domingo, 18 de dezembro de 2022

A escola não pode ser uma empresa porque a lógica da educação não é a do mercado*

Nuccio Ordine

Revista Prosa Verso e Arte

 

O professor universitário Nuccio Ordine contesta as “universidades-empresa” e defende mais investimento na educação, nomeadamente nos estudos clássicos.

Nuccio Ordine** acabou há pouco um périplo pela América Latina, depois Lisboa, onde realizou a conferência “A utilidade dos saberes inúteis”, na Torre do Tombo, a convite da Fundação Francisco Manuel dos Santos. A conferência está baseada no livro que publicou em 2013.

O livro “A Utilidade do Inútil”, publicado pela Kalandraka, foi traduzido para 20 línguas, está em 30 países e já vendeu mais de 200 mil exemplares. Neste, o professor italiano da Universidade de Calabria, filósofo e especialista na obra de Giordano Bruno, critica a lógica do lucro que chegou ao mundo do ensino e da investigação e propõe uma reflexão sobre quais são os verdadeiros saberes que podem ajudar a sair da crise.

Abaixo a entrevista concedida à Bárbara Wong, do jornal ‘Público’.

Finalizando Nuccio Ordine cita Victor Hugo e a necessidade de se investir na educação“Seria necessário multiplicar as escolas, as disciplinas, as bibliotecas, os museus, os teatros, as livrarias.”

Actualmente temos gente muito competente à frente de empresas ou de governos, altamente especializada, mas que não sabe identificar uma peça de Bach ou nunca leram Thoman Mann. A escola falhou?

Esse é o grande problema da contemporaneidade: temos gente superespecializada e que perdeu o sentido geral e global do saber. Hoje as escolas e as universidades preparam os alunos para seguirem uma especialização e isso é muito perigoso. Estas devem proporcionar uma cultura geral. Einstein já dizia que a especialização mata a curiosidade e esta está na base do avanço da ciência e da tecnologia. Por exemplo, a atual directora do CERN [o laboratório europeu de física de partículas] é uma italiana [Fabiola Gianotti] que fez estudos clássicos no liceu, aprendeu piano durante dez anos, mas é uma grande física. Os maiores arquitectos italianos, como Renzo Piano, fizeram estudos clássicos. Portanto é preciso ter uma cultura geral de base.

O que é preciso mudar no ensino?

O meu livro é um grito de alarme. Quando pergunto aos meus alunos por que estão na universidade, respondem-me que é para obter um diploma. Um diploma não serve para nada! Há uma visão utilitarista da educação que mata a ideia de escola. Vamos à escola para sermos pessoas cultas! Para sermos pessoas melhores, para sermos éticos, não importa o curso.

Na apresentação do meu livro, viajei de Norte a Sul de Itália e os estudantes diziam-me: “Professor, adoro os gregos e os latinos, mas os meus pais perguntam-me ‘o que vais fazer com literatura? Porque não te inscreves num curso onde possas vir a ganhar dinheiro?’ Isto é a corrupção da ideia do que deve ser a universidade! É corromper os estudantes. Temos médicos que o são porque ganham muito dinheiro e não por razões humanitárias e não pelo que prometem no juramento de Hipócrates. Esta corrupção – a ideia de ganhar muito dinheiro – atravessa a sociedade inteira, chega à política, à economia. Por isso temos corrupção no mundo inteiro.

Costumo ler uma história belíssima de Kavafis [poeta grego, 1863-1933] sobre Ítaca, a história de Ulisses, que diz que a experiência da viagem é que fará de ti um homem rico, fará de ti um homem melhor. Se não fizeres essa experiência, de nada te servirá chegar a Ítaca.

Isso significa?

Significa que devemos estudar por amor ao conhecimento, por amor à aprendizagem, para que sejamos homens e mulheres livres. Os alunos têm de compreender que não há saber sem conhecimento e que só se é livre se formos sábios. E isso não têm nada a ver com o mercado e com aquilo que este pede.

No seu livro critica as universidades-empresa.

Contesto a ideia de que as universidades sejam empresas. A nossa missão não deve ser vender diplomas que os estudantes compram. Isso é uma enorme corrupção. A escola não pode ser uma empresa porque a lógica da educação não é a do mercado. O princípio da educação é aprender a ser melhor, para si mesmo e não para o mercado. O que vemos na City em Londres [no centro financeiro britânico] são pessoas com elasticidade mental, pessoas que vêm dos estudos clássicos ou da filosofia porque compreendem melhor o mundo do que os especialistas em economia ou programação.

As consequências da Declaração de Bolonha, que veio alterar a forma como o ensino superior está organizado, são negativas?

Bolonha foi muito dura para o futuro do ensino. Há coisas graves, a começar no léxico, as palavras não são neutras, têm significado, e quando as primeiras palavras que os alunos aprendem, quando chegam ao ensino superior, é “créditos” e “débitos”, impomos uma lógica da economia no ensino. As universidades recebem financiamento consoante os seus resultados, quanto mais alunos com sucesso, mais financiamento recebem, e assim baixa-se o nível para todos passarem. Ninguém vai avaliar a qualidade, só a quantidade. Deixa-se de financiar as pesquisas de base, mas se não fossem essas não seria possível fazer ciência. As grandes revoluções são fruto de pesquisas de base. Por isso, é preciso redireccionar as coisas porque o inútil de hoje pode ser o útil de amanhã.

Que modelo de escola é que defende?

Costumo contar aos meus alunos que Albert Camus, quando ganhou o Nobel da Literatura, fez duas coisas: escreveu uma carta à sua mãe e uma ao seu professor da escola média [3.º ciclo do básico], Louis Germain. Foi ele que o incentivou a continuar a estudar, porque Camus era bom aluno, embora pobre. Camus agradeceu ao seu professor tudo o que fez por ele. É essa a escola que quero! Uma escola em que o professor e o aluno estejam no centro e os professores não estejam soterrados em burocracias. Os professores perderam a paciência para ensinar e a paciência tem de estar no centro da pedagogia.

E os pais? O que podem fazer para criar seres humanos mais completos: dar um computador ou um smartphone ou levar os filhos ao teatro ou a um concerto?

Comprar o computador e levá-los ao teatro, a ler poesia, a ouvir um concerto porque tudo isso pode mudar a vida de uma pessoa. A música pode fazer milagres, como pode a ciência. O poder libertado do utilitarismo pode tornar a humanidade mais humana.

*Entrevista originalmente publicada no jornal português ‘Público’, 21.10.2017.

**Nuccio Ordine é professor, filósofo e crítico literário italiano, um dos mais importantes estudiosos da Renascença na atualidade, especialmente sobre o filósofo Giordano Bruno.

  

quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

NORMALIZAÇÃO: Nada se cria, nada se perde e nada se Transforma

 O título nada mais é do que uma brincadeira com a Lei de Lavoisier: nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”. Mas no mundo em que vivemos, em especial no Brasil, tudo é normalizado. Da ameaça de morte a um presidente recentemente eleito a um simples esbarrão, tudo pode acabar, ou começar, em tiro e nada será feito. Ninguém será incomodado pela LEI ou pelas autoridades. Em especial quando os implicados forem cidadãos de bem. A ponto de todos acharem graça, quando um bando de imbecis ficam mandando sinais luminosos, com seus celulares na cabeça, talvez na esperança de contactarem um Darth Vader e o lado escuro da Força. Até porque, Luke, a princesa Leia, Obi-Wan Kenobi e Hans Solo, ficariam no mínimo incomodados com a situação.

Este processo vem se “normalizando” desde o momento que se passou a criminalizar a política, antecedido pela fakes news e a lawfare, que são processos seculares, hoje com nome moderninho. O problema é que hoje, temos a Internet que tanto pode ser usada para o bem como para o mal. Depende só de você...

Fato, é que na pandemia, todos torciam por um Novo Normal. E eu dizia que Novo Normal seria cocô perfumado, e torcia para que aprendêssemos a lição que a Natureza nos colocou/coloca e transformássemos este mundo. Mas continuamos a passos largos na direção de sua extinção, como se os dois anos da COVID-19 sequer tenham existido.

Délcio Teobaldo, minerim de Maricá, tinha uma frase que repito e escrevo muito, que representa bem o que devemos fazer: Transformar em imperdoável o que hoje é aceitável. Pois lembrei muito da frase no evento de lançamento da Semana dos Direitos Humanos, que aconteceu em Maricá, neste dia 06.12.22. Todas as falas foram verdadeiras e centralizadas no tema e na necessidade de se empoderar a população do que acontece em Maricá e o porquê acontece. Uma discussão que também não é nova e continua pertinente, aqui e no Brasil.

