terça-feira, 2 de janeiro de 2024

Cai bem um ansiolítico na redação do Estadão

"Esforço do jornal está explícito até para os menos afeitos à política: é reabilitar o inelegível para repetir na cédula de 2026", escreve Denise Assis - 1 de janeiro de 2024, 13:15h – Brasil 247

O editorial do “Estadão” – que leio por dever de ofício – nos diz que “É hora de encerrar os inquéritos contra golpistas”. Do meu canto lhes digo que ou o jornal está surdo ou prefere seguir falando para a bolha de 25% de bolsonaristas que insistem em voltar as costas para o próprio país e seus avanços internos e externos. 

No dia da posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em primeiro de janeiro de 2023, uma data como a de hoje, o grito que surgiu na massa compacta que foi a Brasília garantir sua posse foi: “sem anistia!”. O que deixa transparecer o Estadão é a busca insana de uma “anistia” informal, calcada no argumento fajuto e de encomenda do meio militar do: “vamos virar a página”.

Já fizemos isto no passado e deu no que deu. Um país com deficiência em cultura política e acomodado quando a questão resvala para a tutela militar. Os argentinos - emocionais que são, a ponto de na revolta eleger um Milei -, agiram em sentido contrário, colocando no banco dos réus os generais que assassinaram e desapareceram com os seus presos políticos custodiados pelo Estado. Hoje têm consciência da crise que os ameaça, indo às ruas nos primeiros dias do governo eleito, para dizer não à ameaça autoritária. Sentem cheiro de ditadura à distância, porque a viraram do avesso, foram atrás dos algozes, sabem a cor que ela tem e não a querem repetir.

O esforço do jornal está explícito até para os menos afeitos à política: é reabilitar o inelegível para repetir na cédula de 2026 o enfrentamento de 2022 entre ele e Lula. Na falta de um nome que arregimente votos contra o petista – que é o que parece exclusivamente interessar ao corpo editorial –, retoma-se o candidato enxovalhado. A tal ponto que querem forçar a barra para uma mudança nas leis, passando pano para crimes que de fato são crimes, como a falsidade ideológica praticada com a falsificação dos cartões de vacina. E o que dizer do roubo das joias, que é disso que se trata. Outro crime flagrante.

Não há no horizonte o surgimento de nenhum candidato de peso na oposição, a ponto de fazer frente, por enquanto, a Lula ou a algum possível substituto, dado o trabalho de reconstrução feito pelo atual governo. Já se vê pelas pesquisas um terço do eleitorado titubeante – não o raiz – do inelegível, pular para o lado do atual presidente, apoiando as suas ações. Não dá para ignorar o menor índice de desemprego desde 2015 e tampouco um crescimento de 3%, quando as previsões dos “economistas de sempre” giravam em torno de 0,8%.

Elaborar um diagnóstico preciso a respeito desse quadro de luzes e sombras envolvendo a atuação do STF é tarefa ainda a ser realizada. Até mesmo porque os inquéritos são, todavia, sigilosos. Não se conhece toda a extensão dos ataques, tampouco o alcance das medidas tomadas pela Corte. De toda forma, há dois pontos indiscutíveis: as circunstâncias do País são outras – aquelas ameaças ao regime democrático já não existem mais – e os inquéritos criminais têm de ter prazo para acabar – não podem permanecer indefinidamente no tempo”.O que o Estadão quer é a “prescrição” do crime contra o estado democrático de direito, em cinco anos, quando a pena prevista, somados todos os elementos que a compõe beira os 20 anos. Para isto, sugerem: “Além da questão jurídica – inquéritos devem respeitar os trâmites e limites legais –, o encerramento dessas investigações tem também uma evidente dimensão social e política, que o STF não pode ignorar. Não faz bem ao País – nem ao Supremo – um permanente e extravagante protagonismo da Corte constitucional. Se houve, nos últimos anos, circunstâncias excepcionais – que felizmente o STF soube detectar a tempo –, é preciso reconhecer quando elas já não se fazem presentes”. Como assim???

