sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

Educação Política :Olhar o mundo pela ótica do oprimido é fundamental na educação política

 

Frei Betto

Educação e Território: Entrevista por Ingrid Matuok

https://educacaoeterritorio.org.br/reportagens/frei-betto-olhar-o-mundo-pela-otica-do-oprimido-e-fundamental-na-educacao-politica/

A concepção de uma formação integral compreende o sujeito como alguém capaz de aprender ao longo de toda a vida, com várias pessoas e em todos os espaços, sobre os conhecimentos produzidos pela humanidade, sobre si, o outro e as relações que se estabelecem, e sobre as várias realidades e modos de viver que coexistem no mundo. Nessa perspectiva, a educação política não pode ficar de fora.  

Para Frei Betto, escritor vencedor de dois prêmios Jabuti, assessor de movimentos populares e autor de “Por uma Educação Crítica e Participativa(Editora Rocco), essa formação é essencial porque “a política não é tudo, mas está em tudo”.

O ativista explica que, do momento em que nascemos até nossa morte, somos atravessados pela política do país, que constitui a base das possibilidades da qualidade de vida que a maioria da população pode viver.

À minoria detentora de riqueza, está reservado também o poder de influenciar a política que atinge a todos, mas que parte do interesse e do benefício a esses poucos. O papel da educação política é, portanto, ensinar a população a olhar para as causas dos problemas sociais, mais do que para seus efeitos ou como resolvê-los, a fim de contribuir para desmontar essa lógica posta e promover a equidade na sociedade.

“Criar uma sociedade com consciência crítica, politicamente participativa, verdadeiramente democrática, exige trabalho de educação política, ou seja, exige método Paulo Freire de educação popular”, disse Frei Betto em entrevista ao Educação e Território. Confira:

Educação e Território: Recentemente, em um artigo para a Folha de São Paulo, o senhor argumentou que ao lado do combate à fome, da proteção socioambiental e da redução da desigualdade social, é preciso incluir a educação política, cidadã e participativa. Por que essas dimensões são interdependentes? De que maneira uma educação política pode contribuir para o sucesso dos demais direitos?

Frei Betto: Os últimos quatro anos e agora estes atos golpistas, terroristas, em Brasília, comprovam que há uma deseducação política que vem ocorrendo há séculos, promovida pela elite brasileira, durante 24 horas ao dia, junto aos grandes veículos de comunicação, o entretenimento.

Todo esse processo se trata de adequação das pessoas ao sistema capitalista, à sociedade consumista. Criar uma sociedade com consciência crítica, politicamente participativa, verdadeiramente democrática, exige trabalho de educação política, ou seja, exige método Paulo Freire de educação popular.

É fundamental que o governo consiga se valer da enorme capilaridade que ele tem junto a todo o conjunto da população brasileira para promover essa formação.

São cerca de 400 mil agentes comunitários de Saúde, por exemplo. Imagina se essas pessoas fossem capacitadas para além de realizar o atendimento protocolar e assistencial, e fossem preparadas para elucidar as causas da doença, o que tem a ver com a pobreza, por que existe pobreza e miséria, ou seja, o pensamento dialético, que é o pensamento libertador, vai às causas, enquanto o analógico, que é o capitalista, só fala dos efeitos. Fala da fome e do que vamos fazer para resolver isso, não do que causou.

Durante a pandemia, o Jornal Nacional fez um quadro que mostrava empresas doando cestas básicas, mas não levantava a causa: Por que é preciso distribuir cestas básicas? Por que há tamanha desigualdade social?

Esse é o trabalho de educação política que a máquina do governo pode fazer desde a escola, porque é o Ministério da Educação (MEC) que indica os livros didáticos, até os agentes do IBGE que vão levantar qual é o número da população brasileira e como ela vive.

E&T: Para além da garantia de direitos, uma educação política, cidadã e participativa também é fundamental para fortalecer a democracia, como preconizava Anísio Teixeira. Como esse processo acontece e qual sua relevância para o Brasil de hoje?

FB: Ele acontece na medida em que a escola se inspira no método Paulo Freire. A escola tem a obrigação de comemorar as efemérides brasileiras, como o Dia do Indígena, Dia do Negro, Dia da Mulher. Imagina isso dentro de uma dimensão do feminicídio, do racismo, da questão da demarcação das terras indígenas, a preservação ambiental e por aí vai.

