Ladislau Dowbor
“A criatura mais intelectual que já andou na
terra, está destruindo sua única casa”
Jane Goodall
A burrice no poder tende não só a se perpetuar, como nela se afundar. O
acúmulo de bobagens ou de tragédias, a partir de um certo ponto, exigiria
tamanha confissão de incompetência, que os donos de poder continuam até a
ruptura total. Reconhecer a burrice torna-se demasiado penoso. Barbara Tuchman nos dá uma
análise preciosa dos mecanismos, no que ela chama de Marcha da Insensatez: “Uma vez que uma política
foi adotada e implementada, toda atividade subsequente se transforma num
esforço para justificá-la.” Isso levou, por exemplo, cinco presidentes
note-americanos sucessivos a se afundarem na guerra do Vietnã, apesar da convicção íntima,
hoje conhecida, de que era uma causa perdida. A burrice política obedece a uma impressionante força de
inércia.
Qualquer semelhança com o golpismo no Brasil insistir numa política
que empurra o país para trás, mesmo depois de quatro anos de desastre, não é
evidentemente uma coincidência, é a regra. No túnel da burrice, os que a
perpetram sempre imaginam que logo adiante surgirá a proverbial luzinha. Se a
política sacrifica em vez de ajudar, dirão que o sacrifício não foi suficiente,
é só aprofundar um pouco mais. Com gigantesco esforço de mídia, de fake-news e de dinheiro, elegeu-se um
presidente cujo rumo é simplesmente acelerar a Marcha. Com Deus e a Família rumo ao absurdo.
A burrice
da “austeridade”
“”A “austeridade”, para quem não tenha notado, não
funciona. Como diz Stiglitz, nunca funcionou. Por uma razão
simples: o capitalismo, para se expandir, precisa de
produtores, mas também de consumidores. No centro do raciocínio, está a ilusão
de que não temos recursos suficientes para incluir os pobres. As políticas
sociais e um salário mínimo decente não caberiam
na economia, no orçamento, ou na Constituição, segundo os
políticos. Façam um cálculo simples: o Brasil produz 6,3 trilhões de reais de bens e serviços, o
montante do nosso PIB. Isso
dividido por 208 milhões de habitantes nos dá um per capita de 30 mil reais ao
ano, ou seja, 10 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Isso está longe
das ambições de consumo da nossa classe média alta, mas assegura, para o comum
dos mortais, o suficiente para uma vida
digna e confortável.
Nosso problema não é falta de recursos, e sim a burrice na sua distribuição. Na fase do lulismo, a economia cresceu, sendo que
a renda dos mais pobres e
das regiões mais pobres cresceu mais do que a renda dos mais ricos: todos
ganharam, os pobres de maneira mais acelerada, reduzindo a desigualdade.
A ascensão dos pobres gerou
nos ricos a reação esperada: a mesma que tiveram com Getúlio e com Jango, agora repetida com Dilma e com Lula. Reconhecer que funciona o que
sempre denunciaram seria penoso demais. A burrice é muito teimosa. Portugal tem uma experiência
simpática: mandou a “austeridade” às favas, e está indo de vento em
popa. Com uma lei absurda de teto de gastos, nós
institucionalizamos o aprofundamento
da desigualdade. Já se notou que a austeridade recomendada é a dos pobres que
têm pouco, e não a dos ricos que têm muito e ainda esbanjam?
A burrice do
golpe
O Banco Mundial qualificou
os anos 2003 a 2013 de The Golden
Decade, a década dourada da economia brasileira. É
preciso ser muito ideologicamente cego para ignorar o imenso avanço que
representaram a queda do desemprego de 12% em 2002 para
4,8% em 2013, a abertura de 18 milhões de empregos formais, a retirada de 38 milhões de pessoas da pobreza,
a redução do desmatamento da Amazônia de 28
para 4 mil quilômetros quadrados, o acesso à luz elétrica para 15 milhões de pessoas e assim por
diante. A opacidade mental dificulta naturalmente a aceitação dos números por
quem quer se convencer do contrário. Então se gera uma forma sofisticada de
bobagem chamada hoje de “narrativa”: fazer política para o povo é populismo,
o populismo quebrou as contas do Estado e o caminho certo é o da boa dona de
casa que só gasta o que tem. Portanto, a dona de casa Dilma tem de ir para casa. Mas os
números são simples: o que gerou o déficit não foram as políticas econômicas e sociais do governo, e sim os
juros escorchantes sobre a dívida
pública e a dívida
privada, a chamada financeirização.
Já pararam para pensar o que significa o Brasil ter, em 2018, 64 milhões de adultos endividados até o ponto de não
poderem mais pagar suas dívidas? São adultos, acrescentem as famílias, estamos
falando da massa da população.