Fato, e sentimos isso na pele, é que hoje não basta só esclarecer, também temos que DES-normalizar as nossas vidas e visões de mundo. Podemos oferecer os melhores projetos para o município, melhorar a vida de muitos. Mas enquanto vivermos o Normal ou o Novo Normal, continuaremos vivendo em um Estado de Exceção, onde crimes acontecem diariamente e nada se faz.

Precisamos TRANSFORMAR EM IMPERDOÁVEL O QUE HOJE É ACEITÁVEL.

Há braços.

Sérgio Mesquita

quarta-feira, 16 de novembro de 2022

Precisamos estudar mais KARL MARX

A principal crítica de Marx ao capitalismo é a EXPLORAÇÃO, dito isso podemos afirmar que o único país realmente socialista é Cuba e nem sequer podemos analisar o sistema econômico ou a economia porque o país sofre vários embargos econômicos há mais de 60 anos, que foram mantidos mesmo durante a pandemia (UM ABSURDO). O curioso é que mesmo diante de tanta dificuldade o país consegue fornecer SAÚDE, EDUCAÇÃO E SEGURANÇA de qualidade para o povo e tem o IDH melhor que muitos países capitalistas, como por exemplo o Brasil, que é riquíssimo em recursos naturais, não sofre embargos econômicos e mesmo assim tem o IDH pior que CUBA, o Brasil também tem altíssima concentração de renda. Já os países NÓRDICOS seguem o modelo do SOCIALISMO (estado forte, privatização APENAS dos grandes meios de produção, distribuição de renda sem exploração dos trabalhadores), o único problema desses países é que eles EXPLORAM outros países, como por exemplo o Brasil, divergindo assim do SOCIALISMO que é um sistema totalmente CONTRA a exploração, ou seja, é socialismo para eles e capEtalismo para os países explorados, é o que chamam de SOCIAL DEMOCRACIA.

Também vale destacar que não tem em nenhum lugar da obra de Marx crítica ao comércio, então não tem lógica criticar a CHINA porque comercializa com outros países, podemos criticar SIM a CHINA por explorar os seus trabalhadores e comprar estatais de outros países, ou seja, também explora outras nações.

MARX também não era CONTRA o consumo, ele queria APENAS que os trabalhadores pudessem consumir o produto do seu trabalho, lembram?! Se o trabalhador TUDO produz, então tudo pertence aos trabalhadores, ou seja, você pode sim ser um socialista de iPhone, desde que você não tenha explorado ninguém para conseguir adquirir esse iPhone, Marx queria TUDO para TODOS.

“Se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence”, (K.M). A obra inteira de K. Marx é em defesa dos TRABALHADORES e CONTRA a exploração, portanto também não tem lógica afirmar que Marx queria que todos ganhassem a mesma coisa sem fazer esforço nenhum ou sem produzir nada, na verdade esse é um dos principais motivos para o BURGUÊS SAFADO que nada faz e nada produz, espalhar tantas mentiras e ter tanta raiva de Karl Marx e do Socialismo, porque a grosso modo podemos dizer que o K. Marx queria acabar com a MAMATA da burguesia (ELITE).

"Trabalhadores do mundo, UNI-VOS!" K. MARX.

Mas, o MAIS importante é deixar claro que K. Marx queria expropriar (estatizar) APENAS os GRANDES MEIOS DE PRODUÇÃO, que além de explorar os trabalhadores e a população, também sufocavam os pequenos produtores, portanto, pode ficar tranquilo porque nenhum socialista vai ou quer tomar a sua casa, carro, lojas, pequenas fábricas... Só queremos privatizar os GRANDES meios de produção para proporcionar MAIS qualidade de vida para TODOS.

PORÉM a pergunta correta é:

No mundo capEtalista, APENAS 1% da população mundial é RICA, 99% da população mundial é POBRE e apesar de produzirem alimentos suficientes para alimentar o mundo, a FOME só aumenta no planeta. Então, ONDE o capEtalismo deu certo.

CARTA ABERTA AO PRESIDENTE LULA

 Por BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS*

O presidente Lula tem de fazer tudo para não perder o povo que o elegeu.

Prezado amigo Presidente Lula da Silva,

Quando o visitei na prisão em 30 de agosto de 2018, vivi no pouco tempo que durou a visita um turbilhão de ideias e emoções que continuam hoje tão vivas quanto nesse dia. Pouco tempo antes tínhamos estado juntos no Fórum Social Mundial de Salvador da Bahia, conversando, na companhia de Jacques Wagner, na cobertura do hotel onde Lula estava hospedado. Falávamos então da sua possível prisão. Lula ainda tinha alguma esperança de que o sistema judicial suspendesse aquela vertigem persecutória que desabara sobre si.

Eu, talvez por ser sociólogo do direito, estava convencido de que tal não aconteceria, mas não insisti. A certa altura, tive a sensação de que estávamos a pensar e a temer o mesmo. Pouco tempo depois, prendiam-no com a mesma indiferença arrogante e compulsiva com que o tinham tratado até então. Sérgio Moro, o lacaio dos EUA (é tarde demais para sermos ingênuos), tinha cumprido a primeira parte da missão. A segunda parte seria a de o manter preso e isolado até que fosse eleito o candidato que lhe daria a tribuna a ser utilizada por ele, Sérgio Moro, para um dia chegar à presidência da República.

Quando entrei nas instalações da Polícia Federal senti um arrepio ao ler a placa onde se assinalava que o presidente Lula da Silva tinha inaugurado aquelas instalações onze anos antes como parte do seu vasto programa de valorização da Polícia Federal e da investigação criminal. Um primeiro turbilhão de interrogações me assaltou. A placa permanecia ali por esquecimento? Por crueldade? Para mostrar que o feitiço se virara contra o feiticeiro? Que um presidente de boa-fé entregara o ouro ao bandido?

Fui acompanhado por um jovem polícia federal bem parecido que no caminho se vira para mim e diz: lemos muito os seus livros. Fico frio por dentro. Estarrecido. Se os meus livros fossem lidos e a mensagem entendida, nem Lula nem eu estaríamos ali. Balbuciei algo neste sentido e a resposta não se fez esperar: “cumprimos ordens”. De repente, o teórico nazi do direito Carl Schmitt irrompeu dentro de mim. Ser soberano é ter a prerrogativa de declarar que é legal o que não é, e de impor a sua vontade burocraticamente com a normalidade da obediência funcional e a consequente trivialização do terror do Estado.

Prezado Presidente Lula, foi assim que cheguei à sua cela e certamente nem suspeitou do turbilhão que ia dentro de mim. Ao vê-lo, acalmei-me. Estava finalmente na frente da dignidade em pessoa, e senti que a humanidade ainda não tinha desistido de ser aquilo a que o comum dos mortais aspira. Era tudo totalmente normal dentro da anormalidade totalitária que o encerrara ali. As janelas, os aparelhos de ginástica, os livros, a televisão. A nossa conversa foi tão normal quanto tudo o que nos rodeava, incluindo os seus advogados e a Gleisi Hoffmann, presidenta do Partido dos Trabalhadores.

Falámos da situação da América Latina, da nova (velha) agressividade do império, do sistema judicial convertido em ersatz de golpes militares, das sondagens que o continuavam a destacar, do meu receio que a transferência de votos não fosse tão massiva quanto esperava. Era como se o imenso elefante branco naquela sala – a repugnante ilegalidade da sua prisão por motivos políticos nem sequer disfarçados – se transformasse em inefável leveza do ar para não perturbar a nossa conversa como se, em vez de estarmos ali, estivéssemos em qualquer lugar de sua escolha.

Quando a porta se fechou atrás de mim, o peso da vontade ilegal de um Estado refém de criminosos armados de manipulações jurídicas caiu de novo sobre mim. Amparei-me na revolta e na raiva e no desempenho bem-comportado que se espera de um intelectual público que à saída tem de fazer declarações à imprensa. Tudo fiz, mas o que verdadeiramente senti é que tinha deixado atrás de mim a liberdade e a dignidade do Brasil, aprisionadas para que o império e as elites ao seu serviço cumprissem os seus objetivos de garantir o acesso aos imensos recursos naturais do Brasil, a privatização da previdência e o alinhamento incondicional com a geopolítica da rivalidade com a China.

A serenidade e a dignidade com que o Lula enfrentou 582 dias de reclusão é a prova provada de que os impérios, sobretudo os decadentes, erram muitas vezes os cálculos, precisamente por só pensarem no curto prazo. A imensa solidariedade nacional e internacional, que fez de si o mais famoso preso político do mundo, mostraram que o povo brasileiro começava a acreditar que pelo menos parte do que fora destruído a curto prazo poderia ser reconstruído a médio e longo prazo. A sua prisão passou a ser o preço da credibilidade dessa convicção.