O que o Estadão busca é praticar a política do inominável na pandemia: “Vão ficar chorando até quando? Chega de mimimi” ... E estávamos falando de 700 mil vidas. É como pedir a uma mãe que toque a vida e esqueça a morte do filho estudante, a caminho da escola, morto pela Polícia. Multiplique-se isto por um país inteiro quando a morte de que tratamos é a da democracia.

Medida processualmente correta, encerrar os inquéritos é um gesto que fortalece a autoridade do STF e distensiona o País. As águas devem voltar ao seu leito normal”.

Não devemos estar vivendo em um mesmo país, (eu e o Estadão) onde as redes sociais refletem ainda a animosidade residual das eleições passadas, que só vai cessar quando houver punição exemplar para os culpados do crime contra o Estado (e aí eu incluo os militares envolvidos e já indiciados).

Um país em que o golpe brando e continuado nos leva a ter o executivo sufocado de um lado, pelo avanço despudorado e imoral do presidente da Câmara e seus pares, sobre o orçamento. Do outro, pelo presidente do Banco Central que trava o crescimento. Tudo isto, resultado da tentativa de golpe orquestrada todos sabemos por quem. Não dá para as águas voltarem ao seu leito normal, quando a todo momento vimos alguém atirar pedras para fazer marolas. E, por fim, não cabe a um jornal se meter nas questões jurídicas em andamento. Tomem um ansiolítico e aguardem o veredicto.


Denise Assis

Jornalista e mestra em Comunicação pela UFJF. Trabalhou nos principais veículos, tais como: O Globo; Jornal do Brasil; Veja; Isto É e o Dia. Ex-assessora da presidência do BNDES, pesquisadora da Comissão Nacional da Verdade e CEV-Rio, autora de "Propaganda e cinema a serviço do golpe - 1962/1964, "Imaculada" e "Claudio Guerra: Matar e Queimar".


Batalha civilizatória

 Luiz Gonzaga Belluzzo

A liberdade só é possível com igualdade e respeito ao outro

Como sempre ocorre, a vida correu e Lula completou o primeiro ano de seu terceiro e difícil mandato. Um economista raiz, assim fala a molecada, embrenhar-se-ia no matagal de suas sapiências econômicas para esfregar as árvores de suas certezas e despejar conselhos e recomendações ao presidente. Vou escapar a tais protagonismos e agradecer a Lula por sua proeza menos celebrada, mas, em minhas modestas avaliações, a mais valiosa. A vida política nacional voltou a respirar os ares da tolerância e da busca da convergência, mesmo entre divergentes que divergem de forma radical.

Sugeri ao amigo e companheiro Gabriel Galípolo que, diante do catennaccio armado pela defesa dos adversários da civilização e da democracia, nos restam as habilidades do bom driblador. Não sabemos se as manobras do habilidoso vão culminar com a bola na rede. Tomara. No momento, resta-nos, torcedores, agradecer pelo retorno da civilidade no Brasil, mais uma vez espargida para além fronteiras.  

Uma pergunta torna-se, no entanto, inevitável: estamos nós e Luiz Inácio, o Lula, a sofrer no mundo uma crise que nega os princípios fundamentais que regem a vida civilizada e democrática? Se isso for verdade, quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha regressão.

A angústia torna-se ainda maior quando constatamos que as possibilidades de conforto material para a grande maioria da população deste planeta são reais. É preciso agradecer ao capitalismo, e ao seu desatinado desenvolvimento, pela exuberância de riqueza gerada. Ele proporcionou ao homem o domínio da natureza e uma espantosa capacidade de produzir em larga escala os bens essenciais para as satisfações das necessidades humanas imediatas. Diante dessa riqueza, é difícil encontrar razões para explicar a escassez de comida, de transporte, de saúde, de moradia, de segurança contra a velhice etc. Numa expressão: escassez de bem-estar.