Quando a Dilma tenta,
entre 2012 e 2013, reduzir as taxas de juros, começa a guerra política, com manifestações, boicote e denúncias. A
partir de meados de 2013 não há mais governo. Dilma
ainda ganha a eleição, mas como foi anunciado pelos adversários, não
governaria. A burrice atinge o seu ápice quando se cortam as políticas sociais com a lei do teto de gastos, mas se mantêm as taxas
de juros. Os bancos agradeceram, a classe rentista também. Jogaram a economia
na recessão. Em termos políticos, tiraram Dilmasem crime, prenderam Lula sem comprovação de culpa,
elegeram um presidente absurdo por meio da prisão de
quem ia ganhar a eleição, e quem prendeu Lula ganhou o posto de ministro. Sim, de 2014 para cá, são
muitos anos em que estão “consertando” a economia, que continua parada. O presidente eleito vai reduzir ainda mais
os rendimentos da massa da população. Só para lembrar, o Bolsa Família são 30 bilhões de reais ao
ano, que geram demanda e dinamizam a economia. Só os juros sobre a dívida pública, na faixa de 320
bilhões de reais, representam dez vezes mais, alimentando rentistas. E como as
finanças deformadas quebraram a economia, o déficit aumentou. É um círculo
vicioso. E quanto mais travam a economia, mas explicam que o sacrifício ainda é
insuficiente. No entanto, persiste a narrativa simplória: Dilma quebrou a economia. Para a maioria das
pessoas, em particular quando não entendem os processos, política se resume a
eleger o culpado. O sistema
financeiro travou a economia, mas vendeu ao povo uma culpada, aliás
mulher e teimosa, vítima ideal. O poder
dos bancos funciona hoje apenas para os banqueiros e para os
rentistas.
A burrice
do rentismo
O lucro sobre investimento é legítimo: gera empregos, produtos, e
paga impostos. O lucro sobre aplicações financeiras
constitui dividendos, assegura grandes retornos para quem não produz nada.
Os banqueiros chamam
os diversos papéis que rendem dividendos de “produtos”, o que constitui um
disfarce simpático. Dinheiro ganho com aplicações financeiras não coloca um par de sapatos no
mercado de bens realmente existentes. Diferenciar investimento produtivo e aplicação financeira é básico.
O manual britânico sobre o funcionamento da moeda explica o efeito bola de neve, financial snow-ball
effect: papéis financeiros renderam nas últimas décadas entre 7% e 9% ao
ano. Só para lembrar, a produção efetiva de bens e serviços aumenta no mundo
num ritmo incomparavelmente menor, da ordem de 2% a 2,5%. Os afortunados,
logicamente, irão optar pelas aplicações financeiras. Por exemplo, um bilionário
que aplica o seu dinheiro a modestos 5% ao ano ganha 137 mil dólares ao dia,
sem precisar produzir nada. A cada dia a maior parte deste dinheiro é
reaplicada, gerando um enriquecimento improdutivo que gradualmente multiplica
bilionários e trava a economia. É o capitalismo dando o tiro no próprio pé, ao perder a sua
principal justificativa, a produtividade. De crise em crise, no cassino financeiro mundial, vimos o 1%
dos mais ricos do planeta se apropriar de mais riqueza do que os 99% seguintes.
No curto e médio prazo, funciona muito para o 1%. Como institucionalização da
remuneração dos improdutivos muito superior à dos que produzem, não funciona
para o conjunto. É sistemicamente disfuncional.
A economia de mercado supunha trocas entre produtores e consumidores,
com geração de emprego e renda. Hoje os “mercados”, grupo limitado de
especuladores, apresentam um surto de otimismo a cada redução dos direitos da
população. É a lógica da insensatez. Não é preciso ir muito longe para aprender
algo de positivo: a China controla o seu sistema financeiro
para que seja utilizado produtivamente, os alemães usam a rede de caixas de
poupança locais (sparrkassen) assegurando que o dinheiro seja investido
no que a comunidade necessita. Sabemos o que funciona: é quando o dinheiro é
investido produtivamente.
Um exemplo prático ajuda: há alguns anos a Coréia do Sul desbloqueou recursos públicos pesados para
financiar sistemas de transporte
público não poluente. O investimento gerou evidentemente um conjunto de
atividades de pesquisa e de produção, e portanto emprego. Como utilizar
transporte coletivo é muito mais barato do que cada pessoa pegar o seu carro,
foram geradas economias que mais que compensam o investimento. Como investiram
em transporte menos poluente,
melhoraram as emissões tanto
pela tecnologia desenvolvida como pela redução do uso de automóveis.
Menos poluição nas cidades significa
menos doenças de diversos tipos, e economias na área da saúde. A redução do tempo perdido nos engarrafamentos
permite menor desgaste da população, mais tempo com lazer, melhor produtividade
no trabalho. O exemplo tende a ilustrar apenas o óbvio: os recursos têm de ser
investidos em projetos e programas que geram efeitos multiplicadores em termos
de dinamização econômica, de proteção do meio ambiente e de melhoria do
bem-estar das famílias. Tanta inteligência que se gasta para encontrar a
aplicação financeira que mais rende, poderia ser utilizada para elaborar os
projetos mais úteis. E enriquecer a sociedade.
O fluxo
financeiro integrado
Como isso funciona no Brasil?