 Prezado amigo Presidente Lula da Silva,

Escrevo-lhe hoje antes de tudo para o felicitar pela vitória nas eleições de 30 de outubro. É um feito extraordinário sem precedente na história da democracia. Costumo dizer que os sociólogos são bons a prever o passado, não o futuro, mas desta vez não me enganei. Nem por isso tenho maior certeza no que sinto necessidade de lhe dizer hoje. Como sei que não tem tempo para ler grandes elaborações analíticas, serei telegráfico. Tome estas considerações como expressão do que de melhor desejo para si pessoalmente e para o exercício do cargo que vai assumir.

1-Seria um erro grave pensar-se que com a sua eleição tudo voltou ao normal no Brasil. Primeiro, o normal anterior a Jair Bolsonaro era para as populações mais vulneráveis algo muito precário ainda que o fosse menos do que é agora. Segundo, Jair Bolsonaro infligiu um dano na sociedade brasileira difícil de reparar. Produziu um retrocesso civilizatório ao ter reacendido as brasas da violência típica de uma sociedade que foi sujeita ao colonialismo europeu: a idolatria da propriedade individual e a consequente exclusão social, o racismo, o sexismo, a privatização do Estado para que o primado do direito conviva com o primado da ilegalidade, e uma religião excludente desta vez sob a forma de evangelismo neopentecostal.

A fratura colonial é reativada sob a forma da polarização amigo/inimigo, nós/eles, própria da extrema-direita. Com isto, Bolsonaro criou uma ruptura radical que torna muito difícil a mediação educativa e democrática. A recuperação levará anos.

2-Se a nota anterior aponta para o médio prazo, a verdade é que a sua presidência vai ser por agora dominada pelo curto prazo. Jair Bolsonaro fez regressar a fome, quebrou financeiramente o Estado, desindustrializou o país, deixou morrer desnecessariamente centenas de milhares de vítimas da covid, propôs-se acabar com a Amazônia. O campo emergencial é aquele em que o Presidente se move melhor e em que estou certo mais êxito terá. Apenas duas cautelas. Vai certamente voltar às políticas que protagonizou com êxito, mas, atenção, as condições são agora muito diferentes e mais adversas.

Por outro lado, tudo tem de ser feito sem esperar a gratidão política das classes sociais beneficiadas pelas medidas emergenciais. O modo impessoal de beneficiar, que é próprio do Estado, faz com que as pessoas vejam nos benefícios o seu mérito pessoal ou o seu direito e não o mérito ou a benevolência de quem os torna possível. Para mostrar que tais medidas não resultam nem de mérito pessoal nem da benevolência de doadores, mas são antes produto de alternativas políticas só há um caminho: a educação para a cidadania.

3-Um dos aspectos mais nefastos do retrocesso provocado por Bolsonaro é a ideologia anti-direitos capilarizada no tecido social, tendo como alvo os grupos sociais anteriormente marginalizados (pobres, negros, indígenas, Roma, LGBTQI+). Manter firme uma política de direitos sociais, económicos e culturais como garantia de dignidade ampliada numa sociedade muito desigual deve ser hoje o princípio básico dos governos democráticos.

4-O contexto internacional é dominado por três mega-ameaças: pandemias recorrentes, colapso ecológico, possível terceira guerra mundial. Qualquer destas ameaças é global, mas as soluções políticas continuam dominantemente limitadas à escala nacional. A diplomacia brasileira foi tradicionalmente exemplar na busca de articulações, quer de âmbito regional (cooperação latino-americana), quer de âmbito mundial (BRICS). Vivemos um tempo de interregno entre um mundo unipolar dominado pelos EUA que ainda não desapareceu totalmente e um mundo multipolar que ainda não nasceu plenamente. O interregno manifesta-se, por exemplo, na desaceleração da globalização e no regresso do protecionismo, na substituição parcial do livre comércio pelo comércio com parceiros amigos.

Os Estados continuam todos formalmente independentes, mas só alguns são soberanos. E entre os últimos não se contam sequer os países da União Europeia. O Presidente Lula saiu do governo quando a China era o grande parceiro dos EUA e regressa quando a China é o grande rival dos EUA. O presidente Lula foi sempre adepto do mundo multipolar e a China é hoje um parceiro incontornável do Brasil. Dada a crescente guerra fria entre os EUA e a China, prevejo que a lua de mel entre Biden e Lula não dure muito tempo.

5-O presidente Lula tem hoje uma credibilidade mundial que o habilita a ser um mediador eficaz num mundo minado por conflitos cada vez mais tensos. Pode ser um mediador no conflito Rússia/Ucrânia, dois países cujos povos necessitam urgentemente de paz, num momento em que os países da União Europeia abraçaram sem Plano B a versão norte-americana do conflito e condenaram-se ao mesmo destino a que está destinado o mundo unipolar dominado pelos EUA. E será também um mediador credível no caso do isolamento da Venezuela e no fim do vergonhoso embargo contra Cuba. Para isso, o Presidente Lula tem de ter a frente interna pacificada e aqui reside a maior dificuldade.

6-Vai ter de conviver com a permanente ameaça de desestabilização. É a marca da extrema direita. É um movimento global que corresponde à incapacidade de o capitalismo neoliberal poder conviver no próximo período com mínimos de convivência democrática. Apesar de global, assume características específicas em cada país. O objetivo geral é converter diversidade cultural ou étnica em polarização política ou religiosa.

No Brasil, tal como na Índia, há o risco de atribuir a tal polarização um carácter de guerra religiosa, seja ela entre católicos e evangélicos ou entre cristãos fundamentalistas e religiões de matriz africana (Brasil) ou entre hindus e muçulmanos (Índia). Nas guerras religiosas a conciliação é quase impossível. A extrema-direita cria uma realidade paralela imune a qualquer confrontação com a realidade real. Nessa base, pode justificar a mais cruel violência. O seu objetivo principal é impedir que o Presidente Lula termine pacificamente o seu mandato.

7- O presidente Lula tem neste momento a seu favor o apoio dos EUA. É sabido que toda a política externa dos EUA é determinada por razões de política interna. O presidente Joe Biden sabe que, ao defender o presidente Lula, está a defender-se de Donald Trump, seu rival em 2024. Acontece que os EUA são hoje a sociedade talvez mais fraturada do mundo, onde o jogo democrático convive com uma extrema direita plutocrata suficientemente forte para fazer com que cerca de 25% da população norte-americana continue hoje convencida que a vitória de Joe Biden em 2020 foi o resultado de uma fraude eleitoral. Esta extrema direita está disposta a tudo. A sua agressividade fica demonstrada pela tentativa recente de raptar e torturar Nancy Pelosi, líder dos democratas na Câmara dos Representantes.

Pensemos nisto: o país que quer produzir regime change na Rússia e travar a China não consegue proteger um dos seus mais importantes líderes políticos. E, tal como se irá observar no Brasil, logo após o atentado, uma bateria de notícias falsas foi posta a circular para justificar o ato. Portanto, hoje, os EUA são um país duplo: o país oficial que promete defender a democracia brasileira e o país não oficial que a promete subverter para ensaiar o que pretende conseguir nos EUA. Recordemos que a extrema direita começou por ser a política do país oficial. O evangelismo hiper conservador começou por ser um projeto norte-americano (vide o relatório Rockfeller de 1969) para combater “o potencial insurrecional” da teologia da libertação. E diga-se, em abono da verdade, que durante muito tempo o seu principal aliado foi o Papa João Paulo II.

8- Desde 2014, o Brasil vive um processo de golpe de Estado continuado, a resposta das elites aos progressos que as classes populares obtiveram com os governos do Presidente Lula. Esse processo não terminou com a sua vitória. Apenas mudou de ritmo e de táctica. Ao longo destes anos e sobretudo no último período eleitoral assistimos a múltiplas ilegalidades e até crimes políticos cometidos com uma impunidade quase naturalizada. Para além dos muitos que foram cometidos pelo chefe do governo, vimos, por exemplo, quadros superiores das Forças Armadas e das forças de segurança apelarem a golpes de Estado e a tomarem publicamente partido por um candidato presidencial durante o exercício das suas funções.

Estes comportamentos golpistas devem ser punidos exemplarmente quer por iniciativa do sistema judiciário quer por meio de passagens compulsórias à reserva. Qualquer ideia de amnistia, por mais nobres que sejam os seus motivos, será uma armadilha no caminho da sua presidência. As consequências podem ser fatais.

9-É sabido que o presidente Lula não põe grande prioridade em caracterizar a sua política como sendo de esquerda ou de direita. Curiosamente, pouco antes de ser eleito Presidente da Colômbia, Gustavo Petro afirmava que a distinção para ele importante não era entre esquerda e direita, mas antes entre política de vida e política de morte. Política de vida é hoje no Brasil a política ecológica sincera, a continuidade e aprofundamento das políticas de justiça racial e sexual, dos direitos trabalhistas, do investimento na saúde e na educação públicas, do respeito pelas terras demarcadas dos povos indígenas e da promulgação das demarcações pendentes.