Um bem-estar que marcou os conhecidos “anos dourados” do capitalismo. A dolorosa experiência de duas grandes guerras e da depressão pós-1929 nos ensinou que deveríamos limitar e controlar as livres forças do mercado. Os grilhões colocados pela sociedade na economia explicam quase 30 anos de pleno emprego, aumento de salários e lucros e, principalmente, a consolidação e a expansão do chamado Estado de Bem-Estar Social. Os direitos garantidos não deveriam ser apenas individuais, mas coletivos. Vale dizer, sociais. Dessa maneira, ao mesmo tempo que o direito à saúde, à previdência, à habitação, à assistência, à educação e ao trabalho eram universalizados, milhares de empregos públicos de médicos, enfermeiras, professores e tantos outros eram criados.

O Welfare State não pode ser interpretado como mera reforma do capitalismo, mas como uma grande transformação econômica, social e política. Ele é, nesse sentido, revolucionário. Não foi um presente de governos ou empresas, mas a consequência de potentes lutas sociais que conseguiram negociar a repartição da riqueza. Isso fica sintetizado na emergência de um Estado que institucionalizou a ética da solidariedade. O indivíduo cedeu lugar ao cidadão portador de direitos. As gerações que cresceram sob o manto generoso da proteção social e do pleno emprego acabaram, porém, por naturalizar tais conquistas. As novas e prósperas classes médias esqueceram que seus pais e avós lutaram e morreram por isso. Um esquecimento que custa e custará muito caro às gerações atuais e futuras. Caminhamos para um Estado de Mal-Estar Social.

[No mundo, caminhamos para um Estado de Mal-Estar Social]

Essa regressão social se iniciou quando começamos a libertar a economia dos limites impostos pela sociedade, já no início dos anos 70. Sob o ideário liberal dos mercados, em nome da eficiência e da competição, a ética da solidariedade foi substituída ética da concorrência ou do desempenho. É o seu desempenho individual no mercado que define a sua posição na sociedade: vencedor ou perdedor. Ainda que a grande maioria seja perdedora e não concorra em condições de igualdade, não existem outras classificações possíveis. Não por acaso o principal slogan do movimento Occupy Wall Street é “somos os 99%”. Não por acaso, grande parte da população espanhola está indignada.

Como acreditar que precisamos escolher entre o caos e a austeridade fiscal dos Estados, se essa austeridade é o próprio caos? Como aceitar que grande parte da carga tributária seja diretamente direcionada para as mãos de quem ocupa o trono do 1%, os detentores de carteiras de títulos financeiros? Por que a posse de tais papéis que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza gerada pela totalidade da sociedade ganham preeminência diante das necessidades da vida dos cidadãos? Por que os homens do século XXI submetem aos ditames do ganho financeiro estéril o direito ao conforto, à educação e à cultura?

As respostas para tais questões não serão encontradas nos meios de comunicação de massa. Os espaços de informação e de formação da consciência política e coletiva foram ocupados por aparatos comprometidos com a força dos mais fortes e controlado pela hegemonia das banalidades. É mais importante perguntar o que o sujeito comeu no café da manhã do que promover reflexões sobre os rumos da humanidade.     

A civilização precisa ser defendida. As promessas da modernidade ainda não foram entregues. A autonomia do indivíduo significa a liberdade de se autorrealizar. Algo impensável para o homem que precisa preocupar-se cotidianamente com sua sobrevivência física e material. Isso implica uma selvageria que deveria ficar restrita a uma alcateia de lobos ferozes. Ao longo dos últimos 200 anos de história do capitalismo, o homem controlou a natureza e criou um nível de riqueza capaz de garantir a sobrevivência e o bem-estar de toda a população do planeta. Isso não pode ficar restrito para uma ínfima parte. Mesmo porque, o bem-estar de um só é possível quando os demais à sua volta se encontram na mesma situação. Caso contrário, a reação é inevitável, violenta e incontrolável. A liberdade só é possível com igualdade e respeito ao outro. É preciso colocar novamente em movimento as engrenagens da civilização.