As contas não são difíceis de explicar. A economia funciona quando se coloca o
dinheiro onde vai ter efeitos multiplicadores. Se eu compro uma máquina,
aumento a minha produtividade e consequentemente os meus lucros em nível
superior à taxa de juros que me cobram, posso pegar outro empréstimo e ir
aumentando a produção, gerando emprego e renda. Mas se o custo do crédito, a
taxa de juros cobrada, é superior aos rendimentos que a máquina me permite
obter, eu me verei enforcado em dívidas sobre dívidas, terminando por trabalhar
para pagar o banco. Como escreve Zygmunt Bauman, os banqueiros detestam o bom
pagador. Essa deformação fundamental, dos principais agentes econômicos
no Brasil – as
famílias, as empresas e o Estado – se verem enforcados com o sistema financeiro, é que está na raiz
da nossa recessão econômica e do caos político que vivemos. E ainda nos
convencem que a solução está em colocar mais banqueiros na direção da política.
Faça as contas. No Brasil as
famílias e as empresas pagam anualmente, só em juros, portanto sem reduzir a dívida, 1 trilhão
de reais. Como o nosso PIB é
de 6,3 trilhões, estamos aqui falando em 16% do PIB. Este montante surrealista se deve simplesmente às taxas de
juros praticadas, que constituem agiotagem. Em fevereiro de 2018, por exemplo,
os juros bancários para pessoa física estavam na faixa de 137% ao ano, quando
na França são
inferiores a 5%, também, evidentemente, ao ano. Assim o sistema financeiro
drenou a capacidade de compra das famílias e a capacidade de investimento das
empresas.
O dinheiro dos nossos depósitos e o fluxo de juros que os bancos extorquem das famílias e das
empresas são em grande parte aplicados em títulos da dívida pública. O governo
pagou aos bancos e aos ricos que têm aplicações deste tipo 341 bilhões de reais
em 2017, cerca de 6% do PIB.
Muitos países têm dívidas públicas maiores que as nossas, proporcionalmente
ao PIB, mas nenhum paga
juros tão elevados. Para o governo pagar esses 341 bilhões (apenas juros, sem
reduzir a dívida) aos aplicadores financeiros, ele precisa cobrar os impostos
correspondentes. Assim, os nossos impostos, em vez de financiarem políticas
sociais e infraestruturas, vão parar nos bolsos dos especuladores financeiros,
de gente que não produz nada, pelo contrário, desviam os recursos dos seus usos
produtivos.
A conta não é complicada. Somando os 16% que tiram das famílias e das
empresas, e os 6% que tiram dos nossos impostos, vamos a 22% do PIB. Mas isso é agravado pelo sistema
tributário. Enquanto na Europa se
corrige em boa parte a deformação taxando o capital financeiro, as grandes
fortunas, as heranças, e as rendas mais elevadas, no Brasil os ricos pagam proporcionalmente
menos que os pobres, e desde 1995 os lucros e dividendos distribuídos são
isentos de impostos. E tem mais. A evasão fiscal é calculada no Brasil em 570 bilhões de reais
por ano, o que representa 9% do PIB.
Quem evade, naturalmente, é o rico, o banco, a corporação: o assalariado tem o
seu imposto descontado na folha. Boa parte da evasão é assessorada por bancos,
que têm para isso departamentos que qualificam de “otimização fiscal”. Os nomes
utilizados nas finanças são muito bons, como justamente chamar aplicação
financeira de investimento.
Tem mais, naturalmente. Boa parte da evasão se dá por meio de paraísos
fiscais, com grandes empresas de gestão discreta de fortunas que se situam em
países onde não há controle, por exemplo no Panamá, ou nas Ilhas Cayman, ou ainda no Estado de Delaware nos Estados
Unidos, sem falar evidentemente da Suíça que, como escreveu Jean Ziegler, “lava mais branco”. Não se trata
de roupa, evidentemente. O fato é que o estoque de recursos financeiros
improdutivos nos paraísos fiscais é
estimado em 20 trilhões de dólares pelo Economist, equivalente a quase um terço do PIB mundial. O Brasil participa com 520 bilhões
de dólares (dados de 2012), o que representa cerca de 2 trilhões de reais,
equivalente a cerca de um terço do nosso PIB. Não só não investem, como sequer pagam impostos.
Vimos aqui os imensos drenos que sangram a nossa economia, que vaza por
todo lado. E há evidentemente uma série de drenos menores, como o sistema de
pensão complementar (ativos da ordem de 1 trilhão que poderiam ser investidos e
fomentar a economia em vez de alimentarem o sistema financeiro), bem como as
seguradoras, com ativos também da ordem de 1 trilhão, e também ‘aplicados’ e
não investidos, além do rentismo mais disfarçado dos planos de
saúde, das telefônicas e outros drenos.
A nossa Constituição é
clara: “O sistema financeiro nacional [será] estruturado de forma a promover o
desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade.”
Hoje, o SFN (Sistema Financeiro Nacional) serve
essencialmente para alimentar improdutivos, sejam eles banqueiros, grupos
nacionais ou internacionais, e em particular a classe média alta que com tanto
entusiasmo ocupa a avenida Paulista. A realidade é que os bancos criaram um
sistema em que os nossos impostos são desviados em grande parte para os seus
cofres e para os rentistas que participam da festa, essencialmente os mais
afortunados. Os banqueiros manejam o Estado, drenam os seus recursos, e explicam
que a culpa é do Estado, dos impostos
elevados, e dos “gastos” com os mais pobres.
O absurdo de tudo isso? É que seria incomparavelmente mais produtivo
para todos, inclusive para os bancos, fomentarem a economia em vez de drená-la.
