quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Boaventura: Mensagem aos democratas brasileiros Que fazer?

A democracia brasileira está em perigo, e só as forças políticas de esquerda e de centro-esquerda a podem salvar. Mas só podem ter êxito nesta exigente tarefa caso se unam.
Publicado em 26/01/2018
Por Boaventura de Sousa Santos.

Em momentos sombrios como os nossos é imperativo escutar vozes de lucidez de pessoas que conhecem nosso país. Entre tantas, sobressai o sociólogo português Boaventura de Souza Santo.É considerado uma das melhores cabeças que pensam o mundo, a globalização, a partir do Grande Sul. Fez sua tese morando numa favela do Brasil, para conhecer por dentro o mundo da pobreza. Professor em Colimbra e em Wisconsin-Madison nos USA, ganhou fama mundial por ter introduzido várias categorias sociológicas novas para entender o mundo novo que está nascendo. Publicamos aqui seu apelo aos democratas do Brasil pelo amor que tem por nosso país e por seu povo. Lboff
Dirijo-me aos democratas brasileiros porque só eles podem estar interessados no teor desta mensagem. Vivemos um tempo de emoções fortes. Para alguém, como eu e tantos outros que nestes anos acompanhamos as lutas e iniciativas de todos os brasileiros no sentido de consolidar e aprofundar a democracia brasileira e contribuir para uma sociedade mais justa e menos racista e menos preconceituosa, este não é um momento de júbilo. Para alguém, como eu e tantos outros que nas últimas décadas se dedicaram a estudar o sistema judicial brasileiro e a promover uma cultura de independência democrática e de responsabilidade social entre os magistrados e os jovens estudantes de direito, este é um momento de grande frustração. Para alguém, como eu e tantos outros que estiveram atentos aos objetivos das forças reacionárias brasileiras e do imperialismo norte-americano no sentido de voltarem a controlar os destinos do país, como sempre fizeram mas pensaram que desta vez as forças populares e democratas tinham prevalecido sobre eles, este é um momento de algum desalento.
As emoções fortes são preciosas se forem parte da razão quente que nos impele a continuar, se a indignação, longe de nos fazer desistir, reforçar o inconformismo e municiar a resistência, se a raiva ante sonhos injustamente destroçados não liquidar a vontade de sonhar. É com estes pressupostos que me dirijo a vós. Uma palavra de análise e outra de princípios da ação.
Porque estamos aqui? Este não é lugar nem o momento para analisar os últimos quinze anos da história do Brasil. Concentro-me nos últimos tempos. A grande maioria dos brasileiros saudou o surgimento da operação Lava Jato como um instrumento que contribuiria para fortalecer a democracia brasileira pela via da luta contra a corrupção. No entanto, em face das chocantes irregularidades processuais e da grosseira seletividade das investigações, cedo nos demos conta de que não se tratava disso mas antes de liquidar, pela via judicial, não só as conquistas sociais da última década como também as forças políticas que as tornaram possíveis. Acontece que as classes dominantes perdem frequentemente em lucidez o que ganham em arrogância.
A destituição de Dilma Rousseff, a Presidente que foi talvez o Presidente mais honesto da história do Brasil, foi o sinal que a arrogância era o outro lado da quase desesperada impaciência em liquidar o passado recente. Foi tudo tão grotescamente óbvio que os brasileiros conseguiram afastar momentaneamente a cortina de fumo do monopólio mediático. O sinal mais visível da sua reação foi o modo como se entusiasmaram com a campanha pelo direito do ex-Presidente Lula da Silva a ser candidato às eleições de 2018, um entusiasmo que contagiou mesmo aqueles que não votariam nele, caso ele fosse candidato. Tratou-se pois de um exercício de democracia de alta intensidade.
