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Publicado em 29 de julho de 2020
Valéria
Brandini, PhD
"You can't stop the world from changing,
dad". Essa frase é da personagem Blanca Trueba, filha de Steban Trueba, na
obra "A casa dos espíritos" de Isabel Allende (1985), dita quando a
jovem conversa com o pai, um latifundiário conservador, a respeito das revoltas
de trabalhadores e do momento revolucionário do Chile no início dos anos 1970.
A frase diz muito sobre os tempos em que vivemos e sobre a forma como as
pessoas em seus diferentes backgrounds percebem e se relacionam com as mudanças
de paradigmas de um mundo vivendo entre extremos.
Como cientista social, meu papel não é dizer às
pessoas, em especial, às empresas, o que elas devem ou não abraçar
ideologicamente, ou rechaçar, mas traçar um mapa das sensibilidades emergentes
e investigar a forma como as pessoas absorvem esses indicadores culturais de
valores e como reagem a eles, conforme os códigos de valores estruturantes de
seu grupo social. E hoje, mais do que nunca, a sensibilidade à diversidade e à
inclusão social emerge como a tônica determinante do consumo ideológico. Eu
ouvi consumo? Sim. Pois o que mais consumimos, para além de produtos, são
significados codificados em bens e em todo tipo de comunicação, da pauta
jornalística à publicitária. O mercado e a publicidade sempre operaram como um
léxico dos significados do momento presente, já dizia o antropólogo Everardo
Rocha (1985), pois o mercado precisa absorver essas sensibilidades emergentes
para codificar produtos e criar o "cenário que embala" os bens de
consumo, o que hoje entendemos como storytelling.
Sem essa "codificação" atribuída aos
bens, os produtos não teriam o capital simbólico percebido que se converte em
capital financeiro, ou seja, no mundo do homo economicus, eles não teriam
"valor percebido" suficiente para orientar o princípio de tomada de
decisão de consumo. Um perfume é apenas um líquido que ao ser utilizado na pele
emana um odor. Mas o que desperta um universo de sentidos associados a esse
odor para o consumidor tem a ver com a marca que o produz e todos os
significados atribuídos por meio da construção simbólica da propaganda. A
publicidade traz o "cenário", o sistema da moda, da produção e
reprodução de tendências incorporadas a bens que, conforme Grant McCracken
(2004), compõe o par que transmite os significados do mundo social em que
vivemos, do mundo culturalmente construído aos produtos.
Toda essa introdução de Antropologia do Consumo
para dizer que, não importa se você, como indivíduo, aceita ou não, reconhece
como legítimo, ou não, o fato de a marca Natura trazer o pai transexual Thammy
Miranda como seu ícone para a campanha de Dia dos Pais. A fricção causada pela
polêmica da campanha faz parte de todo o composto da incorporação de
sensibilidades emergentes na codificação de produtos. A própria tentativa de
"cancelamento" por parte de indivíduos e grupos conservadores também
é um elemento chave desse mosaico, pois vai instigar ânimos e posições
contrárias e favoráveis e isso vai levar a marca ao topo dos trend topics. E se
perder consumidores, também é parte da contabilização de perdas e ganhos que
contempla a estratégia de campanha a partir do posicionamento de marca frente a
indicadores culturais do momento presente.
As marcas, o mercado, a publicidade não
"criam" esses temas, apenas se apropriam deles para atribuir os
sistemas de significados da nossa sociedade - seus pontos de fricção, suas
dores e suas alegrias - aos bens de consumo, a começar pela comunicação que
consumimos. Então, se você, sua família, seu grupo de amigos, seu grupo
ideológico não aceitam que um homem trans seja o símbolo de pai na campanha de
uma marca, sua "treta" não é com essa marca, é com a sociedade e sua
constante transformação no código de valores culturalmente construído e socialmente
operado. Sua briga não é com a Natura, mas é com o mundo que está mudando -
sempre - e que no presente imediato incorpora como código cultural a
perspectiva e lugar de fala de grupos que foram durante a história humana,
oprimidos, excluídos, execrados, destituídos de poder e de lugar de fala. E
minha perspectiva aqui não é militante, nem passional, mas baseada em
indicadores culturais e mapeamento de sensibilidades emergentes e sua
capilarização na sociedade como um todo.
A cultura das bordas sempre foi o maior polo de
inovação para o mercado, que sempre se apropriou, expropriou e manipulou os
signos de movimentos e manifestações de grupos excluídos para codificar
produtos, trazendo o signo e deixando o significado de fora, trazendo o
elemento cultural e deixando o grupo produtor de seu significado em seu espaço
de exclusão social. O que mudou, é que agora o mercado entendeu que continuar
na dinâmica de apropriação cultural não coaduna com a sensibilidade emergente
no mundo social que diz respeito, justamente, não mais ao signo, mas ao
produtor de significado. Não adianta trazer a cultura negra, se não trouxer a
comunidade negra para a pauta publicitária e dar a ela seu lugar de fala por
direito. Não adianta trazer signos do mundo LGBTQ+, se não trouxer o indivíduo que
produz os significados codificados em produtos, suas dores, sua experiência,
sua vivência.
Então, quem se incomoda com um homem trans como pai
numa campanha de marca de cosméticos, tem uma questão muito maior do que
"o cancelamento da marca" para lidar, sua questão é com o código
cultural presente, com os valores que hoje são compartilhados e moldam a
perspectiva, o pensamento e o comportamento das pessoas. Seu problema é com um
mundo em mudança, não com uma marca. E cada um escolhe as batalhas que quer
lutar.
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