A China tem esse ritmo
de desenvolvimento porque canaliza os recursos financeiros “de forma a promover
o desenvolvimento”. No nosso caso, trata-se de visões de curto prazo,
mesquinhas, satisfazendo quem olha a sua conta bancária ou seu dinheiro no
exterior engordar, e esquece que gerar o caos e travar o desenvolvimento não
resolve o futuro de ninguém.
O absurdo
da desigualdade
Manter a desigualdade é
particularmente absurdo, mas está no centro das propostas do poder. Afinal, os
ricos que nos regem defendem os seus próprios interesses, e é raríssimo ter
alguém no poder que não seja rico, branco, homem, e centrado em aumentar as
suas próprias vantagens. A questão, evidentemente, é que a partir de um
certo nível de desigualdade e
de repartição do acesso aos bens e serviços produzidos pela sociedade
divorciada dos aportes, e portanto do merecimento, o sistema se torna
disfuncional, inclusive para os donos do poder. Jogaram a economia na recessão,
no desemprego, e no caos político.
Mas funciona pelo menos para os ricos? Criar as suas famílias em
absurdos condomínios cercados e eletrificados, ou em mansões em que precisam
conviver com equipes de segurança, dotando-se de veículos blindados, escondendo
as suas fortunas em paraísos fiscais, administrando esquemas de evasão fiscal,
buscando relaxamento em viagens aos países desenvolvidos – enfim a civilização
– tudo isso tem pouco a ver com uma sociedade onde se respira livremente.
Inúmeros estudos comparados internacionais sobre a percepção de qualidade de
vida apontam para uma radical melhoria quando um pobre tem acesso a uma renda
mais decente, mas quase nenhuma melhoria quando um milionário avança para mais
milhões. Este sistema nem para eles funciona. Se é para aumentar a felicidade
geral da nação, a tal da Felicidade
Interna Bruta (FIB),
não há dúvida que uma política de inclusão funciona melhor para todos. Quanto
mais na base chega o dinheiro na pirâmide
social, maior é o multiplicador de felicidade, e também do dinamismo econômico. A redução da desigualdade é fundamental em
termos éticos, políticos e econômicos.
Em termos de ética, fica difícil encontrar palavras suficientemente
fortes. Em nenhuma sociedade civilizada pode uma pessoa ficar sem atendimento médico ou acesso a um
medicamento, uma criança ou um adulto ficarem sem poder comer, famílias viverem
desabrigadas, ou ainda passarem anos em campos de refugiados. Morrem de fome ou de falta de acesso à água
segura cerca de 6 milhões de crianças por ano, 850 milhões pessoas passam fome
no mundo, quando produzimos, só de grãos, mais de um quilo por pessoa por dia,
quando desperdiçamos um terço dos alimentos produzidos
por mal manejo. Todos esses ricaços irresponsáveis que esbanjam os seus
recursos com consumo espalhafatoso ou especulação financeira, em vez de ajudar na implementação de
políticas que funcionam para o conjunto da sociedade, todas essas corporações
que geram tragédias sociais e
ambientais, navegam em valores de primatas, na ética de que o sucesso
consiste em arrancar o pedaço maior, que se dane o sofrimento, que se dane o
planeta. Aqui temos inteligência impressionante para gerar novos meios, mas uma
burrice impressionante em termos de definir os fins. Vamos construir mais
muros, abrir mais condomínios, mais casulos de riqueza, sistemas de repressão
mais violentos?
Essa desigualdade é
evidentemente disfuncional também em termos sociais e políticos. A partir de um
determinado nível de desigualdade,
não há solidariedade social nem convívio
democrático que sobrevivam. A violência se torna latente em todas as esferas. Nos Estados Unidos as pessoas compram
mais armas, no Brasil o
exército invade favelas, nas Filipinas se
fuzila à vontade, a Europa não
sabe mais o que fazer para se proteger da maré de miseráveis que fogem das
colônias que a Europa tanto
explorou e desarticulou. Não estamos aqui sugerindo perfeita igualdade, mas sim
uma situação menos obscena, em que cada pessoa possa valer pelo que vale como
pessoa, e ter as suas oportunidades de crescer. A realidade é muito simples:
pessoas reduzidas ao desespero reagem de maneira desesperada, há limites no bom
senso de milhões de pessoas que encontram todas as portas fechadas. Temos os
recursos, temos as tecnologias, sabemos como fazer, e custa muito pouco. É
exagero falar de ignorância?
E a desigualdade constitui
em particular uma burrice no plano
econômico. Porque funcionaram o New Deal de Roosevelt, o Welfare State dos países hoje
desenvolvidos, o milagre da Coréia
do Sul, o impressionante ritmo de desenvolvimento da China, a “década dourada” do Brasil?
Todos tiveram em comum a expansão da capacidade de compra da base da população,
e o acesso a políticas sociais públicas e universais, que permitiram ampliar a
escala de produção e o emprego. O que a empresa mais quer é ter mercado. Os
mecanismos econômicos são conhecidos já há quase um século, a partir de Kalecki e de Keynes. Investir no bem-estar das populações
gera demanda, o que por sua vez amplia a produção, e assegura mais empregos, o
que aumenta mais ainda a demanda. O consumo das famílias e a produção
empresarial geram por sua vez impostos que aumentam as receitas do Estado,
fechando a conta. Isso permite o financiamento das políticas sociais: uma
população com mais saúde e educação é mais produtiva. Aqui não são necessários
ideologias e ódios, e sim um simples olhar para o que funciona. E o que
funciona é quando a economia é orientada segundo as prioridades e o bem-estar
das famílias. A desigualdade,
em termos econômicos, apenas mantém uma atividade de base estreita e de baixa
produtividade.
