Mais um texto excelente do Pepe Escobar.
Me preocupa seu quarto parágrafo, que soa como crítica ao isolamento. Não sou cientista e muito menos, fora a minha que é precária, sem qualquer ligação com a Saúde. Mas acredito que sem o isolamento social a coisa poderia ser pior. O problema, iniciado no parágrafo, está no brilho dos olhos daqueles que comandam os Estados (as corporações) em identificar o isolamento como uma ferramenta de manutenção do sistema, substituindo o capitalismo financeiro, pelo capitalismo da segurança, como ferramenta de sobrevivência do sistema a sua enésima crise. O que fecho em gênero, grau e número com a "denuncia" colocada no texto.
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O neo-feudalismo
digital já estava em vigor mesmo antes do Covid-19. Pode-se chamar a isso de
turbo-neoliberalismo de vigilância. Onde não há nenhuma "liberdade"
intrínseca e tudo é alcançado por meio da servidão voluntária.
17 de maio de
2020, 22:08 h
Tradução de
Patricia Zimbres, para o 247
O mestre pensador
italiano Giorgio Agamben vem atuando na controversa linha de frente da
tentativa de identificar o novo paradigma que pode estar surgindo do desastre
da atual pandemia.
Ele, recentemente,
chamou atenção para um extraordinário livro
publicado há sete anos, que já então examinava a questão.
Em Tempetes Microbiennes (Tempestades
Microbianas), Patrick Zylberman, professor de História da Saúde em Paris,
detalhou o complexo processo pelo qual a segurança sanitária, até então
relegada às margens das estratégias políticas, começou a se esgueirar para o
centro do palco em inícios do século XXI. A Organização Mundial da Saúde (OMS)
já havia criado um precedente em 2005, quando advertiu sobre a possibilidade de
a nova gripe suína vir a provocar "50 milhões de mortes" em todo o
mundo. No pior cenário projetado para uma pandemia, Zylberman previu que o
"terror sanitário" seria usado como um instrumento de governança.
O pior cenário
possível está sendo reformulado neste exato momento. A ideia de um
confinamento generalizado e obrigatório não é corroborada por nenhuma
justificativa médica ou pesquisa epidemiológica no caso de combate a uma
pandemia. Mesmo assim, essa medida foi sacramentada como a política hegemônica
- trazendo o inevitável corolário de incontáveis multidões mergulhadas no
desemprego. Tudo isso tomando como base modelos matemáticos fracassados e
delirantes do tipo Imperial College, impostos por poderosos grupos de pressão
que vão desde o Fórum Econômico Mundial (FEM) até a Conferência de Segurança de
Munique.
Entra em cena o
Dr. Richard Hatchett, membro do Conselho de Segurança Nacional durante o
primeiro governo Bush Jr. que, já em 2001, recomendava o confinamento
obrigatório de toda a população. Hatchett agora dirige a Coalizão para
Inovações na Prontidão para Epidemias (CEPI, em inglês), uma poderosíssima
entidade responsável pela coordenação dos investimentos globais em vacinas, e
muito próxima à Grande Farma. A CEPI, por acaso, é a cria cerebral da conjunção
FEM-Fundação Bill e Melinda Gates.
É de importância
crucial saber que Hatchett vê a luta contra o Covid-19 como uma "guerra". A terminologia - adotada por todos, do
Presidente Trump ao Presidente Macron - entrega o jogo. Ela remete a - o que
mais? - a guerra global contra o terror, tal como solenemente anunciada em setembro de 2001 pelo
próprio Donald “Desconhecidos Conhecidos" Rumsfeld.
Rumsfeld, o que é
da máxima importância, foi presidente da gigante da
biotecnologia, a Gilead. Depois do 11 de setembro, no Pentágono, ele fez todo o
possível para borrar a distinção entre civis e militares no caso da guerra
global ao terror. Foi então que o "confinamento generalizado
obrigatório" foi conceituado, tendo Hatchett como um dos principais
autores.
Esse conceito,
embora criado pela Grande Farma militarizada, não tinha, naquela época, nada a
ver com saúde pública. O importante era a militarização da sociedade americana,
a ser adotada em resposta ao bioterror - naquela época automaticamente
atribuído a uma al-Qaeda esquálida e pobre em tecnologia.
A versão atual
desse projeto - estamos em "guerra" e todos os civis devem ficar em
casa - toma a forma daquilo que Alexander Dugin definiu como uma ditadura
médico-militar.
Hatchett sem
dúvida alguma faz parte desse grupo, juntamente com o ubíquo Anthony Fauci,
diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas (NIAID, em
inglês), muito próximo à OMS, ao FEM, à Fundação Bill e Melinda Gates e a
Robert Redfield, diretor da divisão dos Estados Unidos do Centro para
Controle e Prevenção de Doenças (CDC).
Entre outros
aplicativos a serem incorporados ao projeto está a vigilância digital total,
vendida como monitoramento da saúde. Já implementada na atual narrativa, uma
demonização implacável acusa a China de ser "culpada" por tudo que se
relacione à Covid-19, tática essa herdada de um outro e muito bem testado jogo
de guerra, o esquema Red Dawn.
Mostre-me sua
fragilidade
Agamben conseguiu
chegar à quadratura do círculo: não é que os cidadãos de todo o Ocidente tenha
o direito à segurança sanitária. Agora eles são judicialmente forçados (itálicos
meus) a serem saudáveis. Isso, em poucas palavras, é o que biossegurança
significa.
Não é de admirar,
portanto, que a biossegurança seja um paradigma de governança ultra eficiente.