Acabo de publicar um livro chamado “O Estranho Dia de Zacarias” em que trabalho a questão de que no Brasil não houve descobrimento, houve invasão, em uma linguagem que a criança entenda. Precisa inverter toda essa ótica elitista que é adaptada, porque como dizia o velho Marx, a ideologia de uma sociedade tende a ser a ideologia da classe que domina essa sociedade e evidentemente que somos dominados por uma elite capitalista que quer naturalizar a desigualdade social e sempre perenizar a acumulação privada da riqueza. É contra isso que temos que remar.

Deveria ser uma atividade transversal em todos os ministérios cuidar dessa educação política. Vamos ter em breve o 31 de março, que [o ex-presidente] Jair Bolsonaro comemorava isso como reforço da democracia, como um simples movimento político que veio salvar o Brasil do comunismo. Temos que revelar a verdadeira face do 31 de março: um golpe que torturou, assassinou, fez desaparecer e obrigou a exilar milhões de brasileiros. Olhar o mundo pela ótica do oprimido é fundamental na educação política.

Há um setor prioritário para realizar esse trabalho, que é com as classes populares, porque elas são mais sensíveis, vivem na pele as consequências da opressão. É mais difícil trabalhar com a elite e a classe média que cobiça passar a ser milionária, sem se dar conta de que está sempre tentando subir uma rampa ensaboada, porque o processo capitalista é de seletividade, é muito dinheiro nas mãos de poucos. Mas essa ilusão faz com que muita gente ainda abrace o capitalismo como não só o melhor sistema, mas como sinônimo de democracia, o que é uma aberração.

E&T: É importante definir o que é educação política, uma vez que alguns setores da sociedade se apropriaram do conceito e dizem tratar-se de “doutrinação” e defendem uma escola sem partido. Assim, o que caracteriza um bom trabalho de educação política, cidadã e participativa?

FB: Não existe neutralidade política, não existe nenhuma escola politicamente neutra, e nenhuma pessoa neutra. A pessoa pode se julgar neutra, mas ela não é, porque em todas as nossas escolhas legitimamos ou questionamos o sistema em que vivemos.

A política não é tudo, mas está em tudo, desde a qualidade do café da manhã que tomamos, à possibilidade ou não de tirar férias, ter ou não uma aposentadoria razoável, segura, tudo isso depende da política.

Nós, brasileiros, somos todos “ministeriados” do momento em que nascemos até morrermos. O Ministério da Justiça tem uma cópia do nosso atestado de nascimento e nosso atestado de óbito também estará lá. Passamos no Ministério da Saúde com as vacinas na infância, passamos pelo Ministério da Educação com a escolarização, passamos pelo Ministério do Trabalho com a Carteira de Trabalho, passamos pelo Ministério da Previdência com a aposentadoria. Isso significa que a qualidade do nosso existir depende da política do nosso país.

A escola primeiro deve se assumir como um núcleo político, não partidário – a escola não pode ser partidária. Durante o período eleitoral, por exemplo, a escola pública deveria chamar para um debate todos os candidatos de todos os partidos. Se algum deles se recusar a comparecer, que seja dito na assembleia escolar que o candidato de tal partido foi convidado, mas não deu satisfações ou não vai poderá vir, para que ninguém acuse a escola de partidarismo.

Isso enriquece muito, porque faz um debate que vai significar uma grande aula de democracia, de diversidade de opiniões, e isso é muito importante na educação dos alunos.

Creio que a escola tem que assumir seu caráter político, não pode fugir disso, e que precisamos varrer todo esse ranço elitista, versão do opressor, dos nossos materiais didáticos e da cultura brasileira.

E&T: Por que é papel das escolas promover essa educação política?

FB: Mais importante do que instruir é formar cidadãos e pessoas felizes. A escola tem esse papel junto com a família de formar pessoas felizes e com consciência de cidadania.

A escola pode muito. Ela pode, por exemplo, fazer um enlace com o assentamento ou acampamento de Sem Terra mais próximo, de tal maneira que os alunos conheçam a questão fundiária no Brasil, o desamparo dos Sem Terra, por que há latifúndio no país, por que há gente padecendo em beira de estrada. Pode articular-se à favela mais próxima e estudar por que existe a favela, por que vivem em situação tão precária, por que falta saneamento básico. A escola não pode ficar de costas para o contexto social em que se insere, pelo contrário, ela tem que estar de portas e corações abertos.

