Em livro recém-lançado, Nancy Fraser descreve um sistema que se volta contra as próprias estruturas que o amparavam – família e Estado, por exemplo. Mas ela lembra: é tolo comemorar a crise; só novas relações evitarão colapso civilizatório. Por Nancy Fraser em entrevista a Indigo Olivier para The New Republic. | Tradução: Maurício Ayer. Publicado em Outras Palavras.
Pouco depois dos
Estados Unidos atingirem
a marca de 1 milhão de mortes por covid-19,
a secretária de imprensa de Joe Biden, Karine Jean-Pierre, fez uma observação: “Economicamente, estamos mais fortes do que jamais estivemos
na história”. Do ponto de vista dos negócios, ela não estava errada. Nos
últimos dois anos, os bilionários mais do que dobraram sua riqueza. E a economia cresceu mais rápido do que em décadas.
Ao mesmo tempo, as
taxas de mortalidade aumentaram entre os trabalhadores negros de renda
desproporcionalmente baixa, à medida que as conversas sobre “quão essencial é o
trabalho” que eles realizam arrefeciam. A maioria dos estadunidenses atualmente acredita
que nossa democracia está em “crise” e um número
crescente de pessoas não consegue arcar com necessidades básicas como comida e
aluguel, pois os salários não acompanham a inflação. Em seu novo livro, Cannibal Capitalism: How Our System Is
Devouring Democracy, Care, and the Planet – and What We Can Do About It (Capitalismo
Canibal: como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta
– e o que podemos fazer quanto a isso, em tradução livre), a
pensadora feminista e marxista Nancy Fraser argumenta que o apetite insaciável
do capital por lucro atingiu o auge em 2020, quando décadas de crises política,
social e ambiental convergiram.
Conversei
recentemente com Fraser sobre essas crises e as condições que nos conduziram
até elas. Durante essa entrevista, aqui editada para maior clareza e brevidade,
falamos sobre o trabalho das mulheres, a perda da fé nas instituições, por que
o capitalismo deve ser entendido como uma ordem social e o que pode vir nos
próximos tempos.
Indigo
Olivier – Seu livro se chama Capitalismo canibal. De onde vem esse termo?
Nancy
Fraser – O canibalismo é uma metáfora, com uma história um
tanto problemática. Uma longa história racista, na verdade. O termo é usado
pelos colonialistas europeus para pessoas que eles subjugaram e conquistaram. É
um termo abusivo, quase. Estou tentando dar a volta por cima e dizer que, na
verdade, quem se dedica a acumular capital é que é o verdadeiro canibal.
No
sistema sobre o qual você escreve, o que está sendo canibalizado?
O capitalismo não é
apenas um sistema econômico, no qual os proprietários exploram os trabalhadores
nas fábricas, tudo restrito à economia. Também diz respeito à relação entre o
que pensamos como o âmbito da economia e todo um conjunto de outras
instituições e arenas sociais que, nessa sociedade, são entendidas como
externas à economia, mas que são os suportes necessários para a economia. Então
são as famílias que alimentam, cultivam, socializam e, em geral, reproduzem as
pessoas para a economia.
Os sistemas
políticos são outro suporte necessário: a infraestrutura, os bens públicos, os
sistemas jurídicos, as forças repressivas. Você não tem acumulação de capital
sem tudo isso em segundo plano, sustentando-a e permitindo que ela aconteça.
No entanto, os
próprios processos econômicos que dependem dessas condições de fundo também são
programados para destruí-las. Eles são estruturados para canibalizá-los, para
ajudarem a si mesmos em uma orgia compulsiva: pegar o que quiser sem nenhuma
responsabilidade de reabastecer ou reparar o que pegaram, o que destruíram.
Você
escreveu particularmente sobre como estamos enfrentando uma crise de
“reprodução social” – que as interações que “produzem e sustentam os seres
humanos e os laços sociais” ocorrem sob uma tensão insustentável. Onde vemos
essa crise acontecendo?
Em alguns casos,
falamos de pessoas que não conseguem gerar, por meio de trabalho remunerado,
renda suficiente para sustentar uma família nas condições atuais e que acabam
buscando trabalho informal, correndo de um emprego para outro, vivendo de
vários pequenos trabalhos, e não têm condições de efetivamente realizar o
trabalho de cuidado nas horas que precisariam estar alocadas para isso,
sobretudo quando têm filhos para cuidar, familiares doentes ou deficientes, ou
pais idosos. Ou mesmo para cultivar suas amizades e redes de sociabilidade.
Isso é, em parte,
uma questão de crise de tempo. Um fator importante é que vivemos em um tipo de
capitalismo – uma forma historicamente específica de capitalismo –, essa coisa
chamada neoliberalismo, capitalismo financeirizado, capitalismo globalizado. O
regime atual, ao contrário das formas anteriores, tem se mostrado extremamente
ávido pelo trabalho assalariado das mulheres, inclusive das mulheres com filhos
pequenos. Elas são massivamente recrutadas ou até, pode-se dizer, empurradas para
integrar a força de trabalho. Em alguns casos, felizmente, de modo voluntário.