Manter e reproduzir a desigualdade, quando desarticula as nossas
sociedades acumulando absurdos éticos, políticos e econômicos, francamente, é
espantoso. Aprofundá-la é patológico. Todos os exemplos positivos que temos,
do Canadá à Coreia do Sul, passando pela Alemanha e os países nórdicos, e
evidentemente a China, se
basearam em expandir o mercado interno e as políticas sociais, em de vez de privilegiar minorias.
Estado,
empresa e sociedade civil organizada
No centro dos desafios está a necessidade de termos instituições que
permitam que se implementem políticas que façam sentido. O embate sobre a
política tem se resumido basicamente à guerra entre os que querem estatizar e
os que querem privatizar. A realidade é que somos hoje sociedades demasiado
complexas para soluções ideológicas simplificadoras deste tipo. Onde funcionam,
as políticas se apoiam numa articulação razoavelmente equilibrada de Estado,
empresas e organizações da sociedade civil. As corporações sem controle do
interesse público viram máfia, o Estado sem controle público vira ditadura, o interesse público sem
organizações da sociedade civil para enfrentar de maneira articulada os
desmandos é simplesmente desconsiderado.
E não é complicado. O objetivo é o desenvolvimento sustentável, equilibrando os interesses
econômicos, sociais e ambientais. Hoje os 17 objetivos e 169 metas da Agenda 2030 descrevem de maneira clara os
rumos: assegurar uma vida decente para todos, sem prejudicar as gerações
futuras. Sabemos o que funciona: é o ciclo econômico completo centrado no
bem-estar das famílias. O bem-estar das famílias, objetivo último do desenvolvimento econômico e social,
depende sem dúvida da renda auferida, que permite fazer as compras, pagar as
contas. Assegurar um razoável fluxo de renda para a massa dos consumidores é o
que por sua vez vai gerar o mercado para o desenvolvimento das atividades
produtivas. Tanto o consumo direto (out-of-pocket dizem os
americanos) como a atividade empresarial geram receitas para o Estado.
Este, por sua vez, poderá utilizar os recursos para o chamado salário
indireto, o que assegura o consumo coletivo de serviços como saúde, educação,
cultura, segurança, o rio limpo, os parques na cidade, infraestruturas de
energia e transporte e semelhantes. O acesso ao consumo coletivo é fundamental,
pois sai muito mais barato e se torna muito mais eficiente ter um serviço
público gratuito universal de saúde como no Canadá, do que o sistema privatizado norte-americano. Os números
são clamorosos: o americano gasta 9.400 dólares por ano com doenças; o
canadense 3.400 dólares por ano com saúde, com resultados incomparavelmente
superiores. O sistema público, gratuito e universal de acesso aos bens
coletivos é simplesmente mais eficiente. É ridículo no Brasil se chamar os investimentos públicos de “gastos”, quando se trata da forma mais
eficiente de assegurar o acesso a bens de consumo coletivo essenciais.
Curiosamente, os bancos chamam os diversos papéis que nos empurram de
“produtos”.
A burrice aqui consiste em se desenvolver uma guerra ideológica pro- ou
anti-Estado, quando é natural que bens de consumo individual estejam no âmbito
empresarial, políticas sociais e infraestruturas no âmbito do Estado, e o
ajuste das políticas tanto empresariais como públicas seja assegurado de forma
articulada por organizações da sociedade civil. Nada como olhar o que funciona,
e de que maneira, pelo planeta afora, e se inspirar. O melhor antídoto à
burrice é a aprendizagem, rende muito mais do que bater panelas.
A sociedade
desinformada
Dizia Jung que
pensar é trabalhoso, então as pessoas preferem ter opiniões. Você pode ter
direito às suas opiniões, mas não aos seus fatos. O espantoso é termos
uma sociedade tão desinformada numa
época em que estamos cercados de meios de comunicação, na sala, na rua, no
consultório médico, no próprio bolso. Em boa parte, essa desinformação se deve ao fato de que entre
os fatos que chegam à cabeça e as opiniões que mobilizam o nosso fígado, preferimos
claramente tranquilizar o fígado: vamos selecionar os fatos, ou deformá-los,
para justificar o que queremos acreditar. Os demagogos do mundo há tempos
aprenderam que mobilizar as pessoas pelo ódio rende muito mais do que tentar
explicar-lhes a realidade. Encontrar um culpado que possamos odiar juntos gera
uma catarse popular poderosa, uma imensa excitação de sermos uma patota
solidária na mobilização punitiva: os judeus na Alemanha de Hitler,
os palestinos no Israel de
hoje, os mexicanos nos Estados
Unidos (já que não temos mais os soviéticos nem Saddam Hussein), os imigrantes
na Europa. No Brasil até reinventaram o
comunismo para poder justificar o ódio ao Lula e aos pobres em geral.
