sexta-feira, 31 de julho de 2020

Thammy Miranda, Natura, a categoria social pai e o que a antropologia do consumo tem a ver com isso

·        Publicado em 29 de julho de 2020

Valéria Brandini, PhD

 "You can't stop the world from changing, dad". Essa frase é da personagem Blanca Trueba, filha de Steban Trueba, na obra "A casa dos espíritos" de Isabel Allende (1985), dita quando a jovem conversa com o pai, um latifundiário conservador, a respeito das revoltas de trabalhadores e do momento revolucionário do Chile no início dos anos 1970. A frase diz muito sobre os tempos em que vivemos e sobre a forma como as pessoas em seus diferentes backgrounds percebem e se relacionam com as mudanças de paradigmas de um mundo vivendo entre extremos.

 Como cientista social, meu papel não é dizer às pessoas, em especial, às empresas, o que elas devem ou não abraçar ideologicamente, ou rechaçar, mas traçar um mapa das sensibilidades emergentes e investigar a forma como as pessoas absorvem esses indicadores culturais de valores e como reagem a eles, conforme os códigos de valores estruturantes de seu grupo social. E hoje, mais do que nunca, a sensibilidade à diversidade e à inclusão social emerge como a tônica determinante do consumo ideológico. Eu ouvi consumo? Sim. Pois o que mais consumimos, para além de produtos, são significados codificados em bens e em todo tipo de comunicação, da pauta jornalística à publicitária. O mercado e a publicidade sempre operaram como um léxico dos significados do momento presente, já dizia o antropólogo Everardo Rocha (1985), pois o mercado precisa absorver essas sensibilidades emergentes para codificar produtos e criar o "cenário que embala" os bens de consumo, o que hoje entendemos como storytelling.

 Sem essa "codificação" atribuída aos bens, os produtos não teriam o capital simbólico percebido que se converte em capital financeiro, ou seja, no mundo do homo economicus, eles não teriam "valor percebido" suficiente para orientar o princípio de tomada de decisão de consumo. Um perfume é apenas um líquido que ao ser utilizado na pele emana um odor. Mas o que desperta um universo de sentidos associados a esse odor para o consumidor tem a ver com a marca que o produz e todos os significados atribuídos por meio da construção simbólica da propaganda. A publicidade traz o "cenário", o sistema da moda, da produção e reprodução de tendências incorporadas a bens que, conforme Grant McCracken (2004), compõe o par que transmite os significados do mundo social em que vivemos, do mundo culturalmente construído aos produtos.

 Toda essa introdução de Antropologia do Consumo para dizer que, não importa se você, como indivíduo, aceita ou não, reconhece como legítimo, ou não, o fato de a marca Natura trazer o pai transexual Thammy Miranda como seu ícone para a campanha de Dia dos Pais. A fricção causada pela polêmica da campanha faz parte de todo o composto da incorporação de sensibilidades emergentes na codificação de produtos. A própria tentativa de "cancelamento" por parte de indivíduos e grupos conservadores também é um elemento chave desse mosaico, pois vai instigar ânimos e posições contrárias e favoráveis e isso vai levar a marca ao topo dos trend topics. E se perder consumidores, também é parte da contabilização de perdas e ganhos que contempla a estratégia de campanha a partir do posicionamento de marca frente a indicadores culturais do momento presente.

 As marcas, o mercado, a publicidade não "criam" esses temas, apenas se apropriam deles para atribuir os sistemas de significados da nossa sociedade - seus pontos de fricção, suas dores e suas alegrias - aos bens de consumo, a começar pela comunicação que consumimos. Então, se você, sua família, seu grupo de amigos, seu grupo ideológico não aceitam que um homem trans seja o símbolo de pai na campanha de uma marca, sua "treta" não é com essa marca, é com a sociedade e sua constante transformação no código de valores culturalmente construído e socialmente operado. Sua briga não é com a Natura, mas é com o mundo que está mudando - sempre - e que no presente imediato incorpora como código cultural a perspectiva e lugar de fala de grupos que foram durante a história humana, oprimidos, excluídos, execrados, destituídos de poder e de lugar de fala. E minha perspectiva aqui não é militante, nem passional, mas baseada em indicadores culturais e mapeamento de sensibilidades emergentes e sua capilarização na sociedade como um todo.

 A cultura das bordas sempre foi o maior polo de inovação para o mercado, que sempre se apropriou, expropriou e manipulou os signos de movimentos e manifestações de grupos excluídos para codificar produtos, trazendo o signo e deixando o significado de fora, trazendo o elemento cultural e deixando o grupo produtor de seu significado em seu espaço de exclusão social. O que mudou, é que agora o mercado entendeu que continuar na dinâmica de apropriação cultural não coaduna com a sensibilidade emergente no mundo social que diz respeito, justamente, não mais ao signo, mas ao produtor de significado. Não adianta trazer a cultura negra, se não trouxer a comunidade negra para a pauta publicitária e dar a ela seu lugar de fala por direito. Não adianta trazer signos do mundo LGBTQ+, se não trouxer o indivíduo que produz os significados codificados em produtos, suas dores, sua experiência, sua vivência.

 Então, quem se incomoda com um homem trans como pai numa campanha de marca de cosméticos, tem uma questão muito maior do que "o cancelamento da marca" para lidar, sua questão é com o código cultural presente, com os valores que hoje são compartilhados e moldam a perspectiva, o pensamento e o comportamento das pessoas. Seu problema é com um mundo em mudança, não com uma marca. E cada um escolhe as batalhas que quer lutar.

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