Em 1985, Jürgen Habermas publicou
na Alemanha um livro intitulado A nova
obscuridade – pequenos artigos políticos. Dentro do
projeto de enfrentamento político e teórico das ameaças à
democracia, o autor procurou refletir sobre as tensões e os
problemas de um período marcado por uma crise do Estado social, permanências de
um passado autoritário, políticas de rearmamento e repressões policiais a
manifestações e protestos públicos. Todos esses sintomas do que Habermas chamou
de “nova obscuridade” estão presentes e potencializados no Brasil de hoje.
Aqui o quadro é bem mais grave. Nunca chegamos a
construir um verdadeiro Estado de Bem-Estar Social e, hoje, vivemos um
momento de profunda regressão social, política e ética. O sistema de
proteção dos direitos individuais e sociais foi extremamente fragilizado a
partir da crença de que não podem existir limites intransponíveis ao lucro de
uns poucos e à acumulação do capital pelos detentores do poder econômico.
Instalou-se um Estado conservador e voltado à realização dos desejos dos super-ricos.
Os direitos e garantias fundamentais passaram a ser
tratados como objetos negociáveis e, portanto, descartáveis. O poder político
voltou a se identificar sem pudor com o poder econômico, desaparecendo as
mediações que caracterizavam o Estado moderno. Os valores democráticos perderam
importância ao mesmo tempo em que o egoísmo foi elevado à virtude.
A aliança
entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo, responsável pela nova
obscuridade, faz com que alguns analistas passem a identificar uma espécie de
“revolução conservadora” em curso. Essa aliança pretende integrar a partir da
racionalidade neoliberal, que faz com que tudo e todos sejam tradados como
objetos negociáveis, o projeto de um mercado sem limites e o controle social
através da moralização e da repressão estatal da população. No Brasil, essa
aliança produziu, por exemplo, o impeachment
da presidenta Dilma Rousseff.
Nessa tentativa de síntese entre os interesses do
mercado e a necessidade de compensar os efeitos socialmente destrutivos do
neoliberalismo com promessas de ordem, tenta-se criar um imaginário no
qual seja compatível a expansão capitalista das grandes corporações econômicas
e a priorização do capital financeiro (capital improdutivo) com uma sociedade
estável e segura, de pequenos proprietários independentes e responsáveis pelos
seus bens, em uma espécie de retrotopia (uma mistificação tola de um passado
seletivamente reconstruído). Para tanto, o “mercado” é apresentado como um modo
de existência fundamental, como uma realidade natural e inescapável, enquanto
os direitos e garantias fundamentais, os valores democráticos e o projeto de
liberdade, igualdade e fraternidade passam a ser vistos como óbices
transponíveis tanto à realização dos fins do mercado quanto à eficácia
repressiva do Estado.
A nova obscuridade é, em resumo, a antítese da
democracia.
A contribuição da direita e da esquerda à nova
obscuridade
A racionalidade neoliberal está na base do que chamei
de Estado Pós-Democrático, forma jurídica em que desaparecem os
limites rígidos ao exercício do poder econômico. Com o empobrecimento subjetivo
e a mutação do simbólico produzidos pela razão neoliberal, os valores
democráticos (como, por exemplo, a “liberdade” e a “verdade”) passaram a ser
desconsiderados. Basta pensar na aceitação, em parcela da população, de
linchamentos, prisões ilegais ou notícias falsas (fake news) que passam a produzir efeitos de verdade.
Correlato ao enfraquecimento do projeto da
modernidade, deu-se a adesão a uma lógica pautada por meios linguisticamente
empobrecidos (“dinheiro” e “poder”), mas adequados ao projeto de Estado
desejado pelos grupos, partidos e movimentos de “direita”.
Não se pode esquecer que o neoliberalismo é um modo
de ver e atuar no mundo que se mostra
adequado a qualquer ideologia conservadora e tradicional. O projeto
neoliberal é apresentado e vendido como uma política de inovação, de
modernização, quando não de ruptura com práticas antigas. A propaganda
neoliberal, de fórmulas mágicas e revolucionárias, torna-se no imaginário da
população a nova referência de transformação e progresso. O neoliberalismo,
porém, propõe mudanças e transformação com a finalidade de restaurar uma
“situação original” e mais “pura”, onde o capital possa circular e ser
acumulado sem limites.
Os movimentos neoconservadores, que sustentam as
teses que levam à nova obscuridade, aparecem como fundamentais ao projeto
neoliberal porque se torna necessário “compensar” os efeitos perversos (e
desestruturantes) do neoliberalismo através de uma retórica excludente,
moralista e aporofóbica, bem como de práticas autoritárias de controle da
população indesejada.
Diante dessa tendência da “direita” à nova
obscuridade e, em consequência, à destruição dos valores democráticos,
poderíamos pensar que as forças progressistas (partidos e movimentos de “esquerda”)
estariam unidos em defesa do que restou da democracia no Brasil. Mas, isso
ainda não se deu.
Com uma retórica sectária e moralista (nesse
sentido, muito próxima da encontrada nos adversários da direita), parcela dos
partidos e movimentos de esquerda preferiram reafirmar narcisicamente as
pequenas diferenças e os projetos pessoais ou partidários de poder, em vez de
unir forças para atuar concretamente em defesa da democracia. Mesmo diante do
crescimento do pensamento autoritário e das ameaças concretas aos direitos
fundamentais, esses coletivos de “esquerda” preferiram o isolamento e apostaram
na fragmentação das forças progressistas, na crença de que assim cresceriam de
importância no jogo político.