Kurt Andersen escreve que os Estados Unidos sofreram uma mutação que os tornou uma ilha da
fantasia, Fantasyland: “No
bilhão de sites da internet, pessoas que acreditam em tudo e qualquer coisa
podem encontrar milhares de companheiros de fantasia que compartilham as suas
crenças, com colagens de fatos e com “fatos” para confirmá-las. Antes da
internet, os de cabeça confusa (crackpots) ficavam essencialmente
isolados e seguramente tinham mais dificuldade para continuar convencidos das
suas realidades alternativas. Hoje as suas devotamente seguidas opiniões estão
no ar e na Web, da mesma maneira como notícias efetivas. Agora todas as
fantasias parecem verdadeiras.”
Demagogos políticos com os seus
discursos de ódio ou de grandiosidade, corporações que nos convencem que somos
mais importantes ao pagar 1200 reais por uma caneta Montblanc que escreve, Think Tanks que se multiplicaram
como cogumelos – desde os gigantes financiados pela família Koch até o nosso Milenium tão brasileiro – gigantes do carvão e do petróleo que
financiam campanhas mundiais para dizer que a mudança climática é uma invenção acadêmica, tudo isso aponta
não só para o fato que somos muito frágeis em termos de usar a nossa razão, mas
que temos uma gigantesca indústria planetária que disso se aproveita. O cérebro
passa a existir para inventar razões para acreditar no que não tem nenhuma base
racional. Ter uma sociedade tão desinformada, e ao mesmo tempo sobrecarregada
de informação, aponta para uma forma particularmente idiota de organizarmos o
acesso ao conhecimento. E exemplos positivos não faltam, como a BBC para o mundo que entende
inglês, a TV5Monde para
o mundo francófono, redes de informação científica como a PBSamericana e assim por diante. Já
pensaram a TV utilizada para informação em vez de fakereality?
O paradoxo
das tecnologias
É muito impressionante a nossa preocupação com as tecnologias. Afinal, fazer mais coisas
com menos esforço deveria nos deixar contentes, aumenta a produtividade social.
Mas os avanços tecnológicos explosivos que vivemos exigem formas inovadoras de
organização social. No mundo do vale-tudo que chamamos educadamente de liberalismo, ou de neoliberalismo, as novas tecnologias
permitem liquidar a vida nos mares, encher os nossos alimentos de agrotóxicos e de antibióticos, contaminar a água, o ar
e o solo, transformar o clima, liquidar as florestas, destruir a biodiversidade
herdada – tudo em escala sem precedentes, justamente pelo poder das
tecnologias. Entre a criatividade que permite esse avanço das tecnologias, e a
nossa patológica dificuldade de pensar de maneira sistêmica (como se articulam
essas diversas transformações) e no longo prazo (mudança climática, acidificação dos oceanos etc.), o
resultado é o que tem se chamado de catástrofe em câmara lenta.
Como se preocupar tanto com o desemprego tecnológico quando a
produtividade maior significa que podemos trabalhar menos, e dedicar uma parte
maior das nossas vidas à cultura, lazer, convívio e semelhantes? Obviamente, é
só distribuir melhor a jornada de trabalho, deixar a economia se expandir nas
áreas que nos permitam aproveitar melhor a vida, e assegurar a renda básica
para permitir que na transição ninguém fique em situação desesperadora. Mas
também precisamos nos dotar de instrumentos de regulação que evitem a destruição do planeta. Ou seja, quem
maneja a tecnologias tem de assumir a responsabilidade de não ser apenas
economicamente viável, mas também socialmente justo e ambientalmente sustentável. O
vale-tudo organizacional do século XX mas com as tecnologias do século XXI não
tem como funcionar. Utilizar tanta tecnologia e conhecimento sofisticado para
aprofundar a crise ambiental e
o desastre social,
francamente, constitui burrice sistêmica.
Competição
ou colaboração
Sabemos que os processos
colaborativos funcionam. No entanto privilegiamos a guerra de todos
contra todos, entre grupos sociais, entre religiões, entre países, entre
empresas, entre vizinhos. Em grande parte, sem dúvida, trata-se da nossa
natureza. Mas o essencial é que constatamos, em tantos exemplos pelo mundo, que
se trata também de dimensões institucionais. Não estava na natureza dos alemães
matar pessoas em campos de concentração, nem está na dos guardas de fronteira
americanos arrancar filhos de junto das suas mães. E podemos olhar como
sociedades muito mais centradas na colaboração, como o Canadá ou os países nórdicos,
prosperam não só em termos de qualidade
de vida como inclusive de produtividade econômica. As pessoas
esquecem, ao constatarem a impressionante dinâmica da China, do Vietnã e de outros “tigres”, a que ponto está ancorada nas
suas tradições a dinâmica colaborativa do cultivo de arroz, em que o dique de
um é também o dique de outro, em que a repicagem do arroz se faz de maneira
coletiva.