Acima de tudo, é necessária uma transição gradual, mas firme da monocultura agrária e do extrativismo de recursos naturais para uma economia diversificada que permita o respeito por diferentes lógicas socioeconômicas e articulações virtuosas entre a economia capitalista e as economias camponesa, familiar, cooperativa, social-solidária, indígena, ribeirinha, quilombola que tanta vitalidade têm no Brasil.

10- O estado de graça é curto. Não dura sequer cem dias (vide Gabriel Boric no Chile). O presidente Lula tem de fazer tudo para não perder o povo que o elegeu. A política simbólica é fundamental nos primeiros tempos. Uma sugestão: reponha de imediato as Conferências Nacionais para dar um sinal inequívoco de que há outra maneira mais democrática e mais participativa de fazer política.

*Boaventura de Sousa Santos é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra. Autor, entre outros livros, de O fim do império cognitivo (Autêntica).

BALAIO DO KOTSCHO - Questão de Classe

 OPINIÃO

Questão de classe: desta vez, cerco da mídia a Lula começou antes da posse.                            

De quem é este avião? Quanto custou? Quem está pagando?

Em todas as campanhas anteriores de Lula, esta era a primeira pergunta que os repórteres me faziam quando a gente chegava no aeroporto num avião executivo.

Na primeira, em 1989, ainda viajando em avião de carreira, um passageiro ficou indignado ao ver Lula a bordo:

"Olha aí, o Lula, o metalúrgico... Agora só quer saber de viajar de avião..."

Fui perguntar ao elemento se ele queria que Lula fizesse a campanha para presidente de ônibus ou montado num cavalo.

A esta altura, Fernando Collor, o candidato empresário, já cruzava os céus do país só viajando em aviões particulares e ninguém queria saber quem pagava o voo.

Nessa época, Lula não podia jantar num bom restaurante, mesmo que fosse a convite de alguém (ele nunca foi de botar a mão no bolso), que logo começavam os comentários nas mesas ao lado.

"Olha aí, o Lula, o metalúrgico, agora só quer saber de comer camarão..."

A pedido do próprio, parei de querer tirar satisfações quando ouvia essas coisas, mas aquilo me incomodava profundamente.

Uma vez presidente, eleito e reeleito, esse preconceito de classe nunca deixou de existir, mesmo depois dele ser recepcionado com tapete vermelho nos mais elegantes palácios do mundo.

Durante o governo de transição de FHC para Lula, em 2002, certa vez os assessores dele estavam jantando num restaurante na Academia de Tênis, às margens do Lago Paranoá. Os repórteres que nos seguiam vieram me perguntar o que a gente estava comendo, que vinho era aquele, quanto custava, quem estava pagando.

Ali eu vi que esse preconceito se estendia também à equipe do presidente eleito. Na verdade, era dirigido não às pessoas físicas, mas ao PT, o Partido dos Trabalhadores, que ousou chegar ao poder neste país de uma elite ainda fortemente escravocrata, dividido entre quem manda e quem obedece, como bem sabe o general Pazuello.

Na campanha deste ano, as coisas mudaram um pouco. Notei que, à medida em que a eleição se aproximava, Lula contou com uma cobertura mais simpática de setores importantes da imprensa, até porque, a terceira via não deu certo e o único adversário que sobrou era simplesmente indefensável.

Vimos nas redes sociais, certamente publicado por bolsonaristas, um vídeo mostrando como a redação da Globo vibrou com a vitória de Lula na noite de 30 de outubro. A imprensa em geral, principalmente no exterior, recebeu o resultado com um misto de alívio e satisfação por ter evitado o pior.

Mas essa lua de mel durou muito pouco, não chegou nem até a posse. Como se tivesse um comando unificado, a mídia brasileira inteira caiu matando num discurso que Lula fez na semana passada, ao priorizar a responsabilidade social sobre a responsabilidade fiscal, para atender às emergências da miséria e da fome, um drama que ele conhece bem de perto, e o fez chorar.

Não havia nada de novo no discurso. Desde a sua primeira campanha, o presidente eleito sempre disse que o mais importante era garantir três refeições por dia a todos os brasileiros, algo que foi alcançado nos seus dois mandatos. Vinte anos depois da primeira posse e às vésperas da terceira, o Brasil tinha voltado ao Mapa da Fome.

A questão nem é ideológica, política, econômica. Esta relação neurótica da mídia com Lula, entre o amor e o ódio, vem desde que ele deixou de ser mero líder do novo sindicalismo para criar um partido político de baixo para cima, e se tornar a maior liderança popular do país em todos os tempos.

O dólar subiu, a Bolsa caiu, foi um fuzuê danado no "mercado" nervoso, que simplesmente não se conforma com o relevo que Lula conquistou na cena política mundial, como estamos vendo agora mesmo na sua viagem ao Egito para participar da COP-27.

É uma questão de classe social. Será que esse tal de Lula não se enxerga? Quem ele pensa que é? Nunca será do nosso clube.

Como é que um pau-de-arara, sobrevivente dos sertões nordestinos, e ainda por cima operário, que perdeu um dedo trabalhando no torno de uma metalúrgica, sem ter diploma universitário e sem saber falar inglês, se atreveu a furar a fila dos nobres brasileiros do andar de cima, militares e civis, que ocuparam a Presidência desde a Proclamação da República, festejada neste 15 de novembro?

Dois dias depois de recepcionar a Janja, mulher de Lula, numa entrevista amistosa no Fantástico, o braço impresso do império global fez um editorial criticando a proeminência que ela assumiu na campanha do marido. A mídia invocou até com a blusa que Janja usou na entrevista, que custou mais de R$ 2 mil, vejam só, que absurdo!, logo a mulher de Lula, o ex-metalúrgico.

Para completar, Lula viajou ao Egito de carona no avião particular de um empresário amigo enrolado com a Justiça, um assunto que ganhou mais espaço no noticiário do que as propostas do presidente eleito para trazer o país de volta ao protagonismo na discussão do clima.

Queriam que ele viajasse num avião de carreira, para ser hostilizado pelos fanáticos bolsonaristas em transe patriótico após a derrota, que atacaram os ministros do Supremo Tribunal Federal em plena Nova York?

Assim voltamos ao início dessa história: de quem é o avião, quem pagou?

Pois é, se Lula tivesse um jatinho particular como João Doria e tantos outros políticos, não haveria esse problema. No Brasil, só tem avião executivo quem manda, quem tem pedigree e muita grana, não quem obedece. Por nunca obedecer, não nomear quem o mercado quer e não manter o teto de gastos que nem existe mais, Lula vai continuar apanhando sempre, estando certo ou errado.

Quem manda ninguém do PT ter um jatinho para oferecer a Lula?

Eles não roubaram tanto, a maior corrupção mundial, segundo o probo juiz Sergio Moro, e suas viúvas na grande imprensa?

Vida que segue.

sábado, 8 de outubro de 2022

31 MILHÕES DE VOTOS NO LIMBO

 

Do Brexit a Bolsonaro – para não esquecermos.

 

Antes de concentrar esforços em uma competição, se esforce na avaliação dos riscos e do “prêmio”. Se certifique se valerá a pena o investimento de energia antes de desperdiçá-la em maior quantidade depois...

Lívia Pinheiro 

Confirmado o segundo turno das eleições, não vejo, como tenho ouvido, que os Institutos de Pesquisa tenham errado, mas... também não sou especialista e estudioso sobre o assunto. No “frigir dos ovos”, margem de erro para lá ou para cá... os números não foram discrepantes. Tínhamos, para variar, aquela força que nos move sempre, a esperança. Mas esperançamos, como nos ensinou Paulo Freire ou esperamos?

Em Maricá, no 4º mandato de governo do PT, sofremos a 2ª derrota consecutiva para o Bolsonaro. E o que vi e ouvi de justificativas durante as eleições, não me convenceu da “não” campanha para o Lula, até a metade processo eleitoral. O PT, por inteiro, minimizou o Lula a partir da visão de quem puxava voto em Maricá era o Prefeito Fabiano Horta, com justiça, bem avaliado pela população. O convencimento foi geral. Por algum motivo, na segunda metade da campanha, Lula e o Freixo, este ainda que timidamente, estiveram presentes nas falas e bandeiras. Ouvia como justificativa, que nas pesquisas, o Lula ganhava em Maricá.

