Milly
Lacombe Colunista do UOL - 30/10/2023 13h21
https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2023/10/30/deus-se-mandou.htm
(...)
Não há explicação para que as bombas continuem sendo jogadas sobre inocentes.
Quem ainda busca justificar está morto. Anda, fala, come, mastiga, mas morreu.
São zumbis, corpos sem vida que pensam apenas em suas convicções macabras e
putrefatas. (...)
Se existe
uma entidade cósmica organizadora dessa nossa experiência terrena, se existe um
ser superior capaz de testemunhar o que fazemos, Ela talvez tenha desistido da
gente. Deus não está morto, como anunciou Nietzsche. Deus vazou. Quem não
vazaria?
Peguemos
um recorte curto no tempo: a pandemia. Tínhamos a chance de compreender como
estamos ligados uns aos outros. O rapaz lá do outro lado do mundo comeu uma
carne crua de alguma coisa, adoeceu e nossa saúde aqui embaixo foi afetada. A
minha, a sua, a das pessoas que você ama, a da geral. Como, a partir disso,
seguimos falando em saúde privada, em liberdade individual, em "da minha
vida cuido eu"?
Se
fôssemos inteligentes teríamos aproveitado a pandemia para aprender que toda
saúde é pública. Não há saúde sem ser pública, coletiva, comum. Se não há saúde
privada, tampouco existe liberdade individual. Parar de falar besteiras seria o
começo da cura de nós mesmos.
Derrubar
patentes, distribuir gratuitamente vacinas para o mundo inteiro, fortalecer
sistemas públicos de tudo o que há de importante: saúde, educação, transporte.
Alargar o comum, estreitar o privado.
Fizemos
isso? Não, e muito pelo contrário. Saímos da pandemia para mergulhar em duas
guerras. Na primeira, bombas caíam sobre corpos muito brancos. O horror. Na
segunda, bombas caem sobre corpos nem tão brancos. Segue o jogo.
As imagens
das crianças mortas na faixa de Gaza já estão em seu contexto histórico como
retratos de um massacre. Não há atentado terrorista que justifique a
carnificina.
Sim, é
preciso condenar sem ressalvas as ações do Hamas. Mil vezes sim. Condenemos
todos os que assassinam inocentes sem relativizações, sem reservas, sem
condicionantes, sem restrições. Condenemos o Hamas e condenemos Netanyahu.
Sintamos repulsa, nojo, ódio, ira por quem mata crianças e suas mães. Sentir
vontade de vomitar diante do que estamos vendo é um vestígio de nossas
humanidades.
Não há
explicação para que as bombas continuem sendo jogadas sobre inocentes. Quem
ainda busca justificar está morto. Anda, fala, come, mastiga, mas morreu. São
zumbis, corpos sem vida que pensam apenas em suas convicções macabras e
putrefatas.
A Guerra
não é contra um grupo terrorista, seria importante que essa verdade fosse dita
abertamente. Não se mata três mil crianças para pegar 100 mil, 200 mil, 500 mil
terroristas. Não se mata uma criança. A guerra é por dinheiro. Por armas. Por
poder. Por território. Por supremacia.
De novo.
Mais uma vez. Com tudo sabido e estudado. Cá estamos nós, nos matando uns aos
outros em nome de uma ideia de superioridade que não existe, nunca existiu,
nunca existirá.
Estamos
devastando o planeta e, com isso, nossas chances de seguir existindo.
Morreremos de bomba, de seca, de inundação, de calor, de fome, de doenças, de
tempestades. Seremos a primeira espécie a se auto extinguir. Uma proeza. E nos
achamos tão inteligentes… Não, não somos.
O planeta
florescerá com nossa ausência. Tudo ficará mais bonito. Não haverá mais
assassinatos em nome de vaidades. Não haveria mais um sexo superior a outro,
uma cor de pele melhor do que outra, uma forma de desejo mais certa do que
outra. O planeta se curará dessa infecção chamada humanidade.
Nessa
hora, uma nave estará a caminho de Marte com os Musk, os Bezzo, os sheiks, os
Zuckeberg e mais meia dúzia de seres gosmentos. Terão que existir sozinhos,
convivendo uns com os outros e lidando com suas vaidades. Durarão meses.
Há, claro,
alternativas a esse cenário de horror. Milhões de pessoas estão nas ruas
berrando para que seus governos acordem. Que fique registrado nos autos do
Apocalipse que alguns de nós lutaram até o fim.
Mas, para
nos salvar, deveríamos mudar a rota de imediato. Não daqui a pouco, não mais
tarde, não amanhã - agora.
Parar de
querer lucrar acima de tudo e de todos, parar de queimar, de devastar, de
explorar. Cessar as bombas, sair de terras que não nos pertençam, aprender a
conviver. Acho improvável que façamos tantas conciliações. Improvável que nesse
mundo tão masculino topemos nos curvar, nos deixar atravessar por compaixão e
sentimentos, levemos desaforos para casa sabendo que há uma causa maior do que
nossas vidas particulares. Descolonizar nossos pensamentos, nossas almas,
nossos espíritos.
E, quem
sabe, se fizermos um pouco, se nos movermos um tico que seja em direção ao
comum, ao solidário e ao coletivo, Deus tope voltar e nos dar mais uma chance?
Cheia de compaixão, Ela retornará imaginando que talvez tenhamos entendido que
"ame o próximo como a ti mesmo" quer na verdade dizer "ama o
próximo porque é tu mesmo".