Ao se fecharem para o diálogo com outros partidos
do mesmo campo, não admitindo sequer receber apoio de outras forças políticas
de esquerda (nesse particular, o caso do PSOL fluminense é exemplar), esses
partidos e movimentos ajudam na consolidação da nova obscuridade. Ao
reafirmarem diferenças, resgatarem ressentimentos e repetirem o discurso do
“monopólio da pureza” (que também estava presente na infância do Partido dos
Trabalhadores), esses grupos aproximam-se mais das experiências totalitárias
(desnecessário lembrar dos grupos de extrema-direita que pretendiam purificar a
sociedade ao mesmo tempo em que utilizavam o significante “corrupção” para
destruir os inimigos políticos e a democracia) do que de um projeto libertador.
Os recentes aplausos de lideranças dessa esquerda moralista e sectária a posturas
autoritárias, contrárias à legalidade democrática, e à neutralização do direito
– e do sistema de garantia corporificado no rol de direitos e garantias
fundamentais – pela moral são muito significativos e preocupantes.
Em busca de um comum democrático
No campo da “direita”, os diferentes grupos de
poder (os partidos políticos, os agentes conservadores entranhados nos poderes
do Estado, as grandes corporações econômicas, dentre outros) que, unidos
conseguiram a queda do Governo Dilma, apresentam fortes contradições, em
especial porque cada um desses grupos de poder não deixou de conspirar contra
os demais em favor de seus próprios interesses, pretendendo crescer sem ceder
espaço, poder ou status.
A “direita”, a partir de uma racionalidade
comunicativa empobrecida que gira em torno dos significantes “dinheiro” e
“poder”, reúne partes tão diferentes que não conseguem apresentar uma estrutura
estável, um projeto político coerente ou parir um candidato competitivo para as
próximas eleições presidenciais (o que faz aumentar as apostas de que as
eleições podem não ocorrer).
A nova obscuridade brasileira (que se apresenta na
aproximação entre o poder político e o poder econômico, no desaparecimento dos
limites ao exercício do poder, no crescimento do pensamento autoritário, nas
tentativas de controle ideológico de professores e funcionários públicos, no
desmantelamento da rede de proteção trabalhista, no controle e a manipulação da
informação pelos meios de comunicação de massa, na divulgação de noticias
falsas e a demonização dos inimigos políticos, na destruição de determinados
setores da economia nacional, no desmantelamento dos instrumentos para uma
política econômica soberana, na substituição da política pela religião e na
intervenção militar na segurança pública) expressa bem essa pluralidade de
interesses da “direita”.
Felizmente, a ausência de uma estrutura coerente,
os interesses antagônicos e as contradições que envolvem os grupos de poder da
“direita”, uma vez compreendidos, revelam a possibilidade de superação,
resistência e reação à ofensiva antidemocrática e ao movimento
neo-obscurantista. A briga por poder e status não vai acabar. Os interesses
antagônicos no interior do Estado brasileiro são muitos e evidentes. Como
conciliar os desejos nacionalistas de parcela das forças armadas (chamadas para
conter os “indesejáveis” às lentes dos ideólogos neoliberais) com os desejos
das grandes corporações internacionais? Como frear a onda conservadora e os
discursos de ódio que não mais interessam à parcela “civilizada” dos meios de
comunicação de massa? Como compatibilizar os interesses dos empresários
produtivos com os da burguesia bancária? Como reduzir a carga de impostos, se
há a necessidade de um Estado forte tanto para conter os pobres e os inimigos
políticos do projeto de acumulação ilimitada neoliberal quanto para resgatar as
instituições bancárias das crises que elas mesmo geram ao, na busca ilimitada
por lucros, emprestar dinheiro que não possuem e que sabem (ou deveriam saber)
que não poderá ser devolvido?
Há um claro limite para a propaganda e a violência,
que foram os instrumentos até o momento utilizados para promover esse movimento
de distanciamento com os valores da modernidade e da democracia. A propaganda e
a violência não são capazes de melhorar as condições políticas e sociais, ao
contrário, elas geram mais violência, ressentimento e ódio. A própria aliança
entre o neoliberalismo e o neoconservadorismo apresenta limitações evidentes:
os atores sociais neoconservadores procuram compensar os efeitos sociais
típicos do projeto neoliberal com uma retórica moralizante e
discriminadora somada à defesa de práticas autoritárias e repressivas adequadas
à tradição brasileira, porém o poder de enganar a população, vendendo a imagem
de que o “mercado” e os lucros absurdos das instituições financeiras são uma
realidade natural e compatível com a nostalgia de uma sociedade estável e
“pura”, não dura para sempre.
Está aberto um campo de disputa. Seria importante
contar com todos aqueles dispostos a superar a racionalidade neoliberal,
resgatar os valores democráticos e defender a modernidade cultural. Não é o
momento de se contentar com cirandas ou frases de efeito. Não é o momento para
o narcisismo das pequenas diferenças. É hora de fraternidade, não de egoísmo, de
reconstrução da democracia, não de ficar preocupado com interesses menores. É
hora de resistência democrática.
A democracia é uma experimentação do comum.
Deve-se, para construir esse comum, desvelar a artificialidade do mercado e os
interesses das oligarquias, ao mesmo tempo em que se busca a coordenação das
lutas tanto no nível local quanto no nível nacional, sem esquecer a necessidade
de se criar também um bloco democrático internacional. Contra a nova
obscuridade, a defesa da democracia. E isso exige efetiva participação popular
na tomada das decisões políticas, eleições livres e o respeito incondicional
aos direitos e garantias fundamentais, que são exteriorizações do comum e,
portanto, inegociáveis.
RUBENS R.R. CASARA é juiz de Direito do TJRJ e escritor. Doutor em Direito e
mestre em Ciências Penais. É professor convidado do Programa de Pós-graduação
da ENSP-Fiocruz. Membro da Associação Juízes para a Democracia e do Corpo
Freudiano