Mas veio a “não surpresa”, a virada que inviabiliza a vitória no primeiro turno, que nos coloca mais incerteza ainda na sanidade de muitos brasileiros. Parece que esquecemos o que aconteceu no mundo e no Brasil, com as eleições do Dória em São Paulo e o Coiso no Brasil, ali mesmo na esquina, em 2018. Os Fakes e a inoperância das Instituições que deveriam garantir a transparência e as Leis.

Neste segundo turno, vejo a repetição do que foi 2018, em relação ao PT. Esquecemos a existências das Cambridge Analytica (devem existir outras empresas minerando dados) e o trabalho executado nos Brexit na Inglaterra, na eleição do Trump nos EUA e do Dória e do Bolsonaro no Brasil.

Falo que esquecemos porque estamos discutindo a transferência dos votos “antipetistas” que não foram para o Boso no 1º turno, da dita 3º Via, que são ínfimos se comparado aos 31 milhões de eleitores que se abstiveram de votar, fora os votos nulos e brancos (na casa dos 5,5 milhões). Continuamos trabalhando com o universo de votantes válidos, como se as abstenções fossem mantidas no mesmo patamar.

A Cambridge trabalhou no universo de 3 milhões de votantes que declaram que iriam se abster de votar no plebiscito do Brexit. Dirigiu suas Fakes para este universo e venceram o plebiscito. Nos EUA, como sabiam que os negros não votariam no Trump, dirigiram suas Fakes com os vacilos da Hilary sobre a questão do racismo. Muitos negros se abstiveram porque foram convencidos que não havia diferença entre Trump e Hilary, farinhas do mesmo saco – Trump vence. No Brasil, para os que haviam esquecidos e foram lembrados, em especial no último debate: as mamadeiras de pirocas e outras besteiras reapareceram, além da novidade de um padre misterioso, e estão aí para nos atormentar.

A sorte está lançada.


Sérgio Mesquita
DM Maricá-PT

segunda-feira, 29 de agosto de 2022

Que sociedade temos e que sociedade queremos...

Antonio Lopes Cordeiro (Toni)
Estatístico e Pesquisador em Gestão Social

Sinto muito orgulho de ter feito parte daquela turma de trabalhadores e trabalhadoras que desciam a Via Anchieta em São Bernardo do Campo, aos domingos de manhã, junto com o meu pai, rumo ao Estádio da Vila Euclides ou ao Paço Municipal, quando o poder militar tomou o Estádio e o Sindicato dos Metalúrgicos. Sinal de muitas lutas.

Desde aquela época para cá muitas coisas aconteceram. Foi criada a CUT e o Partido dos Trabalhadores. O PT governou o país por pelo menos treze anos, sofremos um golpe que derrubou a Presidenta Dilma e o Temer e o genocida atual deixaram o país em trevas.

A partir desse cenário, é utopia sonhar com uma sociedade igual para todos e todas? É possível isso num país capitalista, de condições desiguais, de pessoas de pensamentos e práticas tão diferentes, apenas com algumas reformas? O que fazer para avançarmos nas lutas? Afinal, que sociedade temos e que sociedade queremos?

Toda vez que tento responder perguntas como essas, me pego fazendo uma crítica profunda ao poder e principalmente de quem chega aos mandatos e governos e como se comportam. Num primeiro momento a lembrança que me vem à cabeça é a de Bakunin, pai do Anarquismo, que sugere que todo poder é corrupto por si só, porém como socialista, lutamos a vida toda por uma nova sociedade justa, fraterna e igual para todos e todas, embora não tenha resposta se cabe bolsonaristas nesse novo mundo.

Fico ainda mais inquieto quando ouço Mário Sergio Cortela dizer: “Que o poder foi feito para servir e que todo poder, que ao invés de servir se serve é um poder que não serve”. Ao ouvir isso, fico convencido de que se a gestão, nos partidos, nas instituições, nos mandatos, na sociedade e principalmente no Estado, como concepção ampla, não tiver a participação dos setores envolvidos, com o principal objetivo de enfrentar o processo de desigualdades políticas, sociais e econômicas e todo tipo de violência, buscando soluções viáveis, com ampla participação, gestarão para si, apenas para resolver seus problemas pessoais ou de seus grupos e nada contribuirão para uma nova sociedade.

A utopia de mudar essa sociedade de desiguais, de injustiças e de extremas violências, acaba se tornando uma missão de vida para quem dela se nutre e vai preenchendo nosso imaginário e nos fazendo mirar no futuro, como a razão das nossas existências.

Se for verdade que viemos ao mundo para uma missão como a de servir, também será verdade que se não a identificamos em tempo, ou viemos ao mundo a passeio ou teremos que voltar numa segunda chance, para quem acredita, para fazer o que deveríamos ter feito e não fizemos quando podíamos ou tínhamos as oportunidades.

Como escreveu Paulo Freire no Livro “Essa Escola Chamada Vida”: “Sonho com uma sociedade reinventando-se de baixo para cima, onde as massas populares tenham, na verdade, o direito de ter voz e não apenas o dever de escutar...uma sociedade, onde a exigência de justiça não signifique nenhuma limitação da liberdade e a plenitude da liberdade não signifique nenhuma restrição do dever de justiça”.

Dizem os sábios que quando desejamos muito que algo aconteça e ela se encontra muito distante de acontecer, precisamos focar nas utopias e mirar no horizonte ao pôr do sol para buscarmos sinais e conversarmos com nosso imaginário na esperança de sonharmos ao dormir, como se estivéssemos em pleno estado do desejo. 

Enquanto isso os poetas sugerem que a cada “não” formemos um verso, para quando o “sim” chegar, a poesia esteja pronta, ou quem sabe ainda uma canção que fale de liberdade, de justiça e de amor pela vida, no sentido de enfrentarmos o momento que vivemos, onde o desamor e uma crise de identidade imperam e nossos sonhos sejam a motivação necessária para continuarmos em luta até que a vitória seja plena.

O PROTESTANTISMO BRASILEIRO E A FACE DO ANTICRISTO

Nilson da Silva Júnior 

Minha família é protestante há quase 100 anos. Meu avô aderiu à igreja evangélica nos idos de 40 no norte pioneiro do Paraná. Depois disso estivemos envolvidos em vários setores dela culminando em minha decisão de tornar-me teólogo e pastor. Passei a infância frequentando Escolas Dominicais, ouvindo hinos tradicionais. Na adolescência participei de grupos musicais e do quarteto onde conheci minha esposa. Fui missionário no Centro Oeste brasileiro, Pastor em Igrejas do Estado de São Paulo e Pastor numa Universidade Confessional por quase 9 anos. Como muitos, orgulhei-me de protestantes como Martin Luter king, Nelson Mandela, Rubem Alves. Senti a alegria de ser contado como quem pertencia a uma gente culta e lúcida. Mas o tempo passou até que chegasse o Neopentecostalismo através da pregação de um evangelho que enaltecia a prosperidade financeira como sinal visível da bênção de Deus.

A partir disso conheci um lado rude e distorcido da crença que tanto admirei, o fundamentalismo, o exclusivismo, que somados a motivação de ganhar dinheiro geraram um povo arrogante e mau. Mas enquanto os exageros apenas rodeavam os muros do protestantismo tradicional era fácil prosseguir, até que eles se casaram com a política, numa união instável e imprópria de seu deus com o poder partidário na imagem de um messias tosco, rude e violento. Hoje, infelizmente, é o protestantismo histórico brasileiro que se aliou ao secularismo político frequentando palácios, negociando cargos, trocando direitos civis por barras de ouro, atuando como vassalo servil da falsa moral que se arvorou sobre as cores do nosso país. Os novos concílios eclesiásticos são na verdade encontros políticos que por um lado defendem os interesses de uns poucos líderes, por outro criam armadilhas capazes de expulsar de seu meio os que ainda “têm fome e sede de justiça”. As pregações estão recheadas de moral preconceituosa e insana. Os pastores andam armados defendendo a morte e a banição dos contrários. Prega-se o extermínio aos diferentes e o perigo iminente do comunismo que na mentalidade da nova “mensagem evangélica” ameaça igualar os crentes ricos com os pobres, crentes ou não. Os “crentes de bem” são uma mistura de preconceito e maldade, “sepulcros caiados”, lindos por fora, podres por dentro, a nova versão do jovem rico que ouviu de Cristo: “vai, vende tudo que tem e dá aos pobres” e, por isso saiu de perto, abandonou, preferindo a lonjura desse evangelho. 

