreciará a estapafúrdia proposta do governo que visa a carrear R$ 800 milhões a quatro ou cinco organizações sociais, cifra que corresponde ao dobro do que é destinado a mais de 200 universidades brasileiras. Este é o outro lado da política em vigor: malversação dos recursos públicos.

 

O quadro desolador da ciência e da tecnologia se soma à política de terra arrasada levada à cultura e à educação; não se trata, porém, pura e simplesmente, de uma política de descaso ou omissão: ao contrário, o projeto do governo é determinado, é consciente e obedece a um planejamento cujo objetivo é destruir quaisquer veleidades nacionais de soberania. A questão, é, pois, fundamentalmente política, e o arrocho financeiro não é operação autônoma. Deriva do projeto maior: nossa destinação ao papel de grande província do Império. Política, a ameaça de sucateamento de nossos laboratórios e esvaziamento do ensino e da pesquisa só será enfrentada se conseguirmos alterar a atual correlação de forças. Não há conciliação possível; recusar o combate é fortalecer o status quo.  O desafio diz que está mais do que na hora de as lideranças universitárias, por exemplo, procurarem a articulação com a sociedade, denunciando o projeto e explicando de forma clara os prejuízos que advirão, para o país, se a política do desmonte e alienação não for detida.