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023

https://www.cartacapital.com.br/economia/batalha-civilizatoria/

Lula, por mares nunca dantes navegados

 Se queriam um governo radicalmente de esquerda esqueceram de dar a Lula um Congresso radicalmente de esquerda, caros camaradas

 10 de dezembro de 2022, 11:22 h – João Lopes – Brasil 247

 Lula, como Ulisses, agora empreende a viagem da volta para Ítaca, ou, como Edmund Danté, viverá o ajuste final de contas com seus detratores e traidores, assumindo o governo dia primeiro de janeiro. Queiramos usar uma metáfora ou outra, não há como ser lenientes com golpistas e traidores, se o sentimento de vingança e o ressentimento não são bons conselheiros, é bom flechar os pretendentes de Penélope, senão eles continuarão a almejar usurpar o trono.

 Quem tem acompanhado os artigos que publiquei saberá que dissenti de parte da crítica da esquerda, tanto na visão de que eu via uma impossibilidade absoluta de virada de Bolsonaro no segundo turno, quanto na ideia de que é impossível um golpe antes da posse de Lula. Não há acúmulo de forças para o fascista, atualmente no poder, empreender o putsch final. Uma coisa é certa, nas tentativas de insurgências, sejam revolucionárias, sejam golpistas e contrarrevolucionárias, o momento da arremetida contra o a ordem deve ser tratado como uma ciência, não como algo aleatório. 

 Tudo que Bolsonaro fez, desde que assumiu o Planalto, foi conspirar para acabar com Estado Democrático de Direito e rasgar o que sobrou da Constituição de 1988. Para isto aparelhou o Estado, implantando uma mafiocracia, que foi desde emendas secretas escusas, a patrocínios mal explicados, com dinheiro público do BNDES para os cantores do agro, a desvio de verbas do MEC para construção de igrejas evangélicas. Um farto propinoduto, cuja extensão não sabemos o tamanho, irrigou uma estrutura golpista neonazista emergente.

Empresário não dão ponto sem nó, não dilapidam seu patrimônio por questões puramente ideológicas. Os empresários do agro e dos transportes, que gastaram rios de dinheiro nos vários intentos golpistas, foram irrigados por uma rede subterrânea de subvenção e patrocínio público, assim como as lideranças neopentecostais, encantadas com os rios de dinheiro que afluíam, desde verbas do MEC a ONGs, que iam de cuidado com crianças indígenas a tratamento de pessoas com transtornos mentais e dependentes químicos. O farto caudal de recursos públicos e de assalto ao Estado garantiu a “fidelidade” de Malafaia, Valadão e quejandos. 

 Esta aliança muito espúria entre agro, neopentecostalismo conservador protofascista (que mobilizou contingentes de lúmpen nas grandes cidades para servir de exército bolsonarista) e grandes setores reacionários da classe média, tomou forma como um movimento permanente de massa, que foi muito além da pauta conservadora. O crescimento das células neonazistas no Brasil, principalmente na região sul, é o termômetro desta escalada nazifascista.

 Neste angu tem muito caroço ainda, neste exército neonazista ainda há que se inserir a disseminação de armas nos clubes de tiros espalhados pelo Brasil (fala-se em mais de 2 milhões de armas nas mãos de particulares hoje, e que tem que ser desmontados e suas armas apreendidas) e o aparelhamento de associações de praças da PM (inclusive com o encorajamento de motins em estados em que a oposição a Bolsonaro governa, como Bahia e Ceará). 