Ela foi enfiada goela abaixo nos cidadãos, sem o mínimo debate político. E seu
enforçamento, escreve Agamben, mata "qualquer atividade política e
qualquer relação social como exemplo máximo de participação cívica".
Já estamos
passando pela experiência do distanciamento social como modelo político - com
uma matriz digital que toma o lugar da interação humana que, por definição, de
agora em diante será vista como fundamentalmente suspeita e politicamente
"contagiosa".
Agamben se
horroriza com esse "conceito de destino da sociedade humana, que em muitos
aspectos parece ter tirado de religiões decadentes a ideia apocalíptica de fim
do mundo". A economia já havia substituído a política - como em tudo o que
é sujeito aos ditames do capitalismo financeiro. Agora, a economia está sendo
absorvida pelo "novo paradigma da biossegurança, ao qual todos os demais
imperativos têm que ser sacrificados".
Como lutar contra
isso? Armas conceituais existem, tais como os cursos sobre biopolítica dados
por Michel Foucault no College de France entre 1972 e 1984. Eles agora podem
ser consultados por meio de uma plataforma descentralizada criada por um
coletivo que se descreve com o delicioso nome de "o lagostim" , que
"avança de lado", um conceito que faz justiça ao grande mestre rizomático Gilles Deleuze.
O conceito
de Antifrágil, de Nassim Taleb, é também
bastante útil. Como ele explica, o "Antifrágil é o antídoto contra os
Cisnes Negros". Bem, o Covid-19 foi uma espécie de Cisne Negro: afinal, as
elites decisórias sabiam que algo dessa natureza fatalmente aconteceria –
embora os políticos de baixo escalão, principalmente os ocidentais, tenham sido
pegos totalmente de surpresa.
O Antifrágil
postula que, devido ao medo (muito em evidência no atual momento) ou a uma
"sede de ordem" (natural em qualquer poder político), "alguns
sistemas humanos, ao perturbar a lógica invisível ou não tão visível das
coisas, tendem a se expor a danos causados pelos Cisnes Negros, e quase nunca
extraem qualquer benefício. Consegue-se uma pseudo ordem quando se busca a
ordem; só se consegue alguma medida de ordem e controle quando se aceita o
aleatório".
A conclusão é que
"no mundo do cisne negro, a otimização não é possível. O melhor que se
pode alcançar é uma redução da fragilidade e uma maior robustez".
Não há, até o
momento, razões para crer que uma "redução da fragilidade" no sistema
mundial dos dias de hoje vá levar necessariamente a uma "maior
robustez". O sistema nunca se mostrou tão frágil. O que temos é uma
abundância de indicações de que o colapso do sistema vem sendo remodelado, em
uma velocidade vertiginosa, como um neo-feudalismo digital.
Perdidos em uma
quarentena biopolítica
Byung-Chul Han, o
filósofo sul-coreano que leciona em Berlim, tentou formular a questão. O problema
é que ele é demasiadamente refém de uma visão idealizada do liberalismo
ocidental.
Byung-Chul Han
está certo quando observa que a Ásia lutou contra o Covid-19 com rigor e
disciplina inconcebíveis para o Ocidente - algo que acompanhei de perto. Mas
ele então evoca o sistema de crédito social chinês para desferir um ataque
contra a sociedade de disciplina digital chinesa. Não há dúvida de que o
sistema cria as condições para a vigilância biopolítica. Mas é tudo uma questão
de nuances.
O sistema de
crédito social é como a fórmula "socialismo com características
chinesas": um híbrido que só funciona em relação às complexas
especificidades da China.
O labirinto de
câmeras de reconhecimento facial; a ausência de restrições sobre os dados
trocados entre os provedores de internet e o poder central; o código QR que diz
se você é "vermelho" ou "verde" em termos de infecção;
todos esses instrumentos foram aplicados com sucesso na China em benefício da
saúde pública.
Byung-Chul Han é
forçado a admitir que isso não acontece apenas na China. A Coreia do Sul - uma
democracia ao estilo ocidental - vem pensando na possibilidade de exigir que as
pessoas em quarentena usem uma pulseira digital. Ao falarmos dos diferentes
modelos asiáticos empregados na luta contra o Covid-19, a nuance é a norma.
O espírito
coletivista e a disciplina que vigoram em toda a Ásia - em especial nas
sociedades de influência confucionista - funcionam independentemente do sistema
político. Pelo menos, Byung-Chul Han admite que "todas essas
particularidades asiáticas são vantagens sistêmicas para a contenção da
epidemia".
Não se trata de
ver a sociedade disciplinar asiática como modelo para o Ocidente. Nós já
vivemos em um Panóptico digital global (onde está Foucault quando precisamos
tanto dele?) A vigilância - e a censura - das redes sociais empregadas pelos
gigantes do Vale do Silício já foi internalizada. Todos os dados dos cidadãos
são traficados e instantaneamente marquetizados visando a lucros privados.
Então, sim: o neo-feudalismo digital já estava em vigor mesmo antes do
Covid-19.
Pode-se chamar a
isso de turbo-neoliberalismo de vigilância. Onde não há nenhuma
"liberdade" intrínseca e tudo é alcançado por meio da servidão
voluntária.
A vigilância
biopolítica é apenas mais uma camada, a última fronteira, porque agora, como
Foucault nos ensinou, esse paradigma controla nossos próprios corpos. Há muito
o "liberalismo" foi reduzido a um bicho morto na beira da estrada. A
questão não é a China servir ou não de modelo ao Ocidente. A questão é que talvez
tenhamos sido jogados em uma interminável quarentena biopolítica sem nem ao
menos perceber.