O que vale no curso da nossa curta vida não são só os resultados, mas
também os processos. Transformar a vida num inferno e depois mostrar que
aumentou a produção nos deve levar a pensar, afinal, o que queremos? A vida é o
próprio caminhar, e tornar o caminho menos espinhoso pode ser mais importante
do que chegar mais rápido. As pessoas estão redescobrindo os bens comuns, como
conhecimento, meio ambiente,
infraestruturas que geram mais conforto e articulação entre as diversas
atividades. Com a urbanização mundial, inúmeras cidades estão assumindo as
rédeas de um desenvolvimento mais equilibrado, organizando a colaboração dos
diversos atores sociais e econômicos. Com a evolução para a sociedade do
conhecimento, redescobrem a evidência de que as ideias podem ser generalizadas
sem custos adicionais, no quadro da sociedade de custo marginal zero tão bem
descrita por Jeremy Rifkin. Com a conectividade planetária
abrem-se espaços imensos de economia colaborativa.
Já é tempo de começarmos a nos civilizar. Um versinho de repentistas
pernambucanos é cheio de sabedoria: “Para que tanta ganância e correria, se
ninguém veio aqui para ficar?” Francamente, os super-homens de plantão, sejam
políticos, empresariais ou eclesiásticos, me enchem o saco, eu quero a
tranquilidade do cotidiano, a riqueza das trocas, as alegrias do convívio. E
temos toda a ciência e riqueza necessárias para assegurar o bem-estar de todos
sem tanta ideologia do sucesso
individual. Realização, sem dúvida, mas não sobre as costas dos outros,
e muito menos sobre os seus cadáveres, absurdo que por desgraça continua em
tantas regiões do mundo. Quando as regras se tornam fluidas e as leis
ajustáveis, impera o arbítrio dos mais fortes. Até quando aceitaremos a
estupidez de armar mais pessoas para gerar mais
segurança? De mandar tropas para as favelas em vez de enfrentar o absurdo da
sua existência? Será demais exigir da inteligência que entenda que é mais
produtivo agir sobre as causas do que sobre as consequências?
A lei como
vetor de injustiça
A lei é fundamental. O conjunto das leis define as regras do jogo na
sociedade. E aigualdade perante a lei é
essencial, permitindo previsibilidade e segurança. Um problema central,
naturalmente, é definir quem faz as leis. No mundo realmente existente, as leis
são feitas por homens, não por acaso brancos e ricos. E são feitas, como se
poderia esperar, no sentido de privilegiar homens, brancos e ricos. Houve um
tempo em que era legal uma pessoa comprar ou vender pessoas como escravos. Lincoln, como presidente, conseguiu revogar esta lei recorrendo a
uma série de ilegalidades, inclusive à corrupção: já se comentou que o maior avanço humanitário dos Estados Unidos foi conseguido por um homem profundamente
ético que o conseguiu recorrendo aos procedimentos mais desonestos. No Brasil, a generalização do hábito de
legislar em causa própria nos leva ao caos, ao se deslegitimar a própria lei e
o próprio judiciário.
As nossas heranças recentes são significativas. Podemos dizer que
a Constituição
de 1988, pelo modo como foi elaborada, era legítima. Mas mesmo
dentro desse marco jurídico, foi se desenhando um Frankenstein. Sigam o processo. Em 1988, nós aprovamos a Constituição, resgatando um mínimo de
governabilidade. Em 1995, o governo aprova uma lei que define as modalidades do
endividamento público: a partir de julho de 1996, os bancos podiam aplicar o
nosso dinheiro em títulos públicos que rendiam 25%, já com inflação baixa. O
normal no mundo é um rendimento entre 0,5% e 2% ao ano. A taxa Selic foi e continua sendo um imenso
presente para os banqueiros.
Apropriação privada legalizada de recursos
públicos. Bem, a lei é igual para todos, os pobres, se têm dinheiro
sobrando, também podem aplicar. As fortunas que o endividamento público
representou para a nata da sociedade não seriam oneradas pelo imposto: no
presente de natal aprovado em 26 de dezembro de 1995, os lucros e dividendos
distribuídos passaram a ser isentos de imposto. Os funcionários do banco são
descontados na folha, mas os milhões que entram nos bolsos dos banqueiros são isentos.
Isso no Brasil, mais uma
particularidade nossa.
Tem mais, em 1997, o governo aprovou uma lei autorizando as pessoas jurídicas
a financiarem as campanhas eleitorais. A política passou a representar os ruralistas, os bancos, a grande mídia, cada grupo de grandes corporações passou a ter a
sua bancada. Levou 18 anos
para o STF, guardião da
nossa Constituição, se dar conta de que o artigo 1º, que reza que todo poder
emana do povo, não das corporações e pessoas jurídicas, mas de pessoas de
verdade, tinha sido violado. O Congresso eleito
desta maneira aceitou em 1999 a PEC que
liquidava o artigo 192º da
nossa Constituição, transformada
em Emenda Constitucional em
2003. A limitação de juros (era de 12% ao ano mais inflação) desaparece.
Liquidaram a regulação financeira.
Lula estava plenamente consciente das relações de
força do país e leu, em junho 2002, a Carta aos Brasileiros, que mais poderia se chamar de carta aos
banqueiros: não mexeria com os seus interesses. Aliás, com a liquidação
do artigo 192º, teria
inclusive pouca base legal para fazê-lo. Apesar da sangria dos juros, foi
possível, como vimos, realizar milagres. Mas em 2012, com mais de 50 milhões de
adultos enforcados na dívida, e o governo esterilizado pelo dreno da dívida pública, Dilma resolve baixar os juros.
