Por: Revista Prosa Verso e Arte 07/19/2017
Ensaios póstumos do pensador analisam a busca
da utopia em um passado idealizado
– por Antonio Pita – El País/Madri
Você já reparou que os filmes e romances de
ficção científica são classificados com uma frequência cada vez maior nas
seções de cinema de terror e de literatura gótica, ou seja, em um futuro
tenebroso no qual ninguém gostaria de viver? Pode parecer algo irrelevante, mas
para Zygmunt Bauman, um dos pensadores mais influentes do século XX, é o
reflexo de que começamos a buscar a utopia em um passado idealizado, uma vez
que o futuro deixou de ser sinônimo de esperança e progresso para se tornar o
lugar sobre o qual projetamos nossas apreensões. O sociólogo e filósofo polonês
deixou desenvolvida essa tese da retrotopia (a busca da utopia no passado) em
dois escritos, os primeiros traduzidos ao espanhol depois de sua morte, em
janeiro, aos 91 anos. São o ensaio Retrotopia (Retrotopia) e o texto Symptoms
in Search of an Object and a Name (Sintomas em Busca de um Objeto e de um Nome)
parte de uma obra coletiva sobre o estado da democracia, The Big Regression (O
Grande Retrocesso), que chega às livrarias espanholas no dia 27 e reúne nomes
como Slavoj Žižek, Nancy Fraser e Eva Illouz.
“O futuro é, em princípio ao menos, moldável,
mas o passado é sólido, maciço e inapelavelmente fixo. No entanto, na prática
da política da memória futuro e passado intercambiaram suas respectivas
atitudes”, aponta. Bauman fala sobre
medos como o de perder o emprego, do multiculturalismo, de que nossos filhos
herdem uma vida precária, de que nossas habilidades de trabalho se tornem
irrelevantes porque os robôs saberão fazer –melhor e mais barato– o nosso
trabalho. Em suma, medo porque tudo o que era sólido agora é “líquido”, usando
o adjetivo que popularizou Bauman.
“Existe uma brecha crescente entre o que
precisa ser feito e o que pode ser feito, o que realmente importa e o que conta
para aqueles que fazem e desfazem, entre o que acontece e o que é desejável”, aponta. Bauman argumenta que voltamos à
tribo, ao seio materno, ao mundo cruel descrito por Hobbes para
justificar a necessidade do Leviatã (o Estado forte para evitar a guerra de
todos contra todos) e a desigualdade mais gritante, na qual “o ‘outro’ é uma
ameaça” e “a solidariedade parece uma espécie de armadilha traiçoeira
ao ingênuo, ao incrédulo, ao tolo e ao frívolo”. “O objetivo já não
é conseguir uma sociedade melhor, pois melhorá-la é uma esperança vã sob todos
os efeitos, mas melhorar a própria posição individual dentro dessa sociedade
tão essencial e definitivamente incorrigível”, lamenta. A filósofa Marina
Garcés, professora da Universidade de Zaragoza, elogia a capacidade de Bauman
para “assumir o fim do pensamento utópico e suas consequências”. “Ele
não pretende nos enganar com novas e falsas promessas de futuro, mas tenta
entender o que está acontecendo depois da era das revoluções e suas várias
derrotas”, afirma.
Pensador de inspiração marxista, Bauman cita
algumas vezes o filósofo alemão em Retrotopia, ataca o chamariz da sociedade de
consumo de massa e não renuncia à análise científica das contradições do
capitalismo, mas também “recorre a outras ferramentas” para oferecer “uma visão
em grande-angular”, explica o catedrático de filosofia da Universidade de
Barcelona e deputado socialista Manuel Cruz. “A ideia de que a
materialização da utopia foi perdida é um zumbido no pensamento do século XX”,
mas “na obra de Bauman há um esforço para reconhecer o novo que traz ‘o
novo’”. “Os pensadores que agora consideramos que representaram uma
revolução foram recebidos com um ‘isso nós já sabíamos’. É preciso tempo para
que a sociedade entenda o que tinham de novidade”, comenta.
Nos dois textos póstumos o filósofo apresenta
um desafio e uma –abstrata e pouco desenvolvida– resposta. O desafio é
“conceber –pela primeira vez na história humana– uma integração sem separação
alguma à qual recorrer”. Até agora, argumenta, o que funcionou é a divisão
entre ‘nós’ e ‘eles’, e continuamos empenhados a buscar um ‘eles’, “de
preferência no estrangeiro de sempre, inconfundível e irremediavelmente hostil,
sempre útil para reforçar identidades, traçar fronteiras e construir muros”.
No entanto, essa dicotomia histórica “não se encaixa” com a “emergente
‘situação cosmopolita’”. Qual é, então, a única resposta possível? “A
capacidade para dialogar”, conclui Bauman depois de citar de forma elogiosa o
papa Francisco.
Garcés se diz “surpresa” tanto pela chamada ao
diálogo (“de quem com quem?”, pergunta) quanto pela invocação da figura do
Papa. “Acredito que é um pedido de socorro” de um Bauman que “tenta
desenhar um cenário para a palavra compartilhada” porque sabe
que “já não há soluções parciais para nenhum dos problemas do nosso
tempo”. É a advertência final do pensador polonês: “Devemos nos preparar
para um longo período que será marcado por mais perguntas do que respostas e
por mais problemas do que soluções. (…) Estamos (mais do que nunca antes na
história) em uma situação de verdadeiro dilema: ou damos as mãos ou nos
juntamos ao cortejo fúnebre do nosso próprio enterro em uma mesma e colossal
vala comum”.
ANTIDEPRESSIVOS E CEGUEIRA
A partir de seu posto de professor em Leeds (Inglaterra), Bauman teria podido
lançar um olhar complacente ao presente, depois de ter vivido a invasão nazista
de seu país, a Segunda Guerra Mundial na frente de batalha, o antissemitismo e
os expurgos na Polônia comunista. Em vez disso, sua análise em Retrotopia é
taxativa: “É praticamente inevitável que respiremos uma atmosfera de
desassossego, confusão e ansiedade e a vida seja qualquer coisa menos
agradável, reconfortante e gratificante”. Nesse contexto, os cada vez mais
consumidos tranquilizantes e antidepressivos proporcionam alívio, mas também
“contribuem para cegar os próprios seres humanos em relação à natureza real do
seu padecimento em vez de ajudar a erradicar as raízes do problema”.
Fonte: El País Brasil