Chegamos ao Apocalipse. As bestas vivem soltas por onde quer que andemos. Estão nas redes sociais, nos aplicativos de mensagens, no trabalho, nos púlpitos, mas principalmente nos noticiários. O Cristo chora sangue no Monte das Oliveiras junto de uns poucos que em pânico nem conseguem orar enquanto a “igreja” está nos palácio vendendo o cristianismo por trinta moedas de prata. “O povo está morrendo porque lhe falta o conhecimento”, o sentimento humano está em estado terminal e a instituição religiosa é agora mera organização a serviço de defender seus próprios interesses. Estão os protestantes brasileiros contemporâneos em discordância com a Igreja que servem? Não. Permanecem fiéis ao que seus pastores lhes dizem. São dissonantes, na verdade, do evangelho e do Cristo que aparentemente nada mais tem com a Igreja, deixado de lado por uma gente rompida com o favor divino e seus sinais, misericórdia, partilha, bondade, sabedoria. Um povo que desaprendeu amar, vivendo oposto à imagem do Cristo, de costas à vontade de Deus, enamorado pela face do anticristo.

Rev. Nilson da Silva Júnior.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

ESTADO DE DIREITO NA DEMOCRACIA BRASILEIRA

 “Tornar imperdoável, o que hoje é aceitável”

Délcio Teobaldo

                As vésperas das eleições de 2022, após passarmos por mais de 31 eleições presidenciais, onde em algumas o vice presidente teve mais voto que o presidente eleito (até 1966 as eleições de presidente e vice eram separadas - João Goulart teve mais votos que o Juscelino Kubtischek e Jânio Quadros), e  destas, 23 foram diretas e 8 indiretas, além de uma extraordinária, em 1919[1]. Passamos por dois períodos ditatoriais (Vargas, 1934-1945; Golpe Civil Militar, 1964-1985). Foram nestes períodos que oficialmente, a população brasileira teve seus direitos civis e políticos casados, vivendo em um Estado de Exceção onde, segundo Agamben[2], “o Estado de Exceção apresenta-se como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal”.

                No mundo ocidental, o Estado de Direito vem acompanhado da Democracia e suas eleições (diretas ou representativas). Quando há estremecimento no Estado de Direito, normalmente a Democracia e as eleições são ignoradas ou, na prática, podem se transformar em um evento puramente folclórico. Segundo o historiador Hobsbawm[3], em seu livro “Globalização, Democracia e Terrorismo”, no capítulo “As perspectivas da Democracia”, coloca “... A política, por conseguinte, continuará, como continuaremos a viver em um mundo populista, em que os governos têm que levar em conta ‘o povo’, e o povo não pode viver sem os governos, as eleições democráticas também continuarão. Hoje existe um reconhecimento praticamente universal de que elas dão legitimidade e proporcionam aos governos, paralelamente, um modo conveniente de consultar o ‘povo’ sem necessariamente assumir qualquer compromisso muito concreto” Essa conveniência, colocada pelo Hobsbawm, tem se perpetuada, em especial no mundo ocidental, em países como o Brasil, onde hoje o Estado de Direito, confunde-se com o Estado de Exceção ou, o “ilegal” ganha ares de “legal”.

               Desde a década de 70 (1970), com o surgimento do pensamento neoliberal e da globalização, onde o mundo das Leis, as Constituições Nacionais, a participação popular e o multipolar são aos poucos “apagados” da vida cotidiana das populações. Neoliberalismo definitivamente não combina com democracia ou soberania, seja a popular ou de uma nação”. Noam Chomsky[4] no livro “Terrorismo Ocidental, de Hiroshima à guerra de drones”, coloca que: “O mundo deles é monopolar. Não comparam ideias, ideais e ideologias diferentes. Só tem uma ideologia, que pode ser chamada de ‘fundamentalismo de mercado’, oferecido por sistemas parlamentares multipartidários ou monarquias constitucionais”. No livro “Quem manda no Mundo”, na página 72, Chomsky fala sobre a estratégia da desregulamentação bancária e financeira, o que vem a reforçar a ideia de que o neoliberalismo não combina com leis.  Também comenta sobre a estratégia das hoje conhecidas e difundidas “fake news”, quando escreve: “Consequentemente, a propaganda tem que procurar outros a quem culpar, como os trabalhadores do setor público, com seus gordos salários e exorbitantes aposentadorias: tudo fantasia, segundo o modelo do imaginário ‘reaganita’ de mães negras sendo levadas em limosines com motoristas indo buscar seus cheques de programas de assistência social, e outras invenções de mesmo estilo que nem sequer vale a pena mencionar. Todos nós temos que apertar os cintos – quer dizer, quase todos nós”.

 O falecido escritor português, José Saramago (1922 – 2010) trabalha na mesma linha de denúncias contra o sistema e suas mazelas. No livro “As Palavras de Saramago”, organizado pelo Fernando Aguilera encontramos ditos como: “Assistimos ao que chamo de morte do cidadão. O que temos em seu lugar, e cada vez mais, é o cliente. Hoje em dia, ninguém pergunta o que você pensa, mas sim que marca de carro, de roupa ou de gravata você usa e quanto ganha...”; “Na falsa democracia mundial, o cidadão está à deriva, sem a oportunidade de intervir politicamente e mudar o mundo. Atualmente somos seres impotentes diante de instituições democráticas das quais não conseguimos nem chegar perto”; “A democracia não tem existência e nem qualidade em si, depende do nível de participação dos cidadãos”; “A globalização econômica é um eufemismo para acobertar o sistema político que vem sendo imposto pelas grandes multinacionais: o capitalismo autoritário”. Poderíamos ficar páginas e páginas citando outros autores, e todos questionando na mesma linha. Vivemos em uma democracia? Sabemos que são quatro os pilares de sustentação do sistema de produção capitalista, são eles: des-Constituição, a des-Democratização, a Precificação dos bens públicos e o “Ecocídio” planetário. O sistema não sobrevive em um mundo “legal”, onde as leis não só existem, mas existem para serem cumpridas, em um mundo com plena participação do cidadão e, seu ambiente tratado de maneira sustentável e produtiva. Pior... o sistema também não sobrevive em seu mundo ideal, desregulamentado e explorado acima de seus limites. O sistema nunca superou suas inúmeras crises, pois sua superação significaria a sua negação, sua destruição, por isso sempre as contornou. Mas e o Brasil com isso?

 O Brasil historicamente, em todos os seus grandes momentos, passou por golpes ou acordos, como na sua Independência, na República, na recuperação de sua democracia, a Lei da Anistia e vários outros exemplos. Nos atendo as duas últimas décadas e início da terceira, podemos afirmar que vivemos em um Estado de Direito com pleno exercício democrático? Acredito que não...

 Podemos entender o ano de 2005, como o marco inicial de, nestes tempos mais atuais, uma nova reaproximação com o nazismo hitlerista. Neste ano começou a farsa do “Mentirão”, onde verba de empresa privada (VisaNet) foi tratada como se pública fosse pelo STF. Um processo que começa com a acusação de um cidadão que sequer havia sido citado pela investigação da PF, sobre os assinantes dos cheques de pagamentos as empresas publicitárias e outras, que faziam as peças publicitárias dos cartões Visa ligados a bandeiras dos bancos. Pizzolato não fazia parte da diretoria, que tinha quase vinte pessoas habilitadas para assinarem os cheques – era preciso três assinaturas por cheque. Pizzolato só passa assinar, com mais dois diretores, em 2005, um total de 19 cheques. O juiz Barbosa o condenou pelos desvios não reclamados pelas empresas que receberiam os valores (TV Globo, Manchete, Bandeirante, Folha, Estadão, ...), no período de 2002 a 2005.

 Na continuidade do Golpe pensado a partir de além mar (EUA – que o diga o ex-juizeco Moro e seu menino prodígio, ex procurador Dallagnol), o STF inaugurou a prisão sem prova - o que não quer dizer que só existam condenados com provas pela nossa justiça – mas a primeira vez em que juízes confessam em seus votos, estarem condenado réus, sem as devidas provas. Nem para isso o Moro serviu! Dirceu e companhia acabam condenados e presos – hoje, todos inocentados. Mas como o objetivo era a eliminação do político Lula, o Golpe avança em mais uma etapa, e a vítima é a então reeleita presidenta Dilma, que passa por um processo de impeachment criminoso, mas com a complacência do STF. Mas Lula continua vivo e com grandes probabilidades de se eleger em 2018, ainda no primeiro turno. O Golpe avança em mais uma fase, e Lula é posto na cadeia, a partir dos crimes, falsificações e torturas executadas pela dupla Moro e Dallagnol, com o apoio do STF e suas Turmas (ou seriam quadrilhas?). O resultado, todos sabemos, o coiso ruim que se instalou em Brasília.

 Hoje, com Lula e todos os demais inocentados, do Pizzolato a Lula, o mesmo, até o momento, concorrerá as próximas eleições com o Coiso, onde o clima no Brasil é de total desordem, o crime acontece beneplacitamente em todo o território nacional. Onde vários pensadores passaram a se referir a um provável outubro vermelho, devido a bandidagem que tomou conta das instituições democráticas e policialescas.