Quando estive à frente do programa Fome Zero, criei um projeto que chamava Escolas Irmãs, em que conectávamos uma escola de Brasília, de classe média, com uma escola indígena na Amazônia. Os alunos trocavam cartas e nas férias os alunos de lá vinham aqui e os daqui iam lá.

O fato de uma família de classe média de Brasília hospedar durante dez dias um grupo de jovens indígenas e aquela nação indígena receber um grupo de jovens de classe média de Brasília… imagina a cabeça das pessoas o que muda. Era uma experiência muito rica que foi paralisada, infelizmente, porque não se deu suficiente apoio e importância.

No Fome Zero eu também visitava muitas escolas e perguntava como é a merenda. Em geral, era precária, mas o pior é que em muitas escolas há lanchonetes que vendem produtos com muita gordura saturada e açúcar, então não há trabalho de educação nutricional.

Uma criança que planta uma alface na horta da escola, no dia em que ela colhe, a autoestima dela bate lá no teto e acabou o preconceito à verdura. Ela passa a saborear, se sente orgulhosa daquilo. Isso é pedagogia e é possível, mas é preciso ter criatividade e ousadia.

E&T: Para os professores e gestores que medo de perseguição  famílias e da comunidade, ou que não sabem por onde começar, alguma orientação?

FB: Eles devem se manter unidos. É muito importante os professores e professoras valorizarem seus sindicatos e torná-los combativos, porque a união faz a força. É muito difícil uma pessoa sozinha enfrentar a resistência de famílias muito conservadoras e até neofascistas, então precisa se unir, formar grupos, sobretudo buscar aliados entre os pais dos alunos.

Além disso, toda escola deveria ter um projeto estratégico pedagógico. Assim, quando os responsáveis forem matricular a criança na escola, a direção deixa claro que aqui formamos a cidadania, explicamos as causas da pobreza, traduzimos em miúdos por que há desigualdade social. Aqui se fala de fome, de guerra e imperialismo. Se quiserem outra escola, que não promova a cidadania, mas o consumo, eles têm o direito de procurar outra unidade.

domingo, 15 de janeiro de 2023

A sociabilidade canibal: Considerações sobre o novo livro de Nancy Fraser

 Por ELEUTÉRIO F. S. PRADO*

https://aterraeredonda.com.br/a-sociabilidade-canibal/

 

Não se está a falar das sociedades que se costuma chamar de primitivas. Não, de modo algum. Está-se a falar do capitalismo. “Capitalism is back” – diz a autora que cunhou o termo “cannibal capitalism”, tendo por referência os Estados Unidos da América do Norte.


Karl Marx, como se sabe, empregou a metáfora do “vampiro” para caracterizar a relação de capital, ou seja, o capital, porque ele suga o mais-valor dos trabalhadores, afirmando, ademais, que vem a ser um sujeito insaciável. Anselm Jappe denotou o capitalismo como uma sociedade autofágica para ressaltar que, se parece racional e é assim apreendido pelos economistas apologéticos, tende na verdade à desmedida e à autodestruição. Nancy Fraser, num livro recém-publicado, diz que o capitalismo é canibal pois ele, que atravessa agora o seu ocaso, está devorando a democracia, os cuidados reprodutivos, assim como as pessoas e o próprio planeta.


Em Cannibal capitalism (Verso, 2022), Nancy Fraser quer descobrir as fontes sociais desse destino infausto e aparentemente inesperado. Busca, assim, encontrar uma melhor caracterização do capitalismo contemporâneo que assoma como gerador de insegurança e desesperança, pois mantém e agrava uma coleção de impasses humanitários: dívidas impagáveis, empregos extenuantes, trabalho precário, violência racial e de gênero, pandemias assassinas, extremos climáticos etc., negando na prática o que fora prometido há pelos menos dois séculos e meio por meio do progresso e do iluminismo. Capitalismo canibal – diz a professora e filósofa da New School for Social Research de Nova York – “é o meu termo para designar um sistema social que nos trouxe a esse ponto”.


Se esse termo fora empregado pelo colonialismo predatório ocidental para designar os negros africanos e, assim, para menosprezar as suas sociedades e culturas, agora ele se afigura ironicamente adequado para se referir à sociabilidade especificamente capitalista que prosperou de modo extraordinário no próprio Ocidente. Sim, trata-se de um deboche. Não se consome aí carne humana, mas apenas em sentido literal. Eis que está ficando patente até para os positivistas – e mesmo (de modo implícito) para os negacionistas – que esse sistema social, para continuar subsistindo, canibaliza e tem de canibalizar (no sentido de predar) cada vez mais as famílias, as comunidades, os ecossistemas, os bens públicos etc.