 O ápice espúrio deste festim diabólico foi o setembro de 2021, no qual o Brasil ficou muito perto de um golpe de Estado, com a possibilidade de decretação de estado de sítio e dissolução de poderes. Os relatos têm pequenas nuanças, discordâncias sobre o porque do não desfecho, com a decretação de Bolsonaro como ditador. Nos vários relatos o papel principal não nos coube, ao movimento social organizado, mas ao STF, que ameaçou de prisão até o vice-governador de Brasília, caso não agisse para evitar o caos, mas alguns assinalam que foi a falta de perspectiva e projeto que evitou o golpe final de Bolsonaro. Se decretar ditador é uma coisa, manter o poder é outra bem diferente. Sem apoio internacional e sem projeto, na solidão da imensa sala, decorada de forma brega por Micheque, com quadros de Romero Brito, fica a dúvida se lhe faltou a iniciativa de dar o passo, que podia ser em falso e sem retorno, ou para a democracia ou para ele, ou se a ação do STF contra o golpe é que foi eficaz.

 De aí em diante, continuam os dissensos nas várias análises. Alguns continuaram a ver uma escalada golpista, eu e alguns poucos outros vimos um declínio do perigo de golpe. O roteiro de 2022, ainda que com algumas manifestações de massa no Rio, Distrito Federal e Brasília (como uma caricatura da tanqueata que ele gostaria de fazer em plena Presidente Vargas, no Rio de Janeiro, e da qual foi proibido pelo seu Estado maior) era de perda de musculatura para o golpe, incluindo aí a ação subsequente do STF que prendeu várias lideranças e andou bloqueando canais de sustentação empresarial financeira dos eventos. Bolsonaro passava a ser um leão de circo, que ruge, mas não tem dentes nem garras. Não é possível fazer um golpe só com praças descontentes e generais de pijama, há que haver, senão um consenso, pelo menos hegemonia entre os comandos das 3 forças.

 Na continuidade, uma PEC de assalto ao erário despejou dinheiro para que ele fosse reeleito. Talvez acreditando que conseguiria manter o poder dentro das quatro linhas, afinal, desde a redemocratização, nenhum presidente eleito perdeu a reeleição com a máquina na mão, o fascista blefou nas ameaças de golpe, ainda que mantivesse sua turba sempre agitada e decidiu que ganharia a eleição. A tentativa malograda de 2021, a flopada da tanqueata em 2022, a total falta de articulação e reconhecimento internacional num possível movimento golpista, a não hegemonia entre o comando das FFAA sobre o não reconhecimento das eleições, a conjunção de vários fatores foi minando o caminho de um possível novo capitólio.

 Quando um arremedo das forças originais golpistas saiu às ruas para tentar ocupar vias públicas, e o STF apressou-se em ratificar a vitória de Lula, eu escrevi com todas as letras que não devíamos temer um golpe antes da posse de Lula, nossos problemas começarão a partir do dia primeiro de janeiro. Não era preciso esperar Bolsonaro sair do silêncio e reconhecer a passagem de poder, ameaçando, desde já todavia conspirar desde o primeiro segundo para a derrubada de Lula. Uma olhada desleixada para a conjuntura nos daria este quadro, falta de acúmulo de forças golpistas para evitar a assunção de Lula, mas um governo que começará sitiado, assim como o de Pedro Castillo no Peru, ou de Alberto Fernández, na Argentina.

 Dizer que não há acúmulo de forças para um golpe não é negar o perigo dele. Há contradição nesta análise, óbvio que há, a realidade é contraditória. Seu somatório não é determinista, é impossível fazer um “xadrez do golpe”, porque simplesmente os fatores quantitativos e qualitativos se interpenetram e trocam de lugar. É a famosa passagem da quantidade a qualidade marxista-hegeliana, que torna impossível qualquer previsão com determinismo. Análise de conjuntura não é previsão de Mãe Diná ou Nostradamus.

 Lula navegará por mares nunca dantes navegados porque simplesmente nunca governou em condições tão adversas. Assim como Ulisses, Lula deverá se amarrar ao mastro do navio que conduz, para que o transatlântico Brasil não seja destroçado entre Cila (uma extrema esquerda com frases altissonantes e nenhum apego à realidade) e Caríbdis (o projeto neoliberal de tentar comer o governo do PT por dentro).

