Pressão permanente por ampliar
ganho dos acionistas leva corporações a devastar e precarizar. Lógica degradou
a internet, onde agora pouco se cria ou colabora – pois às Big Techs interessam
a disputa, o conflito e… a impotência social
Duas
diretrizes principais estruturam o sistema de gestão empresarial: maximização e
competição. A maximização está centrada nos resultados financeiros e, para
obter resultados, você deve superar os demais. Pode-se alegar adesão aos ESG,
mas o verdadeiro jogo é sobre maximização e guerra econômica, quaisquer que
sejam os custos. O que precisamos é de outro paradigma, baseado no crescimento
equilibrado e na colaboração. A gestão precisa ser fundamentada em valores.
(Ladislau Dowbor)
Manolito, não é verdade que
existem outros valores, além do dinheiro? Manolito: Claro que existem, também
temos cheques.
(Quino, Mafalda)
Nesta
nova era em rede, o paradigma tradicional da concorrência precisa de dar lugar
à complementaridade, à conectividade e à cooperação.
(Keyu Jin, pág. 282) 1
Dowbor
expõe os novos aspectos do rentismo
Outras Palavras, por Ladislau
Dowbor - 16.04.24
Os modelos de gestão no mundo
corporativo são estruturados para maximizar resultados, e estes são definidos
como meta principal, lucros financeiros e dividendos. Alguns chamam isso de
otimização e parece bom. Os resultados também devem ser alcançados no menor
tempo possível, prendendo o mundo corporativo numa corrida permanente. Os
resultados sistêmicos e de longo prazo são mantidos fora do horizonte do
processo de decisão e os impactos em maior escala são qualificados como
“externalidades”, lavando as mãos das empresas. Um exemplo clássico é a reação
da indústria de armas de fogo às críticas: produzimos armas, mas não puxamos o
gatilho. Outro exemplo interessante é o da indústria de alimentos
ultraprocessados: seria responsabilidade do consumidor ler os rótulos e
proteger sua saúde. Na verdade, isto levou a outra indústria em expansão, a
resposta farmacêutica à explosão da obesidade. Assim, temos duas indústrias em
expansão, uma que produz alimentos ruins, a outra que produz remédios, e
pagamos por ambas. Produzir alimentos saudáveis poderia ser uma escolha
melhor, mas não no interesse da maximização dos lucros, quer nos setores
alimentar, quer no setor farmacêutico.
A concorrência na época de Adam
Smith poderia parecer boa e até continuar positiva nas pequenas e médias
empresas. Uma padaria tem que produzir bom pão a preços razoáveis, ou outra
padaria aparecerá. Mas se uma empresa produtora de chocolate na Bélgica conseguir
comprar cacau mais barato no Gana, fechando os olhos ao trabalho infantil, o
concorrente responsável que respeita alguns direitos humanos básicos será
ultrapassado. Se uma empresa da indústria de carne bovina na Europa conseguir
um acordo melhor com a JBS no Brasil, quaisquer que sejam os custos externos
para o Cerrado ou a Amazônia, isso forçará os concorrentes a recorrer a
práticas semelhantes, para não serem superados. Quando um algoritmo da Pfizer
fixa o preço do Paxlovid, comprimido para tratamento da covid-19, em 1.390
dólares, enquanto o custo de produção, segundo uma pesquisa da Universidade de
Harvard, é de 13 dólares, está apenas calculando que os muito ricos pagarão
qualquer coisa pela sua saúde, e este é o preço ideal em termos de maximização
de lucro. Não se trata de maximizar o impacto na saúde, vender o produto com
lucro razoável e torná-lo acessível a muitos.
O estudo de Max Fisher sobre o
impacto social, econômico e político dos meios de comunicação social deixa as
questões evidentes. Facebook, YouTube e algumas plataformas semelhantes são
basicamente empresas de marketing, vendendo nosso tempo de atenção para
corporações. O marketing, por exemplo, representa 98% do faturamento da Meta.
As taxas de marketing dependem de quantas pessoas são alcançadas, por quanto
tempo e de outros critérios de “engajamento”. Como os algoritmos são
estruturados para maximizar o engajamento, o que chega ao topo é o que atinge
mais profundamente nossas entranhas, não o interesse intelectual ou cultural, a
empatia ou a colaboração, mas motivações poderosas como o ódio, a confirmação
do preconceito, o sentimento de pertencimento (“nós” contra “eles”) e outras
emoções que maximizam a atenção. A profundidade disso pode ser vista em tantos
conflitos e polarizações políticas absurdas ampliadas radicalmente pelas mídias
sociais. O livro de Fisher é corretamente intitulado The Chaos Machine (em
tradução livre, A Máquina do Caos).
A legítima otimização do lucro
pelo padeiro da época de Adam Smith, quando inserido em algoritmos na era da
revolução digital, com conectividade global e vieses de confirmação de
epidemias, tem impactos negativos dramáticos. Não se trata de sermos “bons” ou
“maus”, trata-se de ampliar instintos poderosos que existem em todos nós.