Em particular, sem qualquer novidade histórica, o evolver desabalado do sistema do capital corrompe – agora, de maneira decisiva – os comuns mais importantes que permitem a existência da humanidade. Para apreender essa dimensão, Fraser emprega também a metáfora do euroboros, a serpente que abocanha a própria cauda. Segundo ela, trata-se de uma “imagem adequada, pois este vem a ser um sistema que está programado para devorar as bases naturais, sociais e políticas de sua própria existência” – e, assim, da existência humana.


Para Nancy Fraser– e essa é a sua contribuição original –, é preciso abandonar de modo radical o economicismo. Eis que, para ela, não basta afirmar que a estrutura econômica determina apenas em última instância a superestrutura; não é suficiente dizer que essa estrutura apenas condiciona o modo de ser das formas institucionais, sociais e culturais constitutivas da sociedade e que essas formas advêm por meio de muitos graus de liberdade. Diferentemente, ela julga necessário reformular o próprio conceito de capitalismo.


Ao invés de tomá-lo como se referindo apenas ao sistema econômico, dever-se-ia considerar que apreende o sistema social de uma maneira bem abrangente: “neste livro” – diz – “capitalismo não se refere a um tipo de economia, mas a um tipo de sociedade” em que não apenas se explora os trabalhadores, mas também em que se pratica uma apropriação dos recursos em geral, sejam estes da natureza sejam eles das pessoas não agenciadas diretamente na produção e na circulação mercantil.


O capitalismo, sim, está baseado na propriedade privada dos meios de produção e nas transações por meio dos mercados e, assim, no trabalho assalariado e na geração contínua de mais e mais, mais-valor. Eis que o circuito M – D – M, que forma a aparência do modo de produção, é apenas uma condição subordinada do circuito D – M – D’, que constitui a sua essência.


Mas esse momento dito econômico não poderia existir sem o suporte de certos momentos não econômicos, tais como a expropriação das forças e materiais da natureza. Mas o capital não se aproveita apenas das dádivas do planeta Terra; ele também se vale dos cuidados, especialmente, das mulheres com os filhos, com a casa e com os velhos, dos bens públicos providos sempre pelo Estado e pelos seus usuários, da energia, da amizade, do amor e da criatividade social em geral. Tudo isso para ele é gratuito, mesmo que o custo para outros seja imenso.


Karl Marx, no Manifesto Comunista, viu o capitalismo como uma fonte de progresso disruptivo diante do qual até mesmo o sólido se esfumaria no ar. Mas essa era uma perspectiva que apenas podia ser sustentada ainda em meados do século XIX, diante das transformações extraordinárias da primeira revolução industrial, iniciada na segunda metade do século XVIII. E essa promessa foi paga de certo modo.


No século XXI, entretanto, o progresso mesmo das forças produtivas se inverteu já numa ameaça constante de regressão e de destruição, em que as crises não se afiguram mais como episódios auto superáveis da própria acumulação de capital, do crescimento econômico rumo ao céu como veem os economistas do sistema. Pois, o que se tem agora é uma crise orgânica do capitalismo que se manifesta de modo múltiplo, dando origem às mega ameaças.


“O que se enfrenta” – afirma Nancy Fraser nesse sentido – “em virtude das décadas de financeirização, não é ‘somente’ um surto de enorme desigualdade, baixos salários, junto com trabalho precário; não se tem ‘meramente’ um fracasso no cuidado e, assim, na reprodução social; não se está ‘simplesmente’ na presença de uma crise de imigração e de uma exasperação da violência racial; não se trata ‘apenas’ de uma crise ecológica em que o aquecimento global produz novas pragas letais; não se enfrenta ‘só’ uma crise política associada ao militarismo, ao governo de homens fortes e às ideologias de extrema direita; não, tem-se algo pior: uma crise geral da ordem social como um todo em que todas essas calamidades convergem, exacerbando umas às outras, enfim, ameaçando engolir tudo”.


A síntese que esse último parágrafo apresenta se afigura de extrema pertinência porque apreende com boa precisão a situação histórica tendencial do século XXI: veja-se, à propósito, que uma crise múltipla tal como está aí enunciada é bem mais do que uma alteração súbita num curso de evolução que pode ser de piora ou até de melhora. Trata-se de um quadro que aponta para uma eventual falência da civilização humana em algum momento desse século decisivo. No entanto – é preciso ressaltar –, isso tudo não adveio “em virtude das décadas de financeirização”.