                É neste clima de total desordem pública, que nos leva a afirmar que no momento o país encontra-se em um Estado de Exceção, por mais que se tente negar. Basta um caminhar pelas ruas para perceber, mas atenção ao caminhar, evite o esbarrar, o pisar no pé de outro/a ou uma simples troca de olhar com um/a transeunte. Pode ser o suficiente para que alguém comece a gritar com você, ou mesmo, puxe uma arma e comece atirar. Este é o Brasil que vivemos! Nosso papel, é tentar chegar bem nas urnas e começar a mudar de fato esta situação. Saramago nos ensinou, não existe democracia sem a participação de todos. Se assim não for, continuaremos a viver em uma grande fake news.

 

Há braços,

 Sérgio Mesquita



[1] https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_elei%C3%A7%C3%B5es_presidenciais_no_Brasil.

[2] Giorgio Agamben (1942-); Filósofo Italiano; https://pt.wikipedia.org/wiki/Giorgio_Agamben

[3] Eric Hobsbawm (1917-2012); Historiador com dupla nacionalidade, nascido no Egito, quando colônia britânica. https://pt.wikipedia.org/wiki/Eric_Hobsbawm

quinta-feira, 23 de junho de 2022

POR FAVOR, DEIXEM QUE SOMENTE PARA A DIREITA O PAPEL DE DESTRUIR A POLÍTICA

 

Todos sabem que a Política vem dos primórdios da Grécia, “POLITIKOS”, eram aqueles que participavam do governo da “Polis” (cidade), colocando o bem comum acima de seus interesses individuais. O “IDIOTA”, ao contrário, era aquele ou aquela que primeiro tratavam do próprio umbigo.

Portanto, a Política existe para organizar nossas vidas para além das questões de governos. A cada decisão tomada a partir do momento que levantamos da cama para começar o dia, até o deitar à noite, estamos fazendo política. Todos fazemos, sem exceções. Não interessa se vive em sociedade (característica básica do “ser” humano) ou se acredita não passar de um indivíduo auto suficiente (que não existe), sempre estará praticando a política.

Como a Burocracia, que existe para proteger o funcionário subordinado a uma chefia, é deturpada ao longo dos anos pelos donos do mundo em seus benefícios, a Política também passa pelo mesmo processo. Os mesmos donos do mundo a criminalizam. Nos fazem acreditar que a política não presta, só atrapalha. Voltando aos gregos “o bem comum acima dos interesses individuais”, a criminalização da política nos leva ao autoritarismo e os demais “ismos”, tão ruins quanto o autoritarismo. Não por acaso vivemos o que estamos vivendo hoje, no Brasil e no mundo.

Como se não bastasse, leio e assisto nas redes a esquerda gritando que: “a política ama a traição e odeia o traidor”.

Quase como aceitando a traição como uma qualidade da política, como se já não bastasse sermos vistos como criminosos. A direita e os donos do mundo agradecem a ajuda na busca do autoritarismo.

Empresa estatal não dá prejuízo. O que dá prejuízo é uma má administração (pessoas) ou o ideário neoliberal (donos do mundo). Burocracia não é ruim, é segurança. Os desvios feitos pelas pessoas é que a ressignificam no ideário na população (manipulação). As instituições da Democracia não são ruins, são as pessoas que lá estão (muitas colocadas pelo voto, outras não) que são ruins. Como a Política não trai, não ama e não odeia, quem trai, ama ou odeia é o IDIOTA que só pensa em seu umbigo (pessoa).

Portanto vamos prestar atenção no que dizemos e/ou reproduzimos, porque muitas das vezes, estamos ajudando o adversário. Insistir no erro é ajudar no trabalho dos donos da mídia corporativa e da manipulação dos nossos dados nas redes sociais contra nós mesmos.

Não normalizemos e nem nos conformemos com o que está posto, nossa energia deve ser para mudar o que está aí em prol de todos e todas.

 

O poder tem destas coisas, vira os políticos como se estes fossem uma peúga[i].

A primeira viragem chama-se pragmatismo, a segunda oportunismo, a terceira conformismo.

A partir daqui o melhor é deixar de contar.

José Saramago

Há braços.

 

Sérgio Mesquita

PT-Maricá



[i] Peúga: meia curta

terça-feira, 7 de junho de 2022

O eurocentrismo faz uma caricatura degradante do resto do mundo

 Por Boaventura de Sousa Santos

(Publicado no site A Terra é Redonda)

Uma das características do pensamento dominante consiste em contrastar os princípios que subscreve com as práticas dos que se lhe opõem. Na época moderna, tudo começou com a expansão colonial do século XV e XVI pela mão dos portugueses e dos espanhóis sob a tutela do Vaticano. Missionários, descobridores, conquistadores anunciavam a “boa nova” de uma religião tida por única e a única verdadeira, cujos princípios garantiam a igual dignidade de todo o ser humano perante a criação divina e o direito de todos a libertarem-se da superstição e a abraçarem a nova civilização, e a aceder a todos os benefícios que dela decorriam.

A suposta qualidade universal dos valores de que eram portadores era tão saliente quanto evidente era o contraste entre eles e as práticas das populações nativas, práticas consideradas selvagens, bárbaras, primitivas, canibais, pecadoras, cuja erradicação justificava a “missão civilizadora”. Uma linha abissal separava de tal modo os princípios e os valores europeus dessas práticas que as populações nativas não podiam ser sequer consideradas plenamente humanas.

Por isso, não tratar as populações segundo esses princípios não só não era contraditório como era a única solução lógica. Se eram sub-humanos, não fazia sentido aplicar-lhes os princípios e valores próprios de seres plenamente humanos. A universalidade dos princípios era afirmada ao ser negada a sua aplicação a seres sub-humanos. Em relação a estes, o importante era evangelizá-los, levá-los a abandonar as práticas selvagens, o que se tornou mais fácil e convincente depois que o Papa Paulo III reconheceu em bula de 1537 que os índios tinham alma.

Este dispositivo colonizador realizava duas operações cruciais: impedia o reconhecimento de princípios e valores diferentes dos europeus; impedia contrastar os princípios e valores europeus com as práticas dos europeus. Tratava-se de uma nova versão de universalidade feita de duas ressalvas que a negavam, mas cuja negação era eficazmente invisibilizada. Basta ler a Brevísima relación de la destrucción de las Indias de Bartolomé de Las Casas, publicada em Sevilha em 1552, para termos uma ideia de como este dispositivo operou, e os crimes, atrocidades, destruições e pilhagens que ele justificou.

Las Casas mostra de modo eloquente as duas verdades ocultadas pelo dispositivo colonial. Por um lado, o contraste chocante entre os princípios proclamados pelos conquistadores europeus e as suas próprias práticas; por outro lado, o retrato falso ou parcial das práticas indígenas e a recusa dos europeus em reconhecer que esses povos tinham princípios e valores que rivalizavam, por vezes com vantagem, com os europeus. Tanto o escândalo da obra de Las Casas ao tempo em que foi publicada como o sucesso que veio a ter no século seguinte mostram em que medida o dispositivo colonial próprio do pensamento dominante europeu, apesar de desmascarado, continuou a vigorar como que animado por uma hipocrisia estrutural que, em vez de o enfraquecer, se transformou em sua fonte de vida. Até hoje.

Do ponto de vista da sua génese, os princípios e valores universais europeus (mais recentemente também ditos ocidentais) são uma contradição nos termos porque, se são europeus, não podem ser considerados universais e, se são universais, não são europeus. Mas esta contradição é provavelmente própria de outros princípios e valores não europeus. E o mesmo pode dizer-se da hipocrisia ou duplicidade estrutural que habita quaisquer conjuntos de princípios e valores formulados em abstrato. O que distingue os princípios europeus é o domínio político, económico e cultural do conjunto de países que desde o século XV-XVI se arrogaram o direito de os reclamar como seus e de os impor aos outros sob o pretexto de serem universais. Esse conjunto variou ao longo dos séculos. Começou por ser ibérico, depois foi europeu, e é euro-norte-americano desde o fim da Primeira Guerra Mundial. Merecem, pois, uma reflexão específica. São muitos os dispositivos que asseguram a duplicidade e a põem ao serviço dos interesses da potência hegemônica.

(1)   Fazer valer universalmente os valores universais é um dever dos povos que os reconhecem como seus. A imposição, mesmo que motivada por interesses próprios, deve ser sempre legitimada por razões benévolas e do interesse das próprias vítimas da imposição. Foi com esta justificação que o direito internacional emergiu, pela pena de Francisco de Vitoria (1483- 1546), para justificar a ocupação colonial de povos que, apesar de humanos, não se sabiam governar (tal como as crianças) e deviam, por isso, ser objeto de proteção e tutela por parte dos colonizadores.