 A conjuntura é angustiante. Lula não terá maioria nem na Câmara e nem no Senado, sem ter que se apoiar nesta enorme franja de direita fisiológica a que se convencionou denominar, sem nenhum acerto, de Centrão. Não adianta Samia Bonfim e Glauber vociferarem de que temos que manter nossa castidade ideológica e descer dos montes com os 10 mandamentos do DCE da UFF dizendo que o PSOL não deve fazer parte de um governo de coalizão. A realidade é muito maior que a eleição do DCE da UFRJ ou da USP. Não estamos às portas do Palácio de Inverno em São Petersburgo e nossas tropas não possuem nem atiradeiras. Este governo de Lula é necessariamente um governo de coalizão que fará muitas concessões às forças antagônicas ao nosso projeto, porque é isto, ou é não governar e viver 24 horas sob a pressão de um golpe. E por favor, não me venham com dizeres patéticos de “que temos que governar com povo na rua”. Isto é só uma fala pseudorrevolucionária, cuja última lição aprendida foi a derrota avassaladora da esquerda chilena na reforma constitucional. Detalhe importantíssimo, a esquerda chilena estava melhor organizada que a nossa e teve total hegemonia da rua nos últimos 4 anos no Chile. Tomou uma coça na votação da Constituição e aprendeu que hegemonia nas ruas não é a mesma coisa que hegemonia no parlamento ou mesmo nas votações.

 Este palavreado não faz nenhum sentido porque não temos nenhum acúmulo de forças no movimento social que nos autorize a fazer bravatas. Li Lênin e Marx demais para não detectar o que ambos denominavam de fraseologia pseudorrevolucionária pequeno-burguesa. Em política não se blefa no discurso, não se alardeia uma força que não se tem porque o outro lado também sabe contar garrafinhas.

 Se algum dia pretendemos governar com o “povo nas ruas” temos que voltar não só a mobilizar, mas a organizar nossas tropas. Reunir-se uma vez por mês para protestar contra o governo Bolsonaro não nos autoriza a dizer que fizemos um bom trabalho de preparação e oposição. Os sindicatos estão quebrados, destruídos, sem fonte de recursos depois do fim do imposto sindical, sem nenhuma outra fonte de recursos que o valha. Não, não se faz luta sindical sem aparelho sindical. Não temos fora dos sindicatos nenhum grande movimento organizado citadino que mobilize milhões. Os 2 que temos, não o são. Um, o MST, é um movimento camponês num país predominantemente urbano, o outro, o MTST, ainda que respeitável, se restringe a uma camada de lumpesinato, ganha para a luta progressista que nunca disputará hegemonia sozinho.

 Com bravatas não se ganha uma guerra.

 Não, não vamos governar sem o Congresso e através das massas, não, não preparamos uma forma de poder popular como na Venezuela, em que há comunas espalhadas por várias províncias do País e uma assembleia constituinte que foi com voto proporcional a cada segmento social. A conjuntura é complicada, porque somos um movimento de coalizão que derrotou o fascismo e agora precisa desarmar todas as bombas montadas por ele.

 Lula terá que governar com o Congresso que tem, será até certo ponto prisioneiro de Artur Lira e Rodrigo Pacheco, e só conseguirá restringir o orçamento secreto se o próprio STF tomar a iniciativa de considerá-lo ilegal. Nunca conseguirá maioria nas 2 casas para soterrá-lo. Terá que governar o tempo inteiro sorrindo e afagando o Centrão, ou não governará. Isto não significa que não governará tocando sua pauta, como o faz agora no caso da PEC do Bolsa Família, no sentido estreito das forças que temos, significa que teremos que pautar o que estritamente, dentro do nosso programa, não açule o golpismo dentro do Congresso mais fascista e conservador da história.

