Luiz Gonzaga Belluzzo
A liberdade só é possível com igualdade e respeito ao outro
Como sempre ocorre, a vida correu e Lula completou o
primeiro ano de seu terceiro e difícil mandato. Um economista raiz, assim fala
a molecada, embrenhar-se-ia no matagal de suas sapiências econômicas para
esfregar as árvores de suas certezas e despejar conselhos e recomendações ao
presidente. Vou escapar a tais protagonismos e agradecer a Lula por sua proeza
menos celebrada, mas, em minhas modestas avaliações, a mais valiosa. A vida
política nacional voltou a respirar os ares da tolerância e da busca da
convergência, mesmo entre divergentes que divergem de forma radical.
Sugeri ao amigo e companheiro Gabriel Galípolo que, diante
do catennaccio armado pela defesa dos adversários da civilização e da
democracia, nos restam as habilidades do bom driblador. Não sabemos se as
manobras do habilidoso vão culminar com a bola na rede. Tomara. No momento,
resta-nos, torcedores, agradecer pelo retorno da civilidade no Brasil, mais uma
vez espargida para além fronteiras.
Uma pergunta torna-se, no entanto, inevitável: estamos nós e
Luiz Inácio, o Lula, a sofrer no mundo uma crise que nega os princípios
fundamentais que regem a vida civilizada e democrática? Se isso for verdade,
quanto tempo mais a humanidade suportará tamanha regressão.
A angústia torna-se ainda maior quando constatamos que as
possibilidades de conforto material para a grande maioria da população deste
planeta são reais. É preciso agradecer ao capitalismo, e ao seu desatinado
desenvolvimento, pela exuberância de riqueza gerada. Ele proporcionou ao homem
o domínio da natureza e uma espantosa capacidade de produzir em larga escala os
bens essenciais para as satisfações das necessidades humanas imediatas. Diante
dessa riqueza, é difícil encontrar razões para explicar a escassez de comida,
de transporte, de saúde, de moradia, de segurança contra a velhice etc. Numa
expressão: escassez de bem-estar.
Um bem-estar que marcou os conhecidos “anos dourados” do
capitalismo. A dolorosa experiência de duas grandes guerras e da depressão
pós-1929 nos ensinou que deveríamos limitar e controlar as livres forças do
mercado. Os grilhões colocados pela sociedade na economia explicam quase 30
anos de pleno emprego, aumento de salários e lucros e, principalmente, a
consolidação e a expansão do chamado Estado de Bem-Estar Social. Os direitos
garantidos não deveriam ser apenas individuais, mas coletivos. Vale dizer, sociais.
Dessa maneira, ao mesmo tempo que o direito à saúde, à previdência, à
habitação, à assistência, à educação e ao trabalho eram universalizados,
milhares de empregos públicos de médicos, enfermeiras, professores e tantos
outros eram criados.
O Welfare State não pode ser interpretado como mera reforma
do capitalismo, mas como uma grande transformação econômica, social e política.
Ele é, nesse sentido, revolucionário. Não foi um presente de governos ou
empresas, mas a consequência de potentes lutas sociais que conseguiram negociar
a repartição da riqueza. Isso fica sintetizado na emergência de um Estado que
institucionalizou a ética da solidariedade. O indivíduo cedeu lugar ao cidadão
portador de direitos. As gerações que cresceram sob o manto generoso da
proteção social e do pleno emprego acabaram, porém, por naturalizar tais
conquistas. As novas e prósperas classes médias esqueceram que seus pais e avós
lutaram e morreram por isso. Um esquecimento que custa e custará muito caro às
gerações atuais e futuras. Caminhamos para um Estado de Mal-Estar Social.
[No mundo, caminhamos para um Estado de Mal-Estar Social]
Essa regressão social se iniciou quando começamos a libertar
a economia dos limites impostos pela sociedade, já no início dos anos 70. Sob o
ideário liberal dos mercados, em nome da eficiência e da competição, a ética da
solidariedade foi substituída ética da concorrência ou do desempenho. É o seu
desempenho individual no mercado que define a sua posição na sociedade:
vencedor ou perdedor. Ainda que a grande maioria seja perdedora e não concorra
em condições de igualdade, não existem outras classificações possíveis. Não por
acaso o principal slogan do movimento Occupy Wall Street é “somos os 99%”. Não
por acaso, grande parte da população espanhola está indignada.
Como acreditar que precisamos escolher entre o caos e a
austeridade fiscal dos Estados, se essa austeridade é o próprio caos? Como
aceitar que grande parte da carga tributária seja diretamente direcionada para
as mãos de quem ocupa o trono do 1%, os detentores de carteiras de títulos
financeiros? Por que a posse de tais papéis que representam direitos à
apropriação da renda e da riqueza gerada pela totalidade da sociedade ganham
preeminência diante das necessidades da vida dos cidadãos? Por que os homens do
século XXI submetem aos ditames do ganho financeiro estéril o direito ao
conforto, à educação e à cultura?
As respostas para tais questões não serão encontradas nos
meios de comunicação de massa. Os espaços de informação e de formação da
consciência política e coletiva foram ocupados por aparatos comprometidos com a
força dos mais fortes e controlado pela hegemonia das banalidades. É mais
importante perguntar o que o sujeito comeu no café da manhã do que promover
reflexões sobre os rumos da humanidade.
A civilização precisa ser defendida. As promessas da
modernidade ainda não foram entregues. A autonomia do indivíduo significa a
liberdade de se autorrealizar. Algo impensável para o homem que precisa
preocupar-se cotidianamente com sua sobrevivência física e material. Isso
implica uma selvageria que deveria ficar restrita a uma alcateia de lobos
ferozes. Ao longo dos últimos 200 anos de história do capitalismo, o homem
controlou a natureza e criou um nível de riqueza capaz de garantir a
sobrevivência e o bem-estar de toda a população do planeta. Isso não pode ficar
restrito para uma ínfima parte. Mesmo porque, o bem-estar de um só é possível
quando os demais à sua volta se encontram na mesma situação. Caso contrário, a
reação é inevitável, violenta e incontrolável. A liberdade só é possível com
igualdade e respeito ao outro. É preciso colocar novamente em movimento as
engrenagens da civilização.
Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de
dezembro de 2023
https://www.cartacapital.com.br/economia/batalha-civilizatoria/
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