Eis, para começar, que a financeirização é um termo que parece assinalar uma anomalia que acometeu o sistema econômico que de outro modo permaneceria saudável. Na verdade, como se tem apontado em outros textos, a dominância financeira observada, que perdura já por cinco décadas no processo da globalização – agora em movimento de retração –, indica que ocorreu já aquilo que Marx previra no Livro III de O capital como tendência, ou seja, a difusão da socialização do capital, isto é, da forma coletiva de propriedade do capital.


É assim – disse ele em sua obra maior – que se dá “a supra assunção do capital como propriedade privada dentro dos limites do próprio modo de produção” capitalista. Se a propriedade privada dos meios de produção ainda predomina entre as pequenas e médias empresas, a propriedade corporativa é plenamente dominante entre as grandes empresas monopolistas, as quais respondem pelo grosso do capital investido na produção e no comércio de mercadorias (bens ou serviços destinados aos mercados). Isso significa que essas empresas, ainda que comandadas por dirigentes industriais e comerciais, estão de fato subordinadas ao capital financeiro que existe agora, principalmente, na forma de fundos fechados e abertos de investimento.


Note-se que não se trata apenas de supervisão do capital industrial pelo capital bancário e financeiro, de exame da lucratividade das empresas industriais que precisam de financiamento, algo que vem de longe na história do capitalismo. Não, é bem mais do que isso. Atualmente o segundo intervém no primeiro para forçá-lo a se esforçar sempre mais para elevar a taxa de lucro, algo que vem sendo chamado “gerência do ponto de vista do acionista”. E isso ocorre porque o capital industrial perdeu já grande parte de um dinamismo próprio que tinha para elevar o mais-valor relativo. É sob essa pressão que as empresas industriais promoveram e promovem a terceirização, a precarização da força de trabalho, a desqualificação dos produtos sob aparências e embalagens vistosas etc.


No primeiro capítulo, Nancy Fraser procura atualizar a crítica do capitalismo que, segundo ela, esteve em recessão desde o fim da União Soviética. Retoma o seu conceito a partir de Marx para redefini-lo como tal: eis que essa “totalidade em processo” deixou já de ser progressiva e se tornou regressiva; agora ela destrói sistematicamente as suas próprias condições de sobrevivência. Daí que não possa mais ser pensado apenas como sistema econômico, mas tem de ser compreendido como um sistema social total; daí que não possa mais ser visto como fonte ambígua de civilização e barbárie, mas apenas e tão somente como um monstro canibal.


Se O capital é uma obra inacabada – Marx, por exemplo, não chegou a desenvolver o conceito de Estado –, para ela, ele falhou em não reconhecer as condições sociais-ambientais de sustentação do próprio sistema econômico. Daí, que ele não tenha tematizado as questões de gênero, raça, ecologia, poder político como “eixos que estruturam a desigualdade nas sociedades capitalistas”. O segundo capítulo do livro é dedicado inteiramente a mostrar “porque o capitalismo é estruturalmente racista”. O seu argumento é o de que ele não se baseia só na exploração dos trabalhadores, mas precisa expropriar também as populações não-brancas em geral seja no próprio centro seja na periferia.


No terceiro capítulo, Nancy Fraser se dedica a explicar por que as crises não ocorrem somente na esfera econômica, espraiando-se daí para o resto da sociedade apenas por meio de efeitos monetários. Eis que a própria esfera da reprodução social é também lugar em que ocorrem crises específicas, as quais também devem ser chamadas de capitalistas. “O sistema social” – segundo ela – “está minando as energias necessárias para manter as famílias, suprir a casa, sustentar as comunidades, alimentar as amizades, construir redes políticas e forjar solidariedade”. O cuidar dos outros, argumenta, são atividades indispensáveis à manutenção sociedade, mas elas estão sendo canibalizadas sistematicamente por um capitalismo que só se move pelo lucro.


A “ecopolítica” e sua urgência é repensada no quarto capítulo. Admitindo que a questão climática está agora na agenda de muitos atores políticos da esquerda, do centro e até mesmo da direita, assumindo que o negacionismo está em regressão ainda que lenta, a autora aqui resenhada argumenta em favor de uma perspectiva “ecopolítica” que seja “trans ambiental” e anticapitalista. A ilusão, mantida por parte do movimento ambientalista, de que é possível superar a crise ecológica, mantendo ainda o capitalismo, precisa ser desfigurada. Ademais, esse movimento – segundo ela – precisa abdicar do seu unilateralismo e se inserir no bloco contra hegemônico que lutar pela superação do capitalismo. Pois, é apenas salvando a humanidade que se vai salvar o planeta.