(2)   A hierarquia de valores. Todos os valores são universais, mas uns são mais importantes que outros. Com John Locke (1632-1704), nos alvores do capitalismo, o direito de propriedade individual precede todos os outros. Ainda que Locke limitasse inicialmente o direito natural de propriedade aos frutos do trabalho, esse direito foi-se estendendo até abranger tudo o que fosse necessário para a produção, e esta consiste na criação de valores de troca. Desde então, a hierarquia entre os valores depende das conveniências conjunturais de quem a pode impor. Se nuns casos é prioritária a defesa da soberania dos Estados, noutros é a defesa da autodeterminação dos povos. Por sua vez, a segurança nacional (um conceito recente que veio substituir o conceito de segurança humana) tem vindo a prevalecer sobre os direitos e liberdades da cidadania, tal como a segurança alimentar se tem vindo a impor à soberania alimentar.

(3)   A seletividade e os critérios duplos na invocação dos valores universais. Entre 1975 e 2000, as mídias globais silenciaram as atrozes violações de direitos humanos do povo timorense (acabada de conquistar a independência contra o colonialismo português) por parte da Indonésia, que invadiu o país poucos dias depois da visita de Henri Kissinger a Jacarta. Para os EUA, a Indonésia era na altura um país estrategicamente importante para travar o avanço do comunismo na região, e esse fato justificava o sofrimento imposto aos timorenses.

Na atual guerra da Ucrânia, muitos crimes de guerra terão sido cometidos por ambas as partes. Mas o silêncio sobre crimes cometidos por tropas ucranianas contrasta com o incessante noticiário sobre os crimes das tropas russas. Passou despercebida a notícia de 13 de maio no insuspeito Le Monde: tinha acabado de confirmar a autenticidade do vídeo em que soldados ucranianos matam a sangue frio prisioneiros de guerra russos desarmados, um gravíssimo crime de guerra nos termos da Convenção de Genebra. Veremos se será punido como todos os outros que tenham sido cometidos. A mesma seletividade ocorre no caso de outro valor universal, o direito à autodeterminação dos povos. Como temos visto, em alguns casos ele é justamente defendido (o caso da Ucrânia), enquanto noutros ele é injustamente negado (casos da Palestina e da República Árabe Saaraui Democrática).

(4)   O caráter sacrificial da defesa de valores, isto é, a necessidade de os violar para supostamente os defender. Foi em nome da democracia e dos direitos humanos que se invadiu um país soberano, o Iraque, e se cometeram gravíssimos crimes de guerra, hoje documentados graças às revelações da Wikileaks. O mesmo se passou no Afeganistão, Síria, Líbia e, anteriormente, no Congo-Kinshasa, Brasil, Chile, Nicarágua, Guatemala, Honduras, El Salvador, etc. Mas tudo começou muito antes, desde os primórdios do colonialismo. O genocídio dos povos indígenas foi sempre justificado para os salvar de si mesmos. E Afonso de Albuquerque, segundo Governador da Índia, sempre justificou a conquista do comércio das especiarias, até então controlado pelos comerciantes muçulmanos, como uma vitória da cristandade sobre o Islã.

(5)   A importância de manter o monopólio sobre os critérios para decidir sobre situações normais e situações de emergência ou de exceção, sendo certo que nestas últimas é legítimo violar alguns dos princípios e valores universais. Depois dos ataques às Torres Gémeas de Nova Iorque, muitos países foram levados a adoptar, independentemente das condições locais, medidas excepcionais de luta contra o terrorismo, nomeadamente a promulgar novas normas de criminalização do terrorismo (o “direito penal do inimigo”) que violam os princípios constitucionais do primado do direito. Muitos países aproveitaram esta legislação de exceção para eliminar ou neutralizar adversários políticos, agora considerados terroristas. Foi o caso dos militantes indígenas Mapuches do Chile por defenderem a integridade dos seus territórios.

(6)   A interpretação legítima dada aos valores universais é a que é ratificada pela potência hegemónica do momento. As liberdades autorizadas justificam a repressão das liberdades não autorizadas. Sabe-se hoje que o regime da Líbia foi violentamente eliminado porque o General Kadhafi pretendia dar consistência política à União Africana e substituir o dólar nas transações de petróleo. Da mesma forma, muitos países, sobretudo latinoamericanos, centro-americanos e asiáticos, sabem por trágica experiência que eleger democraticamente os seus presidentes não os protege de interferências, golpes e mesmo imposição de ditaduras, se os EUA virem na eleição uma ameaça aos seus interesses econômicos ou geo-estratégicos.

(7)   Quando não é possível silenciar as violações dos valores universais por parte de aliados da potência hegemónica, tais violações devem ser trivializadas ou justificadas por referência a outros valores supostamente superiores. A ocupação colonial e ilegal da Palestina por parte de Israel – uma das mais graves violações do direito internacional dos últimos sessenta e cinco anos – tem beneficiado de muitas justificações diretas ou indiretas por parte da Europa (incapaz de enfrentar de forma mais honesta as suas responsabilidades históricas) e por parte dos EUA (“Israel é o único país democrático da região”). Crimes de Estado, como o recente assassinato da jornalista palestiniana Shireen Abu Akleh, não merecem mais que uma nota de pé de página, mesmo se tais crimes obedecem a um padrão. Segundo o Ministério da Informação da Palestina, 45 jornalistas foram assassinados por forças israelenses desde 2000.

(8)   Expor documentadamente a violação dos valores universais por parte de quem os advoga e, com isso, a hipocrisia e a duplicidade reinantes é considerado um ato inimigo e suscita uma reação implacável que nenhum valor universal pode limitar. Nem sequer o direito à vida. Julian Assange é hoje o símbolo vivo desta duplicidade. Ter exposto os crimes de guerra cometidos no Iraque e ter defendido o anonimato das suas fontes transformou-o num alvo a abater sem dó nem piedade. Com a sua ação, Assange defendeu um dos valores universais, o direito à informação e à liberdade de expressão. Os crimes que denunciou deviam ser de imediato investigados e punidos em tribunais nacionais e internacionais. Em vez disso, é ele quem é punido e será provavelmente eliminado. Em vídeo recente, a sua esposa declara ter informações de que a CIA planeia matá-lo se não for extraditado para os EUA. De todo o modo, nas condições em que se encontra, a sua morte nunca será uma morte natural.

(9)   Os valores universais são um catálogo que pode ser consultado por todos, mas só as potências hegemônicas decidem o que entra nele. Por um lado, são considerados ocidentais valores e princípios que muitas vezes na sua origem não são europeus. A sua apropriação quase nunca decorre de diálogos interculturais horizontais, antes envolve frequentemente distorções e seletividades ideológicas. A filosofia grega, que todos prezamos, só em meados do século XIX foi considerada patrimônio exclusivo e distintivo da Europa. Até então era consensual reconhecer as suas raízes na cultura antiga do norte de África, nomeadamente de Alexandria, e da Pérsia. Também se reconhecia que, sem a cooperação da cultura árabe muçulmana, a filosofia grega não teria chegado ao nosso conhecimento: da Casa da Sabedoria da dinastia dos Abássidas em Bagdad no século IX até à escola de tradutores de Toledo dos séculos XII e XIII. Também o Cristianismo é considerado um património ocidental, apesar de ter nascido no que é hoje o Próximo Oriente.

Por outro lado, desde o século XVI não são admitidos no catálogo dos valores universais contribuições não ocidentais que não se deixem submeter a apropriação (melhor, expropriação). A razão desta situação resulta, como referi, do domínio global, económico, social, político e cultural do mundo europeu desde o século XV-XVI. Num momento em que a China emerge como uma potência capaz de disputar o domínio global ocidental, é oportuno perguntar por quanto tempo o catálogo dos valores universais vai ficar sob domínio ocidental e com que consequências. As transformações não serão necessariamente para melhor, e podem até ser para muito pior, sobretudo para a região cultural que até agora dominou o mundo. É inquietante imaginar que os países ocidentais sejam amanhã quem sofre com a duplicidade e hipocrisia dos valores universais em mãos de novos “donos”.

É possível que a caricatura degradante que o Ocidente fez do Oriente (uma caricatura denunciada por Edward Said em Orientalismo) seja amanhã substituída pela caricatura igualmente degradante que o oriente fará do ocidente (o Ocidentalismo)? Passar-se-á do eurocentrismo ao sino centrismo? Ou poderemos finalmente aspirar a um mundo sem pontos cardeais nem centros hierárquicos onde a diversidade cultural, política e epistémica seja possível, sob a égide de valores emancipatórios que não se deixem violar segundo as conveniências de quem tem mais poder?