 Teto de gastos, orçamento secreto, o orçamento dilapidado pelo aparelhamento de Estado feito por Bolsonaro para tentar a reeleição, a Petrobras servindo aos interesses apenas dos acionistas nacionais e internacionais e não ao povo brasileiro (o petróleo, senhores, lembrem-se, foi central no golpe). As bombas que ameaçam estourar já no dia 2 de janeiro já farão que o governo comece pisando em ovos. É necessário rever a política de preços do petróleo, para isto, é necessário um verdadeiro “paredão” (sem vítimas fatais) na Petrobras. É óbvio que quando Lula mexer na Petrobras, destituindo a atual diretoria e mudando a política de preços o tal Mercado (na verdade a elite do atraso brasileira) reagirá especulando da forma que sabe, evasão de divisas com subida especulativa do dólar, queda da bolsa, etc. Será impossível omelete sem quebrar ovos e, por hora, o discurso é que não podemos governar para o mercado.

 Todas estas manobras serão fundamentais para governar, lembrando que do outro lado se construiu um know how golpista. Eles ensaiaram e se organizaram para dar o golpe durante quatro anos. Não vão desistir de o fazer porque Lula agora governa, só se radicalizarão mais e mais. É necessário desarmar a direita fascista no Brasil. Para isto é preciso coragem. Não, o perdão não é solução neste caso, para a tal falada conciliação nacional. Maquiavel falava que o mal tem de ser feito de uma só vez. Lula não pode repetir o erro de nomear um Ministro da Justiça estilo Eduardo Cardoso, cujo esporte era fazer vista grossa a toda e qualquer manifestação golpista, incluindo as polícias federal e rodoviária federal.

 Alexandre de Moraes já deu o tom. Tem que se congelar os fundos golpistas e até sequestrar os bens dos sediciosos se for o caso. Não é necessário dar um tiro para isto, basta se aplicar a lei e prender, como feito agora na Alemanha, quem conspira contra o Estado. Superintendente de Polícia Rodoviária que conspira e prevarica tem que ser preso e demitido a bem do serviço público. Empresário que conspira tem que ter os bens sequestrados pelo Estado. Empresa de caminhões que faz locaute em estradas tem que ter os caminhões apreendidos e as contas bloqueadas. Não é possível paz e amor e leniência com quem quer nos matar e nos colocar num AI5. As células neonazistas têm que ser desarticuladas e suas lideranças todas postas na cadeia. Liderança protofascista travestida de pastor, que pede ditadura militar e golpe, tem que ter o mesmo destino.

 Aliás, um nó górdio neste caso é o tal “diálogo com os evangélicos”. Precisamente de que estamos falando? Camaradas, vamos dar nome aos bois, não se trata de perseguição ou falta de liberdade de culto, aqui no Brasil qualquer idiota com o sexto ano fundamental pode abrir uma igreja em qualquer esquina, é mais fácil que abrir um boteco. Não, não há restrição, perseguição ou “preconceito das esquerdas”. Há sim um colóquio flácido para bovídeo dormitar que criou um mito de “cristofobia”, numa país 85% declaradamente cristão (entre católicos e evangélicos). No Brasil religião perseguida é o candomblé e a umbanda, num flagrante caso de racismo religioso aberto e acobertado pelo discurso de “liberdade de crença”. Não existe cristofobia, é uma mentira dita mil vezes que acaba se tornando uma verdade. O diálogo deve sim acontecer, de forma laica e não como segmento, já que o que estamos falando, demos nome aos bois, o tal diálogo é de se assumir uma pauta conservadora como sendo “pauta da família”, ou tomar parte numa verdadeira guerra religiosa pela hegemonia da crença no Brasil, guerra na qual a esquerda não pode e nem deve ter lado. O único lado que a esquerda pode ter é a do Estado laico. Boa parte dos pastores eleitos e que fizeram um bloco ultraconservador no Congresso (com raras e honrosas exceções, como Benedita da Silva no Rio) querem ou impor sua pauta ou continuar a receber benefícios impróprios do Estado. De uma forma ou de outra não é um “diálogo possível”. E sim, temos que dizer aberta e claramente que boa parte das denominações pretensamente evangélicas hoje se tornaram células protofascistas com um projeto de poder próprio que passa longe do evangelho. É uma equação difícil o relacionamento com um setor que sim, tem um projeto de hegemonia e de ataque ao Estado laico.