Temos, no entanto, de convir que, da perspectiva das forças conservadoras e do imperialismo norte-americano, a vitória deste movimento popular era algo inaceitável. Dada a popularidade de Lula da Silva, era bem possível que ganhasse as eleições, caso fosse candidato. Isso significaria que o processo de contra-reforma que tinha sido iniciado com a destituição de Dilma Rousseff e a condução política da Lava Jato tinha sido em vão. Todo o investimento político, financeiro e mediático teria sido desperdiçado, todos os ganhos econômicos já obtidos postos em perigo ou perdidos. Do ponto de vista destas forças, Lula da Silva não poderia voltar ao poder. Se o Judiciário não tivesse cumprido a sua função, talvez Lula da Silva viesse a ser vítima de um acidente de aviação, ou algo semelhante. Mas o investimento imperial no Judiciário (muito maior do que se pode imaginar) permitiu que não se chegasse a tais extremos.
Que fazer? A democracia brasileira está em perigo, e só as forças políticas de esquerda e de centro-esquerda a podem salvar. Para muitos, talvez seja triste constatar que neste momento não é possível confiar nas forças de direita para colaborar na defesa da democracia. Mas esta é a verdade. Não excluo que haja grupos de direita que apenas se revejam nos modos democráticos de lutar pelo poder. Apesar disso, não estão dispostos a colaborar genuinamente com as forças de esquerda. Por quê? Porque se vêem como parte de uma elite que sempre governou o país e que ainda não se curou da ferida caótica que os governos lulistas lhe infligiram, uma ferida profunda que advém do facto de um grupo social estranho à elite ter ousado governar o país, e ainda por cima ter cometido o grave erro (e foi realmente grave) de querer governar como se fosse elite.
Neste momento, a sobrevivência da democracia brasileira está nas mãos da esquerda e do centro-esquerda. Só podem ter êxito nesta exigente tarefa se se unirem. São diversas as forças de esquerda e a diversidade deve ser saudada. Acresce que uma delas, o PT, sofre do desgaste da governação, um desgaste que foi omitido durante a campanha pelo direito de Lula a ser candidato. Mas à medida que entrarmos no período pós-Lula (por mais que custe a muitos), o desgaste cobrará o seu preço e a melhor forma de o estabelecer democraticamente é através de um regresso às bases e de uma discussão interna que leve a mudanças de fundo. Continuar a evitar essa discussão sob o pretexto do apoio unitário a um outro candidato é um convite ao desastre. O patrimônio simbólico e histórico de Lula saiu intacto das mãos dos justiceiros de Curitiba & Co. É um patrimônio a preservar para o futuro. Seria um erro desperdiçá-lo, instrumentalizando-o para indicar novos candidatos. Uma coisa é o candidato Lula, outra, muito diferente, são os candidatos de Lula. Lula equivocou-se muitas vezes, e as nomeações para o Supremo Tribunal Federal aí estão a mostrá-lo.
A unidade das forças de esquerda deve ser pragmática, mas feita com princípios e compromissos detalhados. Pragmática, porque o que está em causa é algo básico: a sobrevivência da democracia. Mas com princípios e compromissos, pois o tempo dos cheques em branco causou muito mal ao país em todos estes anos. Sei que, para algumas forças, a política de classe deve ser privilegiada, enquanto para outras, as políticas de inclusão devem ser mais amplas e diversas. A verdade é que a sociedade brasileira é uma sociedade capitalista, racista e sexista. E é extremamente desigual e violenta. Entre 2012 e 2016 foram assassinadas mais pessoas no Brasil do que na Síria (279.000/256.000), apesar de este último país estar em guerra e o Brasil estar em “paz”. A esquerda que pensar que só existe política de classe está equivocada, a que pensar que não há política de classe está desarmada.

