segunda-feira, 25 de novembro de 2019


As tecnologias nos contos de fadas

Délcio Teobaldo

As pedrinhas deixadas por Joãozinho, no chão da floresta, para sinalizar a ele e à imã Maria, a volta segura para casa, seriam um Protótipo de Baixa Fidelidade do atual sistema de posicionamento global (GPS)?! Por que não? Ora, assim como, pelos séculos dos séculos, os Contos de Fadas têm transmutado a realidade em fantasia; sem perder o fluxo, na mesma vibe (pensei usar aqui a palavra dinâmica, mas vibe é mais adequada ao tema), as novas tecnologias comprovam que, hoje, quaisquer fantasias podem se tornar reais.

Sonhos prototipados, num mundo onde, sem dúvida, o “Abre-te e o fecha-te Sésamo!” de As Mil e uma Noites, assim como o Tapete Voador, eram Protótipos de Alta Fidelidade das senhas de comando de voz e dos drones tripulados. Seriam os hieróglifos, emojis? Seria o desafio “Decifra-me ou devoro-te?”, da Esfinge de Tebas, a senha derradeira que daria ao usuário o acesso seguro ao pluriverso da Internet? Por que não?

A partir dessas evidências, proponho as releituras, tão urgentes, quanto necessárias, dos Contos de Fadas sob a ótica das tecnologias. A troca é justa: se, através dos contos ancestrais, herdamos a fantasia e, dela, extraímos a força e a possibilidade de sonhar acima e muito além do óbvio, nada mais compatível que, pelo bem do próprio bem desta geração, sejam respeitados seus ideogramas, tanto quanto deve ser mantida a reverência à oralidade, onde o contos foram gerados e ao abecedário, que os mantém vivos e interessados.

Esse respeito, reverência e reconhecimento se baseiam, logicamente, em perpetuar o “quem conta um conto aumenta um ponto”, pois a fantasia é um alinhavo sempre pra frente. Ascendente. Transcendente. O respeito, reverência e reconhecimento se baseiam, também, no compromisso de continuarmos conjugando o verbo ser no passado, pois sempre foi e será “Era uma vez...”, não importa o deslumbramento pelas belezas do presente, porque a criação e a fantasia sempre estarão (devem estar!) a um passo da realidade, não importa se os avanços da Tecnologia da Informação (TI) nos coloquem, diariamente, no ventre do seu admirável assombro novo.

Nesses tempos em que o fantasma da Nomofobia ronda corações e mentes e amplia a lista de doenças a que estão vulneráveis os que têm medo irracional de ficar sem o celular ou quaisquer meios de interação e compartilhamento, nada mais saudável e sensato que amenizar danos, num mergulho ao mundo do “Era uma vez...” (Re) imaginar, experimentar, fazer contrapontos, um exercício que, seja aplicado à música ou às partilhas cotidianas, sempre harmoniza. Enriquece. Oxigena. Poderia, para isto, utilizar, como reconto, a tela do smartphone, associando-a à deslumbrante Toca do Coelho Branco de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll... Ou, quem sabe, invocar Kobold, o duende que habita as minas. O demônio brincante que, se não for respeitado, enlouquece tanto aqueles que se aventuram pelo coração da terra, sem lhe pedir licença, quanto os que vivem na superfície.

Seria um caminho seguro a seguir, afinal, Kobold e Cobalto, o minério azulado que sai das minas da República Democrática do Congo para alimentar as empresas fabricantes de celulares, são sinônimos. Estaria Kobald, fazendo valer sua natureza mágica, atazanando o cotidiano dos usuários de celulares que, além de o ignorarem, sequer o agradecem, pelas maravilhas que essas ferramentas, simples artefatos da metalurgia, acrescentam às suas vidas? Os celulares estão sendo manuseados de maneira afetiva e cuidadosa, como Kobold exige, seja utilizado o minério que ele fornece ao bem estar lúdico e para otimizar as relações humanas? Hem?

Bom, aqui caberiam todas as perguntas e especulações possíveis, mas vou me limitar ao reconto do clássico João e Maria (Hansel e Gretel), dos Irmãos Grimm. Não há motivo especial, mas como iniciei o artigo falando do conto, ensina a boa norma da oralidade, uma vez puxado, não se deve soltar o fio da meada. Então...

Partindo do princípio que, na tentativa de reencontrar o caminho de volta à casa dos pais, Joãozinho antecipou em centenas de anos a criação do GPS, podemos afirmar, sem receio algum, pois somente a fantasia se permite contrariar a Rosa dos Ventos, que a Casa de Doces da Bruxa Ranheta era um gigantesco smartphone. Afinal, quem resiste ao desejo de saborear (não se esqueçam que sabor e saber possuem o mesmo radical latino, sapere), tocar, provar, experimentar o alcance, os recursos de um tablet, ou de um celular, achados numa floresta?

Foi o que Joãozinho e Maria fizeram, devorando a casa da Bruxa Sinistra. E por que ela era cega? Ora, ora, mesmo sabendo o que é Nomofobia, todos os fabricantes de celulares, assim como a Bruxa Cabulosa, também, não fazem vista grossa, fecham os olhos ou se fingem de cegos diante disso? E para fechar este reconto, vamos desfazer, definitivamente, o enredo em que Joãozinho era o protagonista da história ou que a Bruxa Carcereira planejava comê-lo, após a engorda. O que ela queria, realmente, era ter o domínio da senha digital de Joãozinho para, a partir dela, navegar no mundo virtual. Vasto. Ilimitado. Sem vassoura voadora. Livre. Leve. Solta. Por isso, semanalmente, verificava se o menino havia “engordado”, se estava no ponto, ou melhor, empanturrado de guloseimas e satisfeito, a ponto de oferecer-lhe a senha digital. Não fosse esta a intenção ou a verdade, que explicação pode ser dada ao ato de avaliar a engorda de alguém, com a ordem bizarra: “Mostre-me o dedo!”?
Mais surreal, impossível, mas é do improvável que se alimentam as fantasias...