 Por fim, fazer um bloco no Congresso, com o Centrão de um lado e o PSOL do outro é uma equação que só Lula poderá (ou não) resolver. Vimos já as manifestações edipianas de Sâmia Bonfim e Glauber Braga contra o PSOL participar do governo petista. Para certos setores do PSOL, muito ligados a uma esquerda acadêmica pequeno-burguesa, que precisa reafirmar o tamanho do seu ego marxista todo dia, é fundamental dizer que são diferentes do PT. A verborragia é revolucionária, a prática é academicista. Não conseguem organizar nenhum setor dos trabalhadores ou das camadas proletárias urbanas, são tão eleitorais (ou eleitoreiros) como gostam de tachar o PT, como nós, mas, para ganhar a eleição na Praça São Salvador, nas Laranjeiras, é necessário recitar Mao Tsé ou Trostky todo dia e dizer que o dia da revolução está chegando (amém!). Entre a verborragia acadêmica de um Nildo Ouriques, ou de um Babá, e a realidade, há uma relação tão íntima quanto a que Nise Yamaguchi tem com a prevenção da Covid. 

 Fui testemunha do ataque desvairado de setores da extrema-esquerda ao PT entre 2013 e 2015. Foram aliadas indefectíveis do golpe, ou alguém esquece dos discursos apaixonados da Luciana Genro pelo Sérgio Moro, ou das fotos dos componentes do apartamento da Paulinha pendurados no saco do Juiz Bretas? Parte deste povo evoluiu, outra parte ainda está preso em 2013. Aliás, vale à pena perguntar, os Black Bostas estão de férias? Porque foram ferozes inclusive contra o PT e a CUT (rasgaram nossas bandeiras, atiraram rojões contra nós, partiram para o confronto físico). Estas reservas pseudoanarquistas da reação foram incapazes de dar um só peteleco na fascistada vestida de verde e amarelo. Não me surpreenderia nada se ressurgirem das tumbas no dia 2 de janeiro de 2023. Junto com eles virão os Nildo Ouriques e os Babas da vida, gatinhos angorás durante os governos Temer e Bolsonaro, ferozes leões contra o PT, e que não se dão ao trabalho de organizar a classe trabalhadora, até para disputar (o que é do jogo político) a hegemonia com o Partido dos Trabalhadores, mas que preferem fazer o jogo da direita e fazer de tudo para balançar qualquer governo popular quando está no poder. Vomitam uma retórica de pré-revolução que desaparece quando a direita assume o poder. Escutei alguns cretinos dirigentes sindicais do Conlutas afirmarem abertamente que “não há clima para greve agora”, durante os 7 anos somados dos governos Temer e Bolsonaro, os mesmos que decretavam greve por tempo indeterminado, sob qualquer pretexto nos 13 anos de PT, e que ajudaram na pauta-bomba e no golpe contra a Dilma.

 Lula tem a seu favor a simpatia de 58 milhões de votos, a lembrança feliz dos seus 8 anos de governo, sua inconteste liderança internacional, a experiência larga como deputado e como presidente, mas navegará por mares nunca dantes navegados. É um governo em Estado de sítio permanente, que terá como tarefa não a de fazer avançar as pautas histórias de esquerda, mas sim desarmar todas as bombas golpistas, montadas pelo nazifascismo bolsonarista nestes últimos anos, e reconstruir o tecido social para que possamos dar um passo à frente já no próximo mandato. 

 Se queriam um governo radicalmente de esquerda esqueceram de dar a Lula um Congresso radicalmente de esquerda, caros camaradas. 

 Não se governa com o desejo, se governa com correlação de forças do mundo real, esta verdade de governar baseado na estrutura real do mundo faz parte de uma verdadeira análise marxista da política.