A consciência de que se está enfrentado atualmente uma grave crise da democracia, ou melhor, da promessa democrática, fornece a temática do capítulo cinco. A ideia de que é preciso meramente reformar as instituições políticas para dar melhor suporte ao “governo do povo”, “fica presa – segundo ela – a um erro que pode ser chamado de politicismo, em analogia com o que é denominado de economicismo”. Não é mais possível aprofundar a democracia no capitalismo; a democracia liberal está em recessão continuada. O título dado ao capítulo elucida a sua intenção de abalar a crença na forma de governo realmente existente; Fraser faz uso de um exagero retórico para construí-lo: “Trucidando a democracia: porque a crise política é a carne vermelha do capital”.


Finalmente, no capítulo sexto, essa autora fornece o que considera um “alimento [sadio] para o pensamento”. Eis que está engajada numa luta de Elsa para salvar o sujeito pressuposto do sujeito automático historicamente posto, ou seja, salvar o ser humano do ser devorador que forma sistema e está centrado na relação de capital. Por isso, discute aí, então, o significado a ser dado ao socialismo no século XXI. “Socialism, too, is back” – she says; “but what exactly do we mean by socialism?” Assim como propôs já na introdução uma ampliação do conceito de capitalismo, ela vai propor também neste último tópico do seu livro uma ampliação do conceito de socialismo.


O socialismo, segundo ela, não pode ser visto apenas como um sistema econômico alternativo. Em particular, não pode ser encarado nem como uma nova versão do socialismo realmente inexistente na antiga União Soviética ou na China atual nem com uma versão otimizada da social-democracia. Tudo isso precisa ser suplantado. Com esse objetivo, assim como expandiu o conceito de capitalismo para nele incluir a reprodução social, Fraser faz o mesmo com o conceito de pós-capitalismo. “O socialismo para o novo tempo” – explica – “deve superar não apenas a exploração do trabalho assalariado, mas também a expropriação de que sofre o trabalho não pago nas atividades do cuidado, os comuns públicos, os indivíduos tomados como de raça inferior e a própria natureza”.


A crítica dos “pseudossocialismos” já foi e continua a ser feita. O repesar do projeto socialista, para além das falhas que agora se pode apontar nos projetos herdados, ainda está em dívida principalmente com as gerações futuras. E ele – aponta Nancy Fraser – não pode também continuar na condição de ser apenas um sonho utópico. Não, ele deve ser bem realista. Deve, outrossim, “encapsular possibilidades reais historicamente emergentes” que estão aí coexistindo no próprio modo de sociedade hoje existente: eis que há, segundo ela, “potenciais para a liberdade humana, bem-estar e felicidade, os quais foram colocados pelo capitalismo diante dos atuais humanos, mas que ele próprio é incapaz de realizar”.


Nesse momento é preciso ver que a concorrência de capitais por mercados forma um sistema de coordenação que, para o bem ou para o mal, funciona globalmente. Se um outro modo de produção vai substituir o capitalismo – e essa mudança é, sim, necessária –, um outro sistema econômico complexo precisa ser posto. E ele não pode mais depender do dinheiro, o nervus rerum da complexidade capitalista. Precisa, no entanto, resolver o problema da produção descentralizada de milhões de valores de uso diferentes e da repartição do produto social gerado para bilhões de famílias uma forma eficiente e eficaz. Há atualmente importantes contribuições teóricas nesse sentido, mas elas não são mencionadas por Nancy Fraser.


De qualquer modo, arriscando aqui uma síntese final, dir-se-á que o socialismo para o século XXI não deve ser pensado apenas como formado por “trabalhadores livremente associados” segundo a fórmula de Marx no primeiro capítulo de O capital, mas como a sociedade constituída por “cidadãos livremente associados” numa democracia substantiva, sem qualquer discriminação baseada em tipo de atividade, gênero, cor, religião e herança cultural.


*Eleutério F. S. Prado é professor titular e sênior do Departamento de Economia da USP. Autor, entre outros livros, de Da lógica da crítica da economia política (Ed. Lutas Anticapital).