Em outros, elas esperneiam e berram, tentam resistir. Essas dinâmicas que
aumentaram massivamente a participação feminina na força de trabalho em todo o
mundo coincidem exatamente com outras pressões sobre os Estados em todos os
níveis – nacional, estadual, local – para retirar investimentos na
infraestrutura de assistência pública. Agora se atingiu realmente uma
tempestade perfeita. Estão devorando o tempo e a energia daquelas que são as
principais responsáveis pelo trabalho de cuidado, as mulheres, no preciso
momento em que se removem ou diminuem os apoios públicos na forma de serviços
de bem-estar social.
A isso, adiciona-se
o endividamento. Hipotecas, cartões de crédito estourados, empréstimos para
carros e assim por diante. Mais e mais da renda que poderia ser dedicada à
construção de uma espécie de infraestrutura de atendimento está sendo desviada
para os bancos e a indústria de crédito. Essa é outra forma de canibalização.
Nossas energias – nossas capacidades precisamente para o trabalho de cuidado
que é essencial para a continuidade da sociedade civilizada – estão sendo
canibalizadas.
Parte
da reprodução social é a produção de significado compartilhado dentro de
grupos, comunidades e sociedades. Como você vê a ausência de significado
compartilhado no cenário político dos EUA?
Não quero criar uma
imagem determinista, mas todo sistema social depende do que Antonio Gramsci
chama de “hegemonia”: algum tipo de senso comum compartilhado. Não é
perfeitamente compartilhado. Há muita dissidência, mas a dissidência permanece
marginal. Não se acumula. Muitas coisas podem ser tratadas como coisas que são
moralmente estabelecidas, de modo que não precisam ser discutidas a cada vez.
As coisas discutíveis são debatidas no contexto de um semi-acordo. Essa é a
situação normal. Toda ordem social, especialmente quando baseada em dominação,
injustiça e opressão, funciona mais ou menos por causa desse senso comum
compartilhado.
Quando você tem uma
crise social real do tipo que temos agora, na maioria das vezes é apenas uma
questão de tempo até que o bom senso comece a se desmantelar e se romper. Esse
enquadramento compartilhado, essa reserva compartilhada de acordos subjacentes
sobre a qual pode-se processar o dissenso, isso tende a se desfazer. As pessoas
começam a procurar soluções fora da caixa. Elas perdem a fé nas elites
estabelecidas, nos partidos políticos, nas narrativas e nos enquadramentos.
Começam a procurar outra coisa. Desertam. Isso é uma crise de hegemonia, que é
sempre uma coisa ambígua, porque, por um lado, abre-se a possibilidade de
alternativas potencialmente emancipatórias – e é por isso que estamos vendo
hoje tantos desenvolvimentos interessantes e promissores na esquerda, como a
ascensão da revista Jacobin e todo um ecossistema de mídia. O
crescimento dos [socialistas democráticos nos EUA], o apoio que [Bernie]
Sanders obteve em suas duas campanhas presidenciais. A gente não esperaria isso
se o controle hegemônico estivesse mais ou menos intacto.
Esse é o lado
potencialmente positivo. Mas também existe “MAGA” [lema de
Donald Trump: “Make America great again”, “Devolva aos EUA sua grandeza” (em
tradução livre)], trumpismo, movimentos antivacina, toda essa
meleca de xenofobia. Parte dessa polarização se deve ao surgimento de
narrativas concorrentes, que lutam entre si pelo que será a nova hegemonia. O
que substituirá o senso comum neoliberal de que tudo o que precisamos são
mercados mais livres e uma menor interferência do Estado? São tentativas de
construir alternativas, e o resultado é uma cena selvagem. A esfera pública, o
discurso público – se tornam selvagens, e isso acontece sempre que há uma crise
de hegemonia.
Por
quanto tempo você acha que essa situação pode continuar? Os socialistas há
muito afirmam que o capitalismo está “cavando sua própria cova”, mas, como você
aponta no livro, todas as vezes que vivemos o que parecia ser uma crise
terminal, o capitalismo foi capaz de se reinventar.
A mudança climática
parece possivelmente interpor um desafio, porque parece representar um limite
objetivo. Se deixarmos a temperatura planetária subir mais alguns graus, tudo
muda. A vida torna-se literalmente impossível para um número cada vez maior de
populações. É muito difícil tratar isso com sutileza.
Por outro lado, as
pessoas que vivem esse tipo de crise generalizada realmente não têm como saber.
Não podemos saber ao certo se o resultado será a destruição da vida como a
conhecemos, uma nova forma de capitalismo, seja ela melhor ou pior, uma nova
forma de pós-capitalismo. E não sabemos que tipo de truque os partidários do
capital têm na manga à sua disposição.
Poderíamos ter uma
abordagem quase agnóstica. Poderíamos dizer que precisamos reduzir as emissões
de gases de efeito estufa em X por cento até o ano X.
Poderíamos dizer que temos de fazê-lo de maneira a não jogar injustamente todo
o peso e os custos nas costas de algumas populações apenas, para tornar as
coisas mais fáceis para outras.
E podemos dizer,
para todo mundo que desejar isso, vamos trabalhar juntos. Agora, vamos ver se
isso pode ser feito. E se, quando o fizermos – se isso chegar a acontecer –, a
ordem social que emergir ainda merecerá ser chamada de capitalista ou já será
uma outra coisa. Quando algo deixa de ser capitalista? Quando você tributa os
lucros em 95%? Ainda é capitalismo quando você introduz formas muito mais
robustas e pesadas de planejamento social, mas mantendo alguns direitos de
propriedade privada? Isso ainda é capitalismo?