Tendemos a esquecer que ainda somos fundamentalmente primatas, com grande
inteligência, sem dúvida, mas com motivações profundamente problemáticas em
relação à finalidade para a qual utilizamos essa inteligência. Somos
parcialmente racionais, mas a capacidade cerebral acrescida não eliminou as
motivações mais profundas que herdamos. O estudo de Frans de Waal sobre Nosso
Macaco Interior mostra isso muito claramente. É assim que somos
feitos, em nosso DNA. As plataformas de comunicação podem aproveitar essas
emoções, e usar a tecnologia moderna para maximizar o comportamento dos
primatas é simplesmente errado.
As mensagens do Facebook chegam
a quase 4 bilhões, com horas de atenção, e têm custos radicalmente reduzidos em
comparação com os anúncios de jornal que já tivemos. Somos apenas alimentados,
e superalimentados, com mensagens tóxicas ajustadas individualmente. Anúncios e
mensagens simplesmente colam nos seus olhos e filtram no fundo, gostemos ou
não. 2
Lembremo-nos de que estas são as
principais corporações mundiais, vender o nosso tempo de atenção é o grande
negócio do presente. Também aqui a maximização funciona de mãos dadas com a
concorrência: se uma empresa utiliza este tipo de manipulação de envolvimento
emocional, outras vão segui-la, porque funciona, e estão lutando pela mesma
mercadoria, o nosso tempo de atenção pessoal. Que é, na verdade, o momento das
nossas vidas, o nosso capital pessoal mais precioso. Robert Reich resume:
“Aqueles que procuram a nossa atenção – anunciantes, profissionais de marketing
e políticos – enfrentam uma concorrência crescente para agarrá-la. Quando
conseguem, nossa atenção se desvia de todo o resto. É por isso que a
atenção está se tornando um recurso tão escasso.” 3
O sistema bancário brasileiro é
outro exemplo rico. Neste caso, não se trata de competição, mas de conluio.
Cinco bancos controlam 85% do crédito e cobram aproximadamente as mesmas taxas
de juros extorsivas para famílias, empresas ou eventos sobre a dívida pública.
Os juros da dívida de particulares durante 2023 oscilaram em torno de 55%, para
uma inflação de cerca de 4%. Isto levou a uma fuga financeira para as famílias,
equivalente a 10% do PIB, reduzindo drasticamente o poder de compra e,
consequentemente, o estímulo da procura à economia. A taxa de juro média das
empresas ronda os 23%, o que levou a uma redução do investimento produtivo.
Para quem tem capital, tendo em conta que a procura está estagnada e as taxas
de juro muito elevadas, se precisar de apoio financeiro, simplesmente optará
por investir na dívida pública, pagando 8% líquido de inflação. Lucro sólido,
sem risco, sem esforços de produção. Quando a renda financeira paga mais do que
o investimento produtivo, é para lá que vai o dinheiro. Isto é simplesmente
matar o ganso, com maximização a curto prazo. A economia está estagnada. 4
Não se trata de altos e baixos
do mercado. É um sistema estruturado de extração de renda. Uma dimensão é a
desinformação. Antes de 1994, o Brasil enfrentava hiperinflação, atingindo mais
de 50% ao mês. Isso levou os bancos a apresentarem taxas de juros mensais. A
hiperinflação foi reduzida, mas os bancos continuam a apresentar taxas de juro
todos os meses, o que as torna semelhantes às taxas de juro anuais do resto do
mundo. A taxa de juros de 100% será apresentada, nos bancos ou no comércio,
como 6%, ou preferencialmente 5,9%. As pessoas pensariam que as coisas não
poderiam ser tão simples: seria uma usura escandalosa. No entanto, isto é
precisamente o que acontece, ao estilo do Mercador de Veneza, num
país onde muito poucas pessoas sabem calcular o equivalente anual a uma taxa de
juro mensal. Todos os bancos do Brasil, inclusive os internacionais, como o
Santander, utilizam esse esquema. Temos 72 milhões de adultos na lista de
incumprimento de crédito, cerca de metade da população adulta.
O Banco Central não deveria
regular esse sistema de usura? Na Constituição de 1988, o artigo 192 estipulava
que juros reais acima de 12% ao ano seriam considerados crime. Em 2003, com a
entrada do recém-eleito Lula no governo, os bancos conseguiram eliminar o
artigo 192. A usura, atualmente, não é crime, nem sequer é mencionada como
questão legal. E o Banco Central, mais recentemente, foi declarado autônomo,
colocado de facto nas mãos dos bancos e do sistema financeiro.
O que levou a que a dívida pública pagasse as taxas de juro mais elevadas do
mundo, basicamente ao mesmo sistema financeiro. Em 2023, a correspondente
drenagem do orçamento atingiu o equivalente a 7% do PIB. O dreno financeiro
improdutivo global que apresentei numa audiência do Congresso em Brasília é
equivalente a 30% do PIB. Como grande parte dos congressistas tem forte
investimento financeiro e, portanto, quer manter as taxas de juros tão altas
quanto possível, isso se tornou uma deformação estrutural. É um drama para a
economia e para a sociedade, mas é politicamente sólido. Até que ponto a
democracia pode resistir quando a desigualdade atinge níveis absurdos?