Rio de Janeiro, 11 de novembro de 2019

A terra treme


*A terra treme*
Mario Sérgio Conti
23.nov.2019 às 2h00


NO MUNDO...
É tanta revolta que, para não esquecer nenhuma, é bom botá-las em ordem alfabética. Em um mês, houve rebeliões na Argélia, Catalunha, Chile, Colômbia, Equador, Haiti, Hong Kong, Irã, Iraque e Líbano. Milhões e milhões de pessoas querem mudar de vida. Agora, e não depois.

Diferentes entre si, os motins têm traços insurrecionais pela duração (desde fevereiro, Argel fecha para protestos às sextas-feiras), pela abrangência (em Santiago, mais de um milhão de pessoas participaram de uma passeata) e pela coragem (centenas de mortos em Teerã e Bagdá).

Na regra, os levantes começaram com demandas particulares que logo se alastraram. Secundaristas pularam catracas do metrô para se insurgir contra o aumento das passagens —e em dez dias uma greve geral parou o Chile.

O governo libanês quis impor uma taxa para mensagens de WhatsApp —e 12 dias depois o primeiro ministro se demitiu. O reajuste da gasolina desencadeou quebra-quebras em Quito. A corrupção alimentou convulsões em Bagdá e Teerã.
As reivindicações foram atendidas e as praças não se aquietaram. A China voltou atrás na intenção de querer que o Partido Comunista julgasse os dissidentes de Hong Kong. Mas, como quando da renúncia do presidente argelino, a contestação só fez aumentar.

Com o quebra-quebra,  governo chileno teve que convocar plebiscito sobre constituinte. No Líbano, a palavra de ordem passou a ser a unidade nacional, acima das divisões religiosas. O separatismo ganhou força na Catalunha e em Hong Kong.

É preciso aguardar os desdobramentos para avaliar a insurgência. Dá para dizer, contudo, que ela lembra as revoluções europeias de 1848 e tem algo da explosão do stalinismo, em 1989-1991. Parece um segundo momento da Primavera Árabe de 2011, só que agora em vários cantos do globo.

Embora o seu alcance geográfico seja muito maior, as explosões não pegaram em cheio os países centrais. Mas, também neles, algo fermenta: coletes amarelos na França; passeatas pró e contra o brexit na Inglaterra; a greve da GM nos Estados Unidos.

O que fermenta é a insatisfação com a política apodrecida. Com o status quo criado pela economia neoliberal. Com a ordem mundial sino-americana. Com a espoliação de milhões por um punhado de bilionários. O combustível da turbulência é a desigualdade social.

As multidões sabem o que repudiam. Mas apenas intuem o que querem: justiça, democracia, igualdade.

Os poderes constituídos têm horror a isso. Sua reação automática foi cair de pau na plebe rude.

A teocracia tirou a internet do ar no Irã e, segundo a Anistia Internacional, matou mais de cem. O exército encarcerou dezenas de dissidentes na Argélia, a começar pela médica Louisa Hanoune. A polícia chilena atirou na cabecinha e cegou dezenas de insatisfeitos.

JÁ NO BRASIL...

As multidões cantam seus mutilados e mártires. E os bens de vida zelam para que os pés-rapados não se aposentem nunca, os desempregados sejam taxados e o agronegócio queime a Amazônia: é cultural, tá oquei?

Bolsonaro vem se armando para enfrentar eventuais revoltas. Pôs 2.500 militares em ministérios e cargos de chefia (Folha de 14/10). Moro quase dobrou o contingente verde-oliva no Ministério da Justiça; e toda a milicada trabalha fardada às quartas-feiras.

*Agora, o presidente mandou ao Congresso um projeto de lei que isenta de punições policiais e militares que, em defesa da lei e da ordem, “cometam excessos”. Na prática, inocenta previamente soldados e meganhas que cegarem, aleijarem ou matarem quem protestar contra Bolsonaro.*

Por fim, lançou a Aliança pelo Brasil. Seu manifesto de fundação fala em “ordem nova”, “degeneração moral” e de “livrar o país dos larápios, dos espertos, dos demagogos e dos traidores”. É explícito: não usa nunca a palavra democracia.

A Aliança não precisa disputar as próximas eleições, como admitiu. Seu objetivo implícito é juntar a banda podre das polícias, do Exército, das seitas, das milícias e de toda a corja lúmpen numa organização de combate —de luta ideológica e física, nas ruas.

*Enquanto os bem-pensantes batem papo sobre 2022, e avaliam as chances de Huck e Haddad, Bolsonaro se prepara. Tem o apoio de empresários e de Guedes, de moralistas e de Moro, de generais e de Villas Bôas, de pastores e do bispo Macedo, do “império” e de Trump.*

Continuará a provocar arruaças, a destruir direitos e a solapar as liberdades públicas. Se a revolta vier e tiver condições, Bolsonaro posará de salvador da pátria, de Bonaparte. Tentará um golpe.

*Mario Sergio Conti*
*Jornalista, é autor de "Notícias do Planalto".*