Achille Mbembe
“Outro longo e mortal jogo começou. O principal
choque da primeira metade do século XXI não será entre religiões ou
civilizações. Será entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre
o governo das finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo”, escreve Achille
Mbembe. E faz um alerta: “A
crescente bifurcação entre a democracia e o capital é a nova ameaça para a
civilização”.
O artigo foi publicado, originalmente, em inglês, no dia
22-12-2016, no sítio do Mail &
Guardian, da África do Sul, sob o título “The age of humanism is ending”
e traduzido para o espanhol e publicado por Contemporea filosofia, 31-12-2016.
A tradução é de André Langer.
Eis o artigo:
Não há sinais de que 2017 seja muito diferente de 2016.
Sob a ocupação israelense por décadas, Gaza continuará a ser a
maior prisão a céu aberto do mundo.
Nos Estados Unidos, o assassinato de negros pela polícia
continuará ininterruptamente e mais centenas de milhares se juntarão aos que já
estão alojados no complexo industrial-carcerário que foi instalado após a
escravidão das plantações e as leis de Jim Crow.
A Europa continuará sua lenta descida ao autoritarismo liberal
ou o que o teórico cultural Stuart Hall chamou de populismo autoritário. Apesar
dos complexos acordos alcançados nos fóruns internacionais, a destruição
ecológica da Terra continuará e a guerra contra o terror se converterá cada vez
mais em uma guerra de extermínio entre as várias formas de niilismo.
As desigualdades continuarão a crescer em todo o mundo. Mas,
longe de alimentar um ciclo renovado de lutas de classe, os conflitos sociais
tomarão cada vez mais a forma de racismo, ultranacionalismo, sexismo,
rivalidades étnicas e religiosas, xenofobia, homofobia e outras paixões
mortais.
A difamação de virtudes como o cuidado, a compaixão e a
generosidade vai de mãos dadas com a crença, especialmente entre os pobres, de
que ganhar é a única coisa que importa e de que ganhar – por qualquer meio
necessário – é, em última instância, a coisa certa.
Com o triunfo desta aproximação neodarwiniana para fazer
história, o apartheid, sob diversas modulações, será restaurado como a nova
velha norma. Sua restauração abrirá caminho para novos impulsos separatistas,
para a construção de mais muros, para a militarização de mais fronteiras, para
formas mortais de policiamento, para guerras mais assimétricas, para alianças
quebradas e para inumeráveis divisões internas, inclusive em democracias
estabelecidas.
Nenhuma das alternativas acima é acidental. Em qualquer caso, é
um sintoma de mudanças estruturais, mudanças que se farão cada vez mais
evidentes à medida que o novo século se desenrolar. O mundo como o conhecemos
desde o final da Segunda Guerra Mundial, com os longos anos da descolonização,
a Guerra Fria e a derrota do comunismo, esse mundo acabou.
Outro longo e mortal jogo começou. O principal choque da
primeira metade do século XXI não será entre religiões ou civilizações. Será
entre a democracia liberal e o capitalismo neoliberal, entre o governo das
finanças e o governo do povo, entre o humanismo e o niilismo.
O capitalismo e a democracia liberal triunfaram sobre o fascismo
em 1945 e sobre o comunismo no começo dos anos 1990 com a queda da União
Soviética. Com a dissolução da União Soviética e o advento da globalização,
seus destinos foram desenredados. A crescente bifurcação entre a democracia e o
capital é a nova ameaça para a civilização.
Apoiado pelo poder tecnológico e militar, o capital financeiro
conseguiu sua hegemonia sobre o mundo mediante a anexação do núcleo dos desejos
humanos e, no processo, transformando-se ele mesmo na primeira teologia secular
global. Combinando os atributos de uma tecnologia e uma religião, ela se
baseava em dogmas inquestionáveis que as formas modernas de capitalismo
compartilharam relutantemente com a democracia desde o período do pós-guerra –
a liberdade individual, a competição no mercado e a regra da mercadoria e da
propriedade, o culto à ciência, à tecnologia e à razão.
Cada um destes artigos de fé está sob ameaça. Em seu núcleo, a
democracia liberal não é compatível com a lógica interna do capitalismo
financeiro. É provável que o choque entre estas duas ideias e princípios seja o
acontecimento mais significativo da paisagem política da primeira metade do
século XXI, uma paisagem formada menos pela regra da razão do que pela
liberação geral de paixões, emoções e afetos.