Boaventura de Sousa Santos nasceu em Coimbra, 15 de Novembro de 1940. É doutor em Sociologia do Direito pela Universidade de Yale (1973), além de professor catedrático jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e distinguished legal scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Foi também global legal scholar da Universidade de Warwick e professor visitante do Birkbeck College da Universidade de Londres. Seu livro mais recente é A difícil democracia: reinventar as esquerdas (Boitempo, 2016). Pela Boitempo, publicou também Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social (2007). Colabora com o Blog da Boitempo esporadicamente.


terça-feira, 30 de janeiro de 2018

Como diferenciar fascistas e fanáticos de libertários?, por Marcio Valley

Ao terminar a leitura do texto "O que querem os fanáticos fundamentalistas? Por que dialogar com eles?", da psicóloga Rita Almeida, envolveu-me o mesmo tipo de reflexão preocupante que tive ao término da leitura do livro Como conversar com um fascista, da Marcia Tiburi. A mesma dúvida que assaltou a Rita Almeida ao final de seu artigo, me atravessou em ambos os casos: seria eu um fascista ou, no caso do texto da Rita, um fanático?

A razão de minha inquietação íntima diz respeito ao modo assertivo e enfático com o qual costumo defender meus posicionamentos, característica facilmente identificável nos fascistas e fanáticos. Não que me sinta incapaz de ser convencido ou que me faça surdo aos argumentos alheios. Porém, ao mesmo tempo que percebo em mim imensa capacidade de tolerar a ignorância dos desfavorecidos pela fortuna, sinto-me muito pouco tolerante com a estupidez ou vilania ética de quem devia, pelas circunstâncias da própria vida, pelas oportunidades decorrentes do privilégio social, possuir uma visão mais plena e humanista da realidade. Exatamente por isso, procedi a uma revisão geral das pessoas que posso continuar a considerar amigas após a clivagem social provocada pela imensa dissensão política que testemunhamos no país. Os estúpidos que não deveriam ser estúpidos foram extirpados de minhas amizades. Sem problema em conviver socialmente com essas pessoas, mas amizade é outra coisa; pressupõe alguma afinidade de sentimentos, valores e pensamentos. Um abolicionista, a meu ver, não pode ser amigo de um escravocrata.

Como seria possível, de forma lógica e racional, excluir alguém de discurso enérgico da infame categoria dos fascistas e fanáticos?

Penso que convicções sobre a sociedade, ainda que ardorosamente defendidas, desde que fundadas em análise aprofundada da realidade alcançada através da leitura diversificada, refletida e crítica de grandes autores das ciências humanas e sustentada em visões que valorizam a dignidade humana, a liberdade na autodeterminação pessoal, a defesa da diversidade cultural e comportamental características dos indivíduos e, resultado de tudo isso, ao direito individual de encaminhar o próprio florescimento pessoal, são estrutural e valorativamente distintas daquelas advogadas por fascistas e fanáticos. As ideias desses últimos são, essencialmente, restritivas ao direito individual, enquanto as primeiras buscam alargar a bitola das possibilidades materiais da existência livre.

A pessoa que defende a redução das desigualdades humanas socialmente estabelecidas - de gênero, étnica, de orientação sexual, política ou qualquer outra que dignifique a existência - jamais poderá ser considerada um fanático ou um fascista, que atua exatamente em direção ao oposto disso, ou seja, no sentido da manutenção das hierarquias e redução do livre pensamento. Nesse sentido, é impossível comparar, como recentemente fez Donald Trump, o famigerado elemento que pratica a violência como integrante da Ku Klux Klan com aquele que a refuta assertivamente como instrumento para impedir a atuação dessa entidade racista. Não se trata de dois fanáticos atuando, um em cada polo de um comportamento que poderia ser classificado como fascista, mas de um fanático e fascista sendo contrastado energicamente por um libertário. Este último encontra justificativa em sua ação na própria Carta dos Direitos Humanos, enquanto a atitude daquele é fundada na infâmia e no desejo abjeto de distinção social pela cor da pele, fruto do acaso do nascimento.

A indagação que faço é: ao racista ou homofóbico deve ser dado o mesmo espaço de diálogo e escuta que a de um libertário? Penso que não. Ainda que se possa conceder a ele o direito de se expressar livremente, deve encontrar resposta rápida e vigorosa que interrompa a sua fala, bem como ouvidos surdos para escutá-la. Nenhuma atenção deve ser dada a quem defende a indignidade, salvo para refutá-la com energia.

Paralelamente, o mundo aparentemente está encontrando uma realidade de ressonância ao histórico abandono material e cultural da imensa maioria da população. Em todas as épocas, aproximadamente, um por cento da população deteve praticamente toda a riqueza, dez por cento serviu de cão de guarda do poder (hoje, é chamada de classe média), enquanto os demais amargavam as dores da pobreza e da miséria. Da mesma forma, cerca de dez por cento tinham e tem acesso ao capital cultural, relegando-se os demais à ignorância da realidade real e à ilusão provocada pelo discurso hegemônico. Atualmente, essa massa miserável e ignara, incapaz de produzir pensamento próprio e crítico, se entrega de modo cada vez mais voraz ao fast food do pensamento: a religião e o fascismo político baseado nos memes, chavões e bordões autoritários e elitistas compartilhados à exaustão pelas redes sociais. O discurso tencionava criar um gado manso e de fácil condução, mas ele está se tornando um leviatã indomável e imune à inteligência.

Não resta dúvida de que é fundamental manter as portas abertas para o diálogo. Há de se perguntar, porém, se é possível dialogar com a infâmia.