Desde que comecei a ler notícias de fechamentos de livrarias, algumas
tradicionais, com a Da Vinci, no Centro da cidade do Rio de Janeiro, e outras
pelos bairros, me senti um tanto de “luto”. Parte por conta da Cultura e parte
pela afinidade e o prazer de frequentar livrarias. Meu primeiro emprego com
Carteira, foi em uma livraria de Niterói, que falarei mais à frente, pois
merece um carinho especial.
Primeiro aos fatos. Ser uma livraria está muito longe de ser um espaço
para comercializar livros. Livraria com “L” maiúsculo, não é ser algo como um
supermercado de livros e, atualmente, livros e adjacências (papelaria,
tecnologia,...). Livraria é aquele espaço, um tanto quanto desorganizado, mas
com organização. Um lugar que quando você entra, independente de ser
frequentador, você identifica a lógica da arrumação e pode encontrar o livro
sem ajuda. E melhor, intuitivamente, você se obriga a passear pelo ambiente,
matando a curiosidade até chegar no livro desejado. No meu caso, principalmente
quando entro a “passeio”, quase sempre sou “chamado” por um livro: tô aqui!
Invariavelmente saio com ele em companhia do que queria levar, quando o caso.
Fato é que, livrarias como a Saraiva e Cultura, entre outras, são
espaços impessoais, frios e, com pouquíssimas exceções, com pessoal que não
entende, não gosta e não lê livros, te atendendo. Mas existem resistências.
No meu caso, na segunda metade da década de setenta (Séc. XX), minha
mãe me bota para trabalhar na Livraria Pasárgada, em Niterói. Por três anos consecutivos
trabalhei nos meses de Dezembro e Janeiro e no quarto de Dezembro a Junho do ano seguinte, quando fui estudar
na UCP em Petrópolis.
Livraria de espírito livre, onde sua atmosfera justificava os versos do
Bandeira em sua poesia, “Vou-me embora para Pasárgada”: (...) Vou-me embora pra Pasárgada/ Aqui eu não
sou feliz / Lá a existência é uma aventura / De tal modo inconsequente / Que
Joana a Louca de Espanha / Rainha e falsa demente / Vem a ser contraparente /
Da nora que nunca tive (...).
Anibal Bragança, português de olhos e pele
clara, fala mansa, depois que encerrou a Livraria Diálogo, abriu a Passárgada
na esquina da então Cel. Moreira César, hoje com justiça, Paulo Gustavo e a rua
Lopes Trovão em Icaraí. Uma portinha que abrigava a livraria em seu primeiro
piso, e o Clube de Leitura, da qual minha mãe era assídua, no segundo piso. Um
sebo que você podia pegar emprestado o livro e depois devolver.
Foi neste espaço que iniciei a minha formação
política. A Pasárgada era um ponto de encontro da esquerda niteroiense, onde em
plena ditatura você ao passar pela calçada poderia ser surpreendido com
discursos e falas contra a mesma. Foi nesse ambiente que comecei minha vida
política e profissional. Na época, o gerente era o Abel, comunista ferrenho, de
carteirinha.
Em meu primeiro dia, ainda tímido, vou atender
um professor de filosofia do Fundão. Ao me aproximar, ele de imediato olha para
o Aníbal e fala: “o garoto é novo né?” Aníbal me chama e fala: “ele se atende”.
Depois de escolher os livros, tenho meu aprendizado que trago até hoje. Todo
solícito, enquanto ele pagava a compra, falo que iria embrulhar seus livros.
Aníbal ri, e o professor fala: “garoto, livro embrulhado não passa de um
embrulho”. Abraça os livros e diz até a próxima. A frase pegou tão fundo em
mim, que nunca mais deixei embrulhar os livros que comprava, para presente ou
não. E quando alguém pedia par embrulhar mandava o dito e aguardava a resposta.
Ainda na Pasárguinha, antes da mudança para a esquina da Tavares Macedo com a
Lopes, neste mesmo primeiro dia, deu-se o início de meu aprendizado político.
Olho um livro de título “A Rede do Terror” da Clarie Sterling. Comecei a folhear
e Aníbal coloca uma das mãos em meu ombro e me fala que era um livro editado
pela Embaixada Americana para fazer a nossa cabeça. Com a outra me apresenta
“Veias Abertas da América Latina”, do Eduardo Galeano, e termina dizendo que eu
aproveitaria melhor o tempo de leitura. Bom, ainda Folheie, movido pela
curiosidade, as primeiras páginas do Rede onde encontro que a KGB foi que deu
os golpes militares na América Latina. Abracei o Galeano e de lá para cá... deu
no que deu, um cara consciente e pobre...rsrsrs
Diferente das livrarias de hoje, que tem cafés
e etc., a Pasárgada da Tavares, na década de 70, tinha um salão de chá, que
também servia cerveja e vinho, e outro ambiente que servia para show, teatro e
palestras. Assisti o lançamento do disco do Xangai, “Que qui tu tem canário?”,
na livraria.
Não sei nas demais, pois tinham outras
livrarias em Niterói de responsabilidades, sem teatro e chá, mas livrarias,
como o Antônio e a sua Gutemberg, onde tive o prazer de ser convidado por ele
quando a Pasárgada fechou, porém me encontrava em Petrópolis estudando
Engenharia, ou tentando pelo menos... Aníbal nos vendia os livros que queríamos
pelo preço de custo, o que facilitava muito a nossa vida. Minha biblioteca
começou a ser municiada lá. O problema é quando chegava o fim do mês e o acerto
de contas, parte de meu salário ficava no Salão de Chá e parte na livraria.
Teve um mês onde Aníbal vem me pagar e apresenta um “vale” para que eu assine.
Aquele mês havia estourado a banca. Mas, mesmo pobre, tive a rara condição de
só estudar naqueles tempos, o trabalho era renda extra.
Lendo as matérias sobre o fechamento da
Cultura, onde um ex-funcionário conta um de seus “causos”, ocorrido em
Brasília, mais saudades tenho das livrarias de verdade, e da Pasárgada. Ele
conta que um senhor, mal-vestido, o chama e humildemente entrega um papel, com
escrita infantil e informa que não sabia ler, mas estava comprando aquele livro
para filha, que usaria na escola. O vendedor se afasta e ao voltar não encontra
o senhor. Procura e acaba sendo informado que o segurança da loja o havia
retirado, pois estava incomodando os fregueses por estar mal-vestido. Como bom
cidadão que também gosta de livraria, procurou o senhor na rua e no shopping,
mesmo que só para devolver o papel com o nome do livro. Sabia que ele chegaria
em casa humilhado e sem a compra pois ficou sem o papel. Este tipo de ambiente,
não serve como um espaço para difusão da Cultura. Não é o ambiente de Livraria.
Aníbal Bragança, depois foi Secretário de
Cultura de Niterói, se formou em História pela UFF e foi Editor Chefe, se não
me engano, da Editora da UFF. Infelizmente faleceu recentemente e, não pude me
despedir como ele merecia, daí estas linhas. Um agradecimento ao amigo que me
acolheu e me incentivou politicamente, sem nunca me dizer, o caminho é este.
Pelo contrário, as bifurcações são essas a escolha deve ser sua. Obrigado a
Pasárgada e demais Livrarias que resistem.
Há Braços
Sérgio Mesquita
Assessor na Secretaria de Educação de Maricá