Não teve força política correspondente ao desafio. O resto sabemos: é o golpe,
e a lei do teto de gastos que garante os juros
para os banqueiros e os rentistas, mas onera a massa da população, iniciativas
do aparato jurídico que têm como denominador comum o aumento dos privilégios.
Moral da história: falar em legalidade tornou-se
um faz-de-conta. Em pequeno livro de 2015, Os estranhos caminhos do nosso
dinheiro, descrevo como a grande corrupçãogera
a sua própria legalidade. Uma empresa dar dinheiro a um político para que se
aprove uma lei que lhe favorece constitui corrupção. Mas entre 2007 e 2015, financiar a eleição do político que se deseja
e, portanto, ter os seus votos assegurados durante quatro anos, era legal.
Comprar políticos só seria ilegal no varejo.
Temos uma referência básica, a Constituição. E um guardião do seu cumprimento que é o Supremo Tribunal Federal. Ao se
bandear com armas e bagagens para os golpistas e para os grupos mais corruptos da política, ao
acobertar o golpe, o judiciário conseguiu sem dúvida favorecer uma guinada
radical para a direita, e reduzir radicalmente os espaços democráticos no país. Alguém acredita hoje neste
judiciário? O que conseguiram, foi uma desmoralização profunda, e a perda de
confiança na justiça representa um imenso recuo para o país. Em pleno final de
2018, depois de tanto justificar a perda de direitos da massa da população com
o pretexto do desequilíbrio das contas públicas, o STF obteve do Congresso agradecido
um aumento dos já impressionantes salários. É o absurdo do judiciário desmoralizando a
justiça. Os custos para o país serão imensos, e muito mais do que financeiros.
***
Voltamos aqui ao problema básico, a nossa imensa dificuldade de nos
governarmos com um mínimo de bom senso. As opções políticas seguem sendo
definidas muito mais pelo fígado do que pela cabeça, pelo ódio do que pela
solidariedade e compaixão. Em particular, a truculência de grupos ou classes sociais que por alguma
razão se tornaram mais fortes, constitui uma permanência na história, com o
exercício sistemático e recorrente de formas extremas de discriminação e
de violência. Qualquer
pretexto é suficiente, seja a cor da pele, o gênero, a opção sexual, a
religião, a diferença de renda,
e frequentemente até a idade. Por vezes o tamanho do cabelo, o porte de barba,
ou um véu na cabeça bastam para alimentar a besta latente dentro de nós. E
quando a bestialidade encontra a sua dimensão coletiva, sai de baixo.
Hoje os meios de comunicação permitem que o nosso consciente seja
invadido pelas narrativas mais absurdas, mas sempre favoráveis aos grupos
dominantes. A penetração na nossa intimidade é hoje individualizada através dos
sistemas eletrônicos, e o controle do que vemos e entendemos permite a gestão
por algoritmos de uma opinião pública que
passa a ser uma construção em escala industrial. Os sistemas financeiros
complexos permitem que sejamos expropriados do controle das atividades
econômicas, gerando uma desigualdade aberrante
em favor de rentistas improdutivos.
Gigantes corporativos exercem um poder distribuído pelo planeta, por parte de
grupos que ninguém elegeu, e que nenhum governo mundial limita. E estamos
avançando rapidamente, em termos históricos de maneira extremamente acelerada,
para o comprometimento da vida no planeta.
Visões estratégicas existem, e são razoavelmente óbvias: o resgate da
dimensão pública do Estado, a taxação
dos capitais improdutivos que nos governam, a reforma do nosso sistema tributário aberrante,
a obrigação de transparência dos fluxos financeiros, uma renda básica de cidadania, a redução da jornada de trabalho à
medida que avança a produtividade,
o resgate do papel das cidades como unidades básicas de governança, a
constituição de um mínimo de governança nos caos internacional que se constata.
É viável? A questão não é ser ou não viável, mas sim, em primeiro lugar,
entender a dimensão essencialmente política dos desafios, a centralidade da
questão do poder. Em segundo lugar, entender que é uma questão de tempo, pois
com a mudança climática,
a destruição da biodiversidade,
o aprofundamento do fosso entre ricos e pobres, a contaminação mundial da água e outros desafios que se
avolumam, estamos apenas adiando as medidas, provavelmente até que uma catástrofe planetária gere a
força política necessária.
A erosão do pouco de democracia que o Brasil tinha se dá como numa
tragédia burlesca. Derrubamos as políticas que estavam dando certo,
desfiguramos a Constituição que nos protegia dos absurdos,
elegemos um charlatão cujo único compromisso é deixar a oligarquia livre para
aprofundar os seus desmandos. Haverá um Brasil profundo, um bom senso latente na cabeça de milhões,
permitindo retomar os avanços para uma sociedade decente? Paulo Freire declarou um dia que queria
“uma sociedade menos malvada”. Os nossos desafios são imensos, e a nós que
somos professores, ou comunicadores, ou organizadores sociais, ou simples
cidadãos, cabe a tarefa de explicar o óbvio: uma sociedade que funcione tem de
ser uma sociedade para todos. A burrice se enfrenta, de preferência, com
inteligência.