Nesta nova paisagem, o conhecimento será definido como
conhecimento para o mercado. O próprio mercado será re-imaginado como o
mecanismo principal para a validação da verdade. Como os mercados estão se
transformam cada vez mais em estruturas e tecnologias algorítmicas, o único
conhecimento útil será algorítmico. Em vez de pessoas com corpo, história e
carne, inferências estatísticas serão tudo o que conta. As estatísticas e
outros dados importantes serão derivados principalmente da computação. Como
resultado da confusão de conhecimento, tecnologia e mercados, o desprezo se
estenderá a qualquer pessoa que não tiver nada para vender.
A noção humanística e iluminista do sujeito racional capaz de
deliberação e escolha será substituída pela do consumidor conscientemente
deliberante e eleitor. Já em construção, um novo tipo de vontade humana
triunfará. Este não será o indivíduo liberal que, não faz muito tempo,
acreditamos que poderia ser o tema da democracia. O novo ser humano será
constituído através e dentro das tecnologias digitais e dos meios
computacionais.
A era computacional – a era do Facebook, Instagram, Twitter – é
dominada pela ideia de que há quadros negros limpos no inconsciente. As formas
dos novos meios não só levantaram a tampa que as eras culturais anteriores
colocaram sobre o inconsciente, mas se converteram nas novas infraestruturas do
inconsciente. Ontem, a sociabilidade humana consistia em manter os limites
sobre o inconsciente. Pois produzir o social significava exercer vigilância
sobre nós mesmos, ou delegar a autoridades específicas o direito de fazer
cumprir tal vigilância. A isto se chamava de repressão.
A principal função da repressão era estabelecer as condições
para a sublimação. Nem todos os desejos podem ser realizados. Nem tudo pode ser
dito ou feito. A capacidade de limitar-se a si mesmo era a essência da própria
liberdade e da liberdade de todos. Em parte graças às formas dos novos meios e
à era pós-repressiva que desencadearam, o inconsciente pode agora vagar
livremente. A sublimação já não é mais necessária. A linguagem se deslocou. O
conteúdo está na forma e a forma está além, ou excedendo o conteúdo. Agora
somos levados a acreditar que a mediação já não é necessária.
Isso explica a crescente posição anti-humanista que agora anda
de mãos dadas com um desprezo geral pela democracia. Chamar esta fase da nossa
história de fascista poderia ser enganoso, a menos que por fascismo estejamos
nos referindo à normalização de um estado social da guerra. Tal estado seria em
si mesmo um paradoxo, pois, em todo caso, a guerra leva à dissolução do social.
No entanto, sob as condições do capitalismo neoliberal, a política se
converterá em uma guerra mal sublimada. Esta será uma guerra de classe que nega
sua própria natureza: uma guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as
minorias, uma guerra de gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra
os muçulmanos, uma guerra contra os deficientes.
O capitalismo neoliberal deixou em sua esteira uma multidão de
sujeitos destruídos, muitos dos quais estão profundamente convencidos de que
seu futuro imediato será uma exposição contínua à violência e à ameaça
existencial. Eles anseiam genuinamente um retorno a certo sentimento de certeza
– o sagrado, a hierarquia, a religião e a tradição. Eles acreditam que as
nações se transformaram em algo como pântanos que necessitam ser drenados e que
o mundo tal como é deve ser levado ao fim. Para que isto aconteça, tudo deve
ser limpo. Eles estão convencidos de que só podem se salvar em uma luta
violenta para restaurar sua masculinidade, cuja perda atribuem aos mais fracos
dentre eles, aos fracos em que não querem se transformar.
Neste contexto, os empreendedores políticos de maior sucesso
serão aqueles que falarem de maneira convincente aos perdedores, aos homens e
mulheres destruídos pela globalização e pelas suas identidades arruinadas.
A política se converterá na luta de rua e a razão não importará.
Nem os fatos. A política voltará a ser um assunto de sobrevivência brutal em um
ambiente ultracompetitivo.
Sob tais condições, o futuro da política de massas de esquerda,
progressista e orientada para o futuro, é muito incerto. Em um mundo centrado
na objetivação de todos e de todo ser vivo em nome do lucro, a eliminação da
política pelo capital é a ameaça real. A transformação da política em negócio
coloca o risco da eliminação da própria possibilidade da política.
Se a civilização pode dar lugar a alguma forma de vida política,
este é o problema do século XXI.
Fonte: Revista IHU On-line