A drenagem dos recursos naturais
é outro exemplo. A água é um bem público e está rapidamente se tornando um
recurso escasso. O The Guardian nos traz comentários a
respeito do Relatório sobre a Água Doce, mostrando o impacto da privatização:
“Mais de 30 anos depois da privatização da água, com a urbanização generalizada
e a intensificação agrícola, é necessária uma nova abordagem – incluindo uma
potencial reforma dos reguladores da água –”, diz o relatório. “Com os níveis
de confiança nas empresas de água afetados por repetidos relatórios de poluição
e especulação, tanto o público como os profissionais da água querem mais
transparência e garantia de que as empresas estão agindo no interesse da
sociedade e do ambiente.” 5
Apenas 14% dos rios no Reino
Unido estão “em bom estado ecológico”. A lógica é simples: quando a gestão da
água é privatizada, vender água é um bom negócio e o tratamento de esgotos é um
custo. Enfrentamos problemas semelhantes em São Paulo, onde a Sabesp, empresa
de gestão de água parcialmente privatizada, maximiza as vendas de água, mas
mantém baixo o tratamento de esgotos. Paris mostrou o caminho, com a
restauração da gestão pública de água e esgoto. Interesses equilibrados.
Estes são apenas alguns
exemplos. Mas o impacto geral é dramático. A Oxfam apresenta o impacto na
sustentabilidade: “Desde 2020, os cinco homens mais ricos do mundo duplicaram
as suas fortunas. Durante o mesmo período, quase cinco bilhões de pessoas em todo
o mundo ficaram mais pobres. As dificuldades e a fome são uma realidade diária
para muitas pessoas em todo o mundo. Ao ritmo atual, serão necessários 230 anos
para acabar com a pobreza, mas poderemos ter o nosso primeiro trilionário em 10
anos. Uma enorme concentração do poder empresarial e monopolista global está
exacerbando a desigualdade em toda a economia. Sete em cada dez das maiores
empresas do mundo têm um CEO bilionário ou um bilionário como principal
acionista. Por meio da pressão sobre os trabalhadores, da evasão fiscal, da
privatização do Estado e do estímulo ao colapso climático, as empresas estão
promovendo a desigualdade e agindo a serviço da entrega de uma riqueza cada vez
maior aos seus proprietários ricos.” 6
No Brasil, para uma população de
203 milhões de pessoas, temos 33 milhões passando fome e 125 milhões em
insegurança alimentar. O que produzimos equivale a mais de quatro quilos de
grãos por pessoa por dia. Não poderíamos pelo menos alimentar as crianças?
Todos esses magnatas
corporativos reivindicam a sua adesão aos princípios ESG, os principais
políticos assinam as sucessivas resoluções da COP, a OCDE é severa na sua luta
pelo BEPS, John Ruggie lutou durante uma década pelo respeito corporativo pelos
direitos humanos, mas como ele próprio escreveu, “para corporações
internacionais, são apenas negócios”. A verdade é que, a menos que as empresas
se organizem eficazmente para o bem comum sistêmico e aprendam a colaborar,
dado o seu poder global, as coisas não funcionarão. Estamos presos em um
processo autodestrutivo. Até que ponto devemos entrar nesta crise econômica,
social e ambiental crítica, até termos uma reação global? Fizemos isso depois
da Segunda Guerra Mundial, criando um mínimo de governança global. Isso foi em
outra época.
É claro que podemos imaginar que
fomos feitos à imagem de Deus. Stephen Jay Gould, em seu Wonderful
Life, é mais pé no chão, lembrando-nos que somos “meros macacos nus que
adotaram uma postura ereta”. Macacos nus de alta tecnologia. Eles não veem o
que está acontecendo? Devemos aprender racionalmente como lidar com a
irracionalidade. Entretanto, os políticos aprenderam a navegar com base nos
nossos piores instintos. Funciona.
Notas
1 Keyu
Jin, The New China Playbook: Beyond Socialism and Capitalism ,
Viking, Nova York, 2023.
2 Pallavi Rao, Visualizing How Big Tech Companies Make Their Billions ,
Visual Capitalist, dezembro de 2023.
3 Robert Reich – Boletim informativo, Republicanos fazem afirmações selvagens sobre os perigos
da imigração. Aqui está a verdade , The Guardian, 12 de janeiro
de 2024.
4 L. Dowbor, The Age of Unproductive Capital: New Architectures of
Power , Cambridge Scholars, 2019.
5 Sandra Laville, As ‘falhas’ conservadoras levaram a mais poluição de
esgoto, dizem a água especialistas , The Guardian, 13 de
janeiro de 2024.
6 Inequality Inc , Oxfam